Ayrton Senna, 10 anos depois

Os famosos, quando morrem, parecem entrar numa segunda vida. A gente comum, nós, também. A diferença é que a nossa segunda é mais curta, esvai-se depressa, em nossa própria geração, quando não desaparece antes, meses ou um ano depois. Quem?, perguntam, e ninguém responde.

(Ouço “Carta ao Tom, 74”, com Vinícius e Toquinho, e essa música me ajuda nestas linhas. Se alguma beleza acharem nelas, a culpa é de Vinícius. O feio que acharem, a virtude é deste que lhes fala.)

A segunda vida dos famosos, é claro, é a reconstrução na memória, na lenda, que os sobreviventes lhe fazem. Apagamos mágoas, críticas azedas, pés de barro dos ídolos, e eles passam a reluzir sem nódoas ou manchas, quase. Apesar da ilusão, é uma atitude muito bonita, reconhecemos. Que beleza haveria em espancar um defunto? Que dignidade existe em acusar, destratar, quem não mais se defende? Essas coisas nos vêm no aniversário desses 10 anos da morte de Ayrton Senna.

Quando Senna morreu, estávamos eu, Francesca, Lupicínio e Luanda, no bar de Eduardo, no mercado público da Encruzilhada. Tomávamos o café da manhã, naquele domingo de primeiro de maio. Sobre uma prateleira do bar o português ligara a televisão, para que os clientes assistissem a mais uma corrida de Fórmula 1. Com sinceridade, eu lhes digo que a televisão desligada, para mim, seria bem mais emocionante. Portanto, além de objetos coloridos que ao passar na tela deixavam um zumbido de vôo de abelhas, eu nada mais via. Me concentrava no cuscuz com galinha, que o safado do português dizia ser “à lisboeta”, para enaltecer o tempero e o preço de uma galinha à brasileira.

Súbito, um grito. Súbito, vários gritos. Os alcoólatras das primeiras horas do dia se levantam. “Estão bêbados”, me digo, e nem sequer olho para a televisão. Mas o som chega mais alto, e me viro para ver: Eduardo se esquecera de tudo, e se plantara bem juntinho à tela, como se surdo fosse. Ele parecia querer entrar em Ímola naquele instante, procurando entrar na imagem da televisão. Os bêbados e os sóbrios e os comensais também se fecham, compactos, em pé. Então ouço, se não me falha a memória, “Senna bateu, Senna bateu ... o acidente é sério ... a cabeça dele se mexeu... ele está vivo...”, e mais adiante, “nós torcemos para que ele esteja vivo... é muito sério.... bateu a mais de 200 por hora... pelo amor de Deus, todos torcemos para que esteja vivo....”. Então eu soube que Senna havia sofrido um acidente, muito sério. Paguei a conta e saí. Notei que Eduardo nem contou o dinheiro pago.

As pessoas muito amadas, achamos sempre que nunca morrem. É uma luta desigual, em que a nossa derrota é certa, mas assim somos. Com o super-herói acontece o mesmo. Lembram? Se ele está amarrado em um carro, se o carro vai ao abismo, sabemos sempre que no último minuto ele se livra das cordas e se agarra num penhasco salvador. Aquele tiro fatal na têmpora resvalará pela orelha, arrancando-lhe alguns fios de cabelo, sempre. Dos males do fígado, da coluna, do câncer e de outras terríveis moléstias ele não está imune, sabemos. Mas padecer dessas coisas de toda a gente são apenas o colorido da trama, o suspense, o seu movimento. No final, esperamos, porque já sabemos, o super não morrerá no fim. O seu destino é uma vitória prévia, sempre.

No decorrer daquelas horas do domingo, eu e o resto da gente esperávamos mais uma vitória de Senna. Ele batera antes, outras vezes. Ele escapara milagrosamente de acidentes, para surgir em pé, em meio à poeira, imune, sem riscos, sem amasso no vinco do macacão. Era mais que um caubói, como um Clark Kent sem óculos 24 horas por dia, com um sorriso de kriptonita, Ele . “Se depender de mim, vocês, jornalistas, irão esgotar todos os adjetivos do dicionário”, dizia, entre uma corrida e outra. Acidentes ocorrem, me disse, às vezes por ordem da Marlboro, da Williams. Aquilo passava, passaria, não podia mesmo ser muito sério. As pessoas, no entanto, não descolavam os olhos da televisão. Em dúvida, até o fim. Que foi: “Ayrton Senna está morto”.

Nos dias depois, os que não compartilhamos do amor a corridas, a Fórmulas 1, sentimo-nos como num enterro de comparecimento obrigatório em casa de vizinho. Ou como se entrássemos num longo cortejo fúnebre, pois caíramos num engarrafamento de trânsito, numa auto-estrada. Sentindo-nos entre lágrimas, coroas de flores e sirenes do carro de bombeiros, com o caixão lá em cima, na ponta da curva que serpenteava. Olhando de lado, para os carros que se arrastavam lento, pesarosos, sentindo-nos obrigados portanto a fazer uma cara triste. As coisas mais serenas que se diziam eram: “O Brasil perdeu o seu maior ídolo”. Ou “O Brasil está órfão”. Ou, creiam, “O Brasil perdeu o seu herói”. E aí, de verdade, a morte de Ayrton Senna começou a doer.

Enquanto Ayrton Senna fora um excepcional corredor, ou como se disse depois da sua morte, “O melhor piloto da Fórmula 1 de todos os tempos”, o mais completo, o mais veloz, o mais mais do melhor dos adjetivos, dos corredores substantivos, todos estávamos confortáveis. O mundo é mesmo diverso, ainda bem. Se existem pessoas que não gostam de corrida de automóveis, que felicidade. Uma exposição de Goya não ficará às moscas nas horas da Fórmula 1. É uma delícia uma corrida de touros, nos desenhos, enquanto correm lá fora a mais de 300. Zuuum, nem ouvimos. Mas o conforto começa a desaparecer quando aos vencedores das pistas querem dar o valor que creditamos à nossa humanidade. Mais, porque tudo querem: quando fazem do pódio O Valor. Mais, porque a boca e a fome não conhecem medida: quando zombam do que a sensibilidade, a educação, a história nos fez como homens. Se um grande poeta ganha 300 reais por mês, não se pense, nem muito menos se proclame que o vencedor de milhões de vezes esse salário é o gênio da raça.

Naqueles primeiros dias da morte de Senna foi assim que nos sentimos. Houve muita estupidez junta proclamada. Dos mais humildes, que diziam, “Senna foi o produto mais forte que tive para vender”, aos um pouco mais enfáticos, “Senna era o Brasil que dava certo”, até chegar aos bárbaros da nossa memória, que proclamavam, “O Brasil perde o seu maior herói”. Essas coisas, a formar um séqüito, terminaram por empanar o brilho real do seu trabalho, do seu real talento, da sua real pessoa, do seu real, à margem do seu valor em dólares. Havia nele, passada a tempestade das lágrimas, passada a rendição ao culto do espetáculo, passada a admiração por seu sucesso, havia nele uma disciplina, um método de trabalho, uma paixão pelo que fazia, que muito nos serve, a todos, corredores, sedentários, amantes das pistas ou das artes. Há nele, nesse homem que se foi aos 34 anos, um drama, ou dramas, que reclamam um criador, sim, um criador, daqueles que ganham 300 reais por mês, daquele tipo de imortal brasileiro, que é imortal porque não tem onde cair morto.

Somente agora, a distância, 10 anos depois, ganhamos algo semelhante à sua frieza. Ainda que não tenhamos a sua fé. Aquela fé superpoderosa, que dizia, “Não tenho limites. Estou com 33 anos e acho que ainda tenho muito pela frente”. Nem mesmo o super-homem seria capaz de afirmar algo parecido. Clark Kent sempre soube que o excesso de exposição à kriptonita era o seu limite: matava.

Voltemos portanto a Vinícius. “É, meu amigo, só resta uma certeza, é preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor. Rua Nascimento Silva, 107 ...”.

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