Discurso de Gabriel da Costa à Assembleia Nacional de S. Tomé e Príncipe

Excelências,

A actual situação política dominada pelo inesperado derrube do Governo de Unidade Nacional impõe-me o indispensável dever, enquanto Primeiro-Ministro e Chefe desse Governo, de comunicar à Nação e aos legítimos representantes do Povo são-tomense as verdadeiras razões que estiveram na base da decisão do Senhor Presidente da República de pôr fim à existência de um Governo que gozava de um largo apoio parlamentar e que vinha prosseguindo as tarefas fundamentais para a recuperação económica do país, à luz das exigências do interesse nacional.

Contrariamente às justificações contidas no Decreto Presidencial, segundo as quais a decisão de demissão do Governo se deveu ao “… momento político reinante actualmente no País criado pelo conflito surgido entre o Primeiro-ministro e o Ministro da Defesa e Ordem Interna acarretando um denegrir da pessoa do Presidente da República…”, as razões que levaram o Senhor Presidente da República a demitir o Governo são, na verdade, as seguintes:

Em primeiro lugar, é importante sublinhar que, à certa altura, notava-se claramente que ao Senhor Presidente da República, pessoalmente, já não interessava este Governo, tendo por isso ensaiado, através de pessoas ligadas à sua máquina partidária e do seu instrumento de propaganda, o jornal “O Semanário”, o seu derrube. Foi assim que em Julho deste ano o Senhor Deputado Eugénio Tiny iniciou contactos com os deputados das diferentes bancadas parlamentares com o fim de provocar a queda do Governo, durante a discussão do Orçamento Geral do Estado na Assembleia Nacional.

Todavia, já na primeira quinzena do mês de Julho, por ocasião dos festejos comemorativos da Independência Nacional, circulavam rumores sobre o pedido de demissão do Primeiro-Ministro, o que não era verdade, alimentado pelas fontes da Presidência da República, seguidos depois de uma pseudo greve dos trabalhadores da Função Pública, que culminou com uma manifestação contra o Governo à porta do Palácio do Povo, em que se notou uma nítida falta de solidariedade institucional da parte do Senhor Presidente da República, que não só recebeu o líder sindical em conflito com o Governo, mas também veio à rua saudar os manifestantes (na sua maioria licenciados e feirantes), acompanhado do líder sindical, num verdadeiro gesto de desautorização do Governo. Como é óbvio, esse facto criou alguma crispação no relacionamento institucional, tendo obrigado o Chefe do Governo a pedir à Assembleia Nacional e aos partidos políticos que sustentavam o Governo que reflectissem sobre esses elementos indiciadores de instabilidade política.

O segundo episódio destabilizador do Governo deu-se na Praça da Independência por ocasião do 1.º aniversário da tomada de posse do Senhor Presidente da República, durante o qual foi organizado um “talk show” em que o Senhor Presidente da República colocou o Governo numa situação de grande embaraço na praça pública. É preciso recordar que tudo isso aconteceu após várias tentativas do Chefe do Governo de criar um clima de bom relacionamento institucional. Foi assim que sugeriu ao Senhor Presidente da República que presidisse a uma reunião do Conselho de Concertação Social, perante a ameaça de uma greve geral anunciada pelo Secretário-Geral do Sindicato da Função Pública, como forma de se conseguir um entendimento comum sobre a questão salarial que tanto agitava a sociedade. Os resultados dessa reunião foram bastante positivos.

Foi igualmente sugerido ao Chefe do Estado a realização de um encontro com os líderes de todos os partidos políticos e líderes parlamentares durante o qual o Primeiro-Ministro fez o balanço da governação e apresentou os resultados da última missão do Fundo Monetário Internacional ao País. Nessa reunião, ficou o entendimento que as forças políticas deveriam efectuar uma ampla explicação às populações sobre o momento particularmente difícil que o país atravessa e a necessidade de se prosseguir o programa de estabilização macro-económica para se obter o alívio da dívida. O principal objectivo desse encontro foi garantir a estabilidade política.

Até à partida do Senhor Presidente da República para os Estados Unidos da América, vários membros do Governo congratulavam-se com o clima de bom relacionamento institucional existente entre o Governo e o Senhor Presidente da República, pelo que nada deixava antever a instalação duma eventual crise institucional. Por conseguinte, a situação de crise governamental que se vive actualmente no país, vem sendo forjada já há algum tempo, tendo sido grosseiramente desencadeada e de forma pouco hábil pelo Ministro da Defesa e Ordem Interna, através da falsa questão das promoções no seio das Forças Armadas e Para-militares, despoletada pelas declarações proferidas infelizmente pelo Senhor Presidente da República a partir dos Estados Unidos da América.

Na verdade, não existia de facto um mau relacionamento entre o Ministro da Defesa e Ordem Interna e o Primeiro-Ministro, muito menos por razões por ele apontadas. Mas, admitindo por absurdo que fosse verdade, o lógico seria concretizar-se o pedido de demissão do Ministro, por estar em desacordo com o Primeiro-Ministro e Chefe do Governo, mas nunca a queda de todo o Governo como protagonizou o Senhor Presidente da República, que veio ao público alegar ter feito tudo para que o Primeiro-Ministro aceitasse o pedido de desculpas apresentado pelo Ministro de Defesa e Ordem Interna, o que não aconteceu.

Que imagem do Estado daria o Primeiro-Ministro se aceitasse, como pretendia o Senhor Presidente da República, o pedido de desculpas de um Ministro de Defesa e Ordem Interna que mentiu à Nação; que desrespeitou publicamente o Primeiro-Ministro, manifestando uma ignorância arrepiante dos princípios constitucionais mais elementares, quando a dado momento da sua entrevista afirma que "é apenas um Conselheiro do Primeiro-Ministro e que depende directamente do Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas"; que põe o País em pânico quando diz ter um segredo de Estado que irá revelar; que inventa uma tentativa de golpe de Estado; que telefona ao Primeiro-Ministro para o ameaçar?

Se o Senhor Presidente da República estivesse realmente preocupado com a imagem do Estado e exclusivamente orientado pela prossecução dos fins constitucionais e pelo interesse nacional, teria adoptado uma postura diferente, evitando assim uma crise artificial e absolutamente inútil. Não se pode compreender que ao pedido de exoneração do Ministro da Defesa e Ordem Interna, pelas razões acima mencionadas, o Senhor Presidente responda com a demissão do Governo.

Deveria ser o Senhor Presidente da República, enquanto Chefe de Estado e garante do regular funcionamento das Instituições a chegar à conclusão que, para preservar a imagem do Estado de que é Chefe, a única saída era a demissão do Ministro da Defesa e Ordem Interna. Sobretudo, depois de ter ficado ampla e sobejamente provado no Conselho de Ministros que este tinha mentido. Mas, porque se tratava apenas de um estratagema para substituir o Governo, pretendeu-se invocar mentiras como por exemplo a vinda de Inspectores das Nações Unidas para inspeccionarem as armas no Quartel das Forças Armadas, o que é uma mentira grosseira inventada pelo Senhor Ministro da Defesa e Ordem Interna, apenas para criar agitação no seio das mesmas, como se pode constatar através de documentos anexos à presente carta.

Nunca vieram inspectores das Nações Unidas ao País para inspeccionarem as armas das Forças Armadas, mas veio sim uma missão técnica do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz e o Desarmamento em África, para cooperar connosco na recolha de armas de guerra que se encontram na posse de civis e ajudar-nos a encontrar solução para as minas navais existentes no país, conforme os termos de referência elaborados pelos serviços de assessoria do Gabinete do Senhor Ministro da Defesa e Ordem Interna. Como afirmei numa das minhas declarações, o Governo demitido, demitido está há que se proceder à sua substituição, em nome da continuidade do Estado. Porém, para evitar que situação idêntica a que se vive hoje se repita, não posso deixar de aludir a alguns factos que estiveram na base de várias dificuldades surgidas no relacionamento institucional com o Senhor Presidente da República e que, a meu ver, irão persistir, no futuro, mesmo com um novo Governo, caso não se encontre soluções para as ultrapassar.

Sob o pretexto de não querer ser um Presidente corta-fitas, o Senhor Presidente da República faz incursão de forma desmesurada na esfera de competências do Executivo, subvertendo por completo o regime semi-presidencial de pendor presidencialista que encerra a nossa Constituição. Embora tivesse havido um entendimento tácito para o seu envolvimento com o Governo na busca de soluções para os ingentes problemas do País, a verdade é que o Senhor Presidente da República assumindo-se como um defensor do sistema de Governo presidencialista, não deixava espaço ao Chefe do Governo, presidindo a todos os Conselhos de Ministros, substituindo-se ao Governo em matéria de negociações no domínio do dossier petróleo, como se pode constatar através de inúmeras cartas escritas directamente por ele às companhias petrolíferas.

O Governo nunca foi ouvido sequer na tão propalada questão do “porto de abrigo” negociada directamente pelo Senhor Presidente da República com as autoridades americanas, supondo-se que os demais Órgãos de Soberania não têm conhecimento desta questão tão importante e que necessariamente deveria envolver entidades com competências constitucionais na matéria. Os Ministros eram directamente interpelados pelo Senhor Presidente a quem eram dadas instruções (caso do Ministro da Agricultura em matéria de crédito agrícola) à revelia do Chefe do Governo. Cito apenas um exemplo dentre muitos outros casos de intervenção directa do Senhor Presidente na acção governativa, desrespeitando as regras de competências próprias de cada órgão Ainda em matéria de política externa, a posição do Estado São-tomense é afirmada única e exclusivamente pelo Senhor Presidente da República sem articulação prévia com os demais Órgãos de Soberania como foi o caso recentemente registado na reunião promovida pelo Presidente Jorge W. Bush com os Chefes de Estado da sub-região da África Central.

Ninguém sabe até hoje, senão o Senhor Presidente, a posição de São Tomé e Príncipe. Mas, para ilustrar a manifesta vontade do Senhor Presidente da República de governar anexa-se o documento por ele rubricado intitulado “ Áreas de maior pendor de Sua Excelência o Senhor presidente da República “ que o Primeiro-ministro recusou-se a assinar por achar que não era conforme as normas constitucionais. Aliás, muitos dos factos narrados na presente missiva estão contidos na carta que um grupo de cidadãos enviou ao Senhor Presidente da República antes da queda do Governo, alertando-o para o perigo da instabilidade que ameaçava o País. Julgo, Excelências, ser o meu dever moral e político e também de cidadão alertar a representação nacional para a necessidade premente de um debate sério e aprofundado sobre as verdadeiras razões que levaram à demissão deste Governo de Unidade Nacional, que criou tantas expectativas à sua volta, cujo derrube inexplicável após cinco meses apenas de existência poderá ser o prenúncio de uma instabilidade política permanente em São Tomé e Príncipe.

A minha convicção é a de que sem a delimitação clara dos poderes dos órgãos Presidente da República e Governo, através duma revisão constitucional, continuaremos a assistir a situações de conflitualidade e de mal-estar que só contribuem para adiar o País. O Presidente da República no exercício da magistratura presidencial deve em primeiro lugar respeitar a constituição e as leis que jurou cumprir e fazer cumprir e adoptar uma postura que faça dele uma referência supra-partidária, garante da estabilidade institucional e do regular funcionamento das instituições e não um factor de instabilidade.

Por um São Tomé e Príncipe estável e próspero.

São Tomé, 01 de Outubro de 2002 Gabriel da Costa

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