Francisco Louçã: Não sei se o jornalismo morreu...

Não sei se o jornalismo morreu, também não sei se quer viver - por Francisco Louçã

[Por Francisco Louçã] Um dia, entrei com a família num restaurante de um país do hemisfério sul e pedimos um prato, já não sei qual. O empregado explicou-nos, condescendente, que "tem, mas acabou". Creio que o jornalismo pode estar a passar por um risco semelhante: tem, existe, são profissionais com códigos e com instituições, que produzem um bem público, mas este está a mudar tão depressa que se pode tornar irreconhecível ou redundante, pode acabar.

Não é da existência de jornais, ou de rádios, ou de televisões, como objectos produtores de comunicação, que trato aqui. Esses continuam, mudam mas continuam. Sempre foram desafiados por novas formas de informação e sempre resistiram e continuaram. É mesmo ao jornalismo como profissão com um estatuto próprio na sociedade que me refiro.

Esse jornalismo está em risco de morrer. Um risco não é ainda uma conclusão, nem tem que ser: os dias recentes, aliás, demonstraram em pequenos detalhes que existem regras seguidas pelos jornalistas e que atestam o seu cuidado profissional, que provam portanto que ainda existe jornalismo. Por exemplo, ao que me dei conta, nenhuma televisão usou imagens integrais do caixão aberto de Mário Soares, transmitindo portanto unicamente imagens da sua vida e das cerimónias fúnebres, mas mantendo respeito pela imagem do seu corpo e da sua morte. Elogio esta escolha, que é digna.

No entanto a reflexão que vos quero trazer é mais vasta do que a motivada por um episódio. Deixando para outras núpcias os debates sobre a "pós-verdade" ou a "nova ignorância", aqui trazidos por Pacheco Pereira e António Guerreiro, entre outros, refiro-me agora a três questões: a tempestade perfeita que se abateu sobre o jornalismo (ou, ainda pode haver independência da comunicação social?), o recurso às estratégias da banalização anestesiante ou da banalização obsessiva (ou, o jornalismo ainda quer informar?) e a inclinação política de parte do jornalismo, que substitui a notícia pelo comentário engajado (ou, a agressividade do jornalismo de hoje significa que abandona a busca ou a pretensão de objectividade?). Não sei se o Congresso dos Jornalistas as discutirá, mas estas são para já as questões cépticas para as quais preciso de ter resposta. E aqui adianto alguma reflexão, continuando o que tenho escrito neste blog sobre o assunto.

1.      A tempestade perfeita

A comunicação social está no meio de uma tempestade perfeita em que tudo agrava os riscos:

A) A recessão esvaiu a publicidade e reduziu as receitas dos órgãos de comunicação social, além de ter destruído alguns, aumentando o desemprego entre os jornalistas.

B) A concentração das empresas de comunicação acentuou-se, ameaçando a independência profissional dos jornalistas e a liberdade de escolha dos consumidores. A ofensiva da Altice sobre as televisões é a mais recente demonstração do perigo da concentração.

C) Ambos os factores agravaram a precarização, os estágios e a dependência profissional e atacaram a falta de autonomia dos jornalistas, tornando-os mais vulneráveis ao poder.

D) A evolução tecnológica destroçou a forma tradicional dos circuitos de informação e suscitou mecanismos de sedução e de esmagamento informativo, manipulando as redes sociais (os robots na internet durante a campanha presidencial norte-americana são um exemplo). Neste contexto, a norma dos tempos de informação foi subvertida, pois os jornalistas já só informam o que já se sabe.

A questão é se estes factores se modificarão. Mas a resposta é que é pouco provável e que portanto é difícil que haja independência da comunicação social.

A condição económica não se alterará. Mesmo com uma pequena recuperação económica, a publicidade diversifica-se, impõe preços baixos, e a comunicação social apenas sobrevive com o recurso ao mercado publicitário, quanto não é por ele destruída ou condicionada.

A concentração também dificilmente se reduzirá. Em Portugal, nenhum governo se atreveu a sequer imitar as leis anti-concentração dos EUA ou de países europeus e um grupo empresarial da comunicação pode ter uma distribuidora com grande quota de mercado, ou órgãos dominantes em várias áreas da comunicação. Pelo contrário, a concentração tem-se agravado e distorcido (com compras por grupos angolanos e chineses, por exemplo).

A precarização profissional dos jornalistas decorre das duas condições anteriores, com o recurso extensivo a estagiários e a empregos de curta duração, com a queda salarial e a acentuação do poder das hierarquias. O jornalista já não tem autonomia, já não investiga sem ser autorizado, já não tem recursos para fazer uma reportagem, já não pode prosseguir um caso. Os directores ocupam o seu tempo a procurar patrocínios, a frequentar feiras empresariais, a promover produtos, a almoçar com clientes, a cortejar anunciantes. Ou seja, a concorrência entre órgãos de comunicação é determinada pelo mercado a montante e não pela qualidade da informação e pelo público a jusante. Não escolhemos o que vemos e lemos, o mercado é que nos escolhe.

Por isso mesmo, o produto da comunicação social tem vindo a ser modificado. A razão é esta: o objectivo da informação passou a ser a audiência e não a informação ou, mais em concreto, como os tempos da comunicação foram encurtados, a produção de notícias é marcada pela gestão do efémero e portanto pela procura da excitação, que é a chave da audiência imediata. Se perguntar a qualquer jornalista de TV se são precisos 15 minutos na abertura de um telejornal para dissecar todas as hipóteses sobre o desaparecimento de uma mulher em Grândola, a única resposta coerente é que teme que os concorrentes façam o mesmo e se não foi isso é o futebol.

O espaço noticioso é portanto gerido por uma certeza: a da inevitável degradação da informação, que tem que ser transformada em entretenimento. A notícia cede à emoção. O jornalismo de choque é portanto o resultado deste processo de contaminação. Num exemplo recente que aqui discuti, na noite do massacre de Nice, um jornalista de televisão, perguntava em directo a um homem que estava ao lado da sua mulher, morta no passeio, como se sentia. Receio que, mesmo sem a crueldade da pergunta neste caso, é desse tipo de emoção que se ocupe grande parte da reportagem de Grândola quando percorre os vizinhos, os colegas ou os conhecidos da mulher desaparecida.

Ou seja, o resultado da tempestade perfeita foi acentuar a transformação da natureza da comunicação social: em vez de notícias (a escolha de títulos como "Diário de Notícias" ou "Jornal de Notícias" ou "Correio da Manhã" ou "Público", por exemplo, destinava-se a sublinhar que se trata de dar notícias), a comunicação social produz regularmente senso comum, ou seja, produz ideias, ideologias e conformação. Portanto, transforma-se gradualmente num órgão de poder e não de contrapoder. Não há independência do jornalismo. Tem, mas acabou.

2.      A comunicação como discurso da banalidade anestesiante e da banalidade perturbante

Ao passar a produzir senso comum em vez de informação, a comunicação social muda também os seus procedimentos. Mais um exemplo: o predomínio do futebol nos nossos canais de televisão por cabo é um caso de estudo entre a televisão internacional. Abra a CNN ou outra televisão cabo de referência e procure à 2ªf, 3ªf, 4ªf, 5ªf, 6ªf, sábado e domingo o programa diário de antecipação, de análise e depois de discussão dos jogos, com claques representadas, com especialistas, com gritadores, com repetições nos horários nobres - e não encontra. Ou seja, a televisão portuguesa vocacionada para a informação, o cabo (que assim aliviou os canais generalistas que abertamente se especializaram em entretenimento, ou telenovela), escolheu priorizar o caminho da não-notícia, interpretando obsessivamente o jogo, espectacularizando a sua própria interpretação em que o acontecimento é a discussão do acontecimento.

O meu argumento até hoje foi que este trabalho de produção de senso comum pela comunicação social é construído como uma banalidade banal, ou tranquilizadora, baseado no entretenimento, na diversão, na distração, na efemeridade. Mas há também um contraponto desta tranquilidade, que é a sua condição de sucesso: deve emergir também e ocasionalmente uma banalidade perturbante. Essa linguagem da perturbação tem três funções: em primeiro lugar, a informação deve ser surpreendente, porque essa é a sua condição para mobilizar a atenção; em segundo lugar, deve contrastar com a programação banal, porque essa é a condição para o entretenimento gerar a distração; em terceiro lugar, deve criar o espaço para que o senso comum estabeleça a banalidade tranquilizadora como o estado da natureza, isto é, como o lugar da democracia. A emoção violenta, a excitação do acontecimento, a expectativa do imediato provocante são instrumentos de afirmação pública de um discurso e de uma instituição, mais ainda do que meios de captação de audiências.

Um exemplo estudado por Diana Andringa na sua tese de doutoramento (a autora foi jornalista e presidente do seu Sindicato) foi o do caso do Arrastão na praia de Carcavelos, no verão de 2005. Os detalhes são bem conhecidos: a mesma pessoa que chamou a polícia forneceu o testemunho e algumas fotos imprecisas às televisões, tendo todos os canais aberto a sua emissão de telejornal das 20h com textos alarmistas baseados nesse testemunho. As fotos mostravam jovens, quase todos negros, a correr na praia. As televisões compararam a sua notícia com a de arrastões nas praias do Rio de Janeiro, em que os banhistas teriam sido roubados, e esse paralelo foi depois explorado por quase todos os que analisaram o caso.

O efeito de bola de neve foi tanto imediato quanto prolongado ao longo dos dias seguintes: a polícia, a câmara municipal, o governo e outros protagonistas intervieram imediatamente, alimentando a narrativa do arrastão, e fornece
do a confirmação da informação, oferecendo a multiplicação de tomadas de posição e o enquadramento institucional que constituíam os vários ângulos da notícia. Depois dessas primeiras notícias, totalmente dominantes no espaço mediático nacional, houve um debate parlamentar tenso, marcado pelo alarme e pelos discursos securitários.

No entanto, todo o episódio não passava de uma construção fantasiosa. As fotos, que mostravam algumas dezenas de jovens, foram transformadas ficcionalmente em centenas de pessoas, supostamente organizadas previamente em bairros suburbanos para prepararem um roubo sob a forma do arrastão. Mas não havia pessoas que testemunhassem terem sido roubadas. Não houve nem uma só queixa na polícia. Não tinha havido roubo, só uma correria pela praia e um susto.

Poucos dias depois, o Superintendente da PSP confirmou que, meia hora depois dos acontecimentos terem sido reportados e da primeira investigação da polícia no local, já sabia que não tinha havido arrastão nenhum. Mas, e esse é o aspecto mais revelador do testemunho deste chefe da polícia, nenhum órgão de comunicação social queria ouvir ou aceitar esta interpretação: ela não podia ser comunicada pois não fazia parte do senso comum. Era possível contar a verdade, embora não se saiba se o Superintendente sequer o tentou, mas nenhum órgão de comunicação social reportaria essa afirmação, mesmo que feita pela polícia: era uma não-declaração. O apetite pela notícia criava um frenesim que selecionava a informação e excluía o contraditório e neste caso excluía mesmo os factos, porque não se alinhavam com a história. A confirmação da fraude noticiosa pelo Superintendente da PSP foi feita a Diana Andringa, que dirigiu com Jorge Costa um documentário sobre o tema, "Arrastão", revelando então o que nenhum órgão de comunicação social quisera admitir.

Um mês e meio depois, uma sondagem entre editores, chefes, coordenadores e diretores de órgãos de comunicação social demonstrou que mais de metade continuava a achar que a cobertura tinha sido correta, mesmo que se baseasse no que já se sabia ter sido uma invenção. Houve pivots de telejornal que ameaçaram inconsequentemente com um processo judicial os autores do documentário "Arrastão", incluindo Andringa, em que o Superintendente da polícia desmentia a informação que os jornalistas tinham veiculado e as gravações dos seus telejornais eram reproduzidas, demonstrando como tinham dado corpo à notícia falsa.

Há várias interpretações possíveis para este acontecimento notável, que é a informação frenética sobre um não-acontecimento. Miguel Vale de Almeida, citado por Diana Andringa, argumentou que a comunicação social representa tipicamente o medo com base na exclusão e na hierarquia social. Assim, o senso comum da segurança é construído pela designação do inimigo. O facto é que os jornalistas não ouviram os jovens negros, na eventual presunção de que a credibilidade do seu testemunho seria irrelevante, ou talvez porque eles já nem estivessem localizáveis para testemunhar e não valia a pena procurá-los. Em todo o caso, a hierarquia da exclusão é evidente. Outro exemplo é a disponibilidade de alguns programas televisivos para documentarem rusgas a bairros, a partir do ponto de vista do interior de um carro da polícia, com perseguições e atos encenados para benefício da filmagem, procurando criar o mínimo de dramatismo que seria de esperar da analogia entre a vida real e as séries policiais na televisão, o que exemplifica como se formou a vulnerabilidade de alguma comunicação social a este mito do arrastão.

Neste caso, a banalidade perturbante foi uma construção ficcional. Mas o que nos interessa da história, mais do que os factos entretanto esclarecidos, é o código e o modo de comunicação que requer essa construção perturbante, seja ela verdadeira ou falsa, porque esta é a linguagem chave da informação de todos os dias.

Afinal, esta é a regra mais comum na comunicação social que faz sucesso. Outro exemplo: o Correio da Manhã torna-se participante num processo judicial para assim criar as notícias de que quer fazer manchete, usando o que ainda está em segredo de justiça e eventualmente manipulando a informação - qual é então o limite? Portanto, se pergunto se o jornalismo quer informar, não estou certo da resposta.

3.      A contaminação do jornalismo pelo comentarismo

A terceira questão que quero discutir é a forma como o comentário pelos próprios jornalistas se tornou parte do combate político e mesmo partidário. Já era assim, bem se pode dizer. Veja-se o exemplo do comentário económico nos canais generalistas: é totalmente monopolizado por jornalistas defensores das ideias liberais e da solução austeridade, André Macedo na RTP, António Costa na TVI e Gomes Ferreira na SIC. Não há no comentário económico nos canais generalistas nenhum lugar para a defesa de alternativas, mesmo quando o fracasso da austeridade e da liberalização financeira entra pelos olhos dentro. Sim, é assim, mas não tem que ser e não era assim em toda a comunicação social. Noutros órgãos de comunicação, há comentário pluralista e debate aberto.

Em todo o caso, estamos a viver um processo de radicalização. O director do Sol, o arquitecto Saraiva, ganhou galardões na literatura com um livro de escândalos de alcova e intriga política. O director do Correio da Manhã, Octávio Ribeiro, escreve sobre "as patas", para se referir a Mariana Mortágua e Catarina Martins. Camilo Lourenço, que passou a participar organicamente nas actividades do CDS e em nome do partido foi várias vezes aos Açores apoiar a sua campanha eleitoral, esquece-se de referir a sua vinculação, desconhecida da maioria dos leitores, quando assina a sua coluna de opinião. Há ainda, do outro lado do espectro político, o jornalismo panegírico.

Ou veja o seguinte exemplo de um texto de Paulo Ferreira, que foi editor de economia da RTP e agora escreve no Observador, ao elencar os malefícios da pretensa política proposta pela esquerda:

"Querem nacionalizar os sectores mais importantes e o mais que vier atrás deles, fazer do Estado o actor principal da economia, acabar com o mercado de capitais, destruir grupos económicos privados, colocar os sindicatos afectos a dirigir as empresas, retirar o país do euro, levantar barreiras proteccionistas para bens, serviços e capital, não pagar pelo menos parte da dívida pública, proibir negócios novos e inovadores para proteger os antigos que recusam adaptar-se, impedir qualquer avaliação de mérito que seja consequente para a carreira e salário dos trabalhadores, etc.". O etc. é maravilhoso, depois da "proibição de negócios novos e inovadores" e de "colocar os sindicatos a dirigir as empresas" e "impedir qualquer avaliação de mérito", entre outras travessuras assustadoras.

Veja-se outro exemplo. O director-adjunto do Expresso, Vieira Pereira, escrevia num texto de opinião que sente uma "forte náusea" quando se fala de nacionalização. Ou vejam-se mais dois exemplos deste jornal em que escrevo (e que tem um código rigoroso). Num editorial recente, o autor denuncia a "alegria tonta" do BE e PCP com a saída do euro. As palavras devem ter sido bem escolhidas, "alegria tonta". Noutros textos, Manuel Carvalho, já em registo de coluna de opinião, denuncia como os partidos de esquerda "dão largas ao seu sectarismo" (o exemplo é o de "cartazes imbecis e ofensivos"). "Imbecis e ofensivos".

Em particular, como sempre achei que as colunas de "sobe e desce" são uma arrogância que facilmente descamba em ajustes de contas ideológicos, sendo que nunca podem reclamar objectividade pois são o resultado da emoção e do imediatismo a que chamei o "estilo matarruano", tenho também a maior reserva sobre qualquer função de julgamento pela comunicação social, em editorial ou fora dele.

O julgamento sumário é sempre irredutível: tal acto político é "imbecil", tal iniciativa é "asinina", tal proposta é uma "náusea", tal ideia é "estúpida", tal dirigente política é "troll", "aumenta o grau de disparates", este tipo de categorias é demasiado definitivo para ser tomado a sério mas parece ser escrito a sério - e cada uma destas expressões foi de facto escrita por jornalistas, editorialistas e directores de órgãos de informação nos últimos meses.

As "setas" com que jornalistas classificam os actos políticos ou sociais são um exemplo dessa assunção do poder punitivo, mas existem outras formas de o exibir, aliás cada vez mais banalizadas: quando o editorial determina que tal acção partidária é uma "estupidez" ou que tal político é um "fracassado", quando um jornalista decreta que tal partido "não se leva a sério" (tudo isto são expressões usadas nos últimos meses em editoriais), chegamos ao ponto de não retorno, em que órgãos de comunicação social, mesmo os anteriormente chamados de "referência" pela sua observação de regras profissionais, se aproximam de uma câmara política.

Porque é que então estes jornalistas suicidam a sua profissão desta forma? Porque não acreditam que ainda haja espaço para o jornalismo. E essa descrença opera através de dois caminhos diferentes. O primeiro processo é contaminação da informação pelo comentário. O surgimento de canais de informação em cabo e a multiplicação dos conteúdos em diversas plataformas tecnológicas criou uma indústria de informação que produz em tempo contínuo, que por isso exige desesperadamente manter a máquina em funcionamento e, para tanto, faz equivaler as várias formas de comunicação através de um processo de mimetização (os jornais e revistas, tal como a rádio, parecem-se cada vez mais com a TV). Nesse contínuo de produção, a solução fácil é a combinação eclética de várias modos de informação (vejam-se os telejornais actuais de hora e meia de notícias, entretenimento, com gastronomia, espectáculo, socialites e mesmo sorteios) e a formatação da informação pelo comentário, que começou por ser uma matéria de especialistas (os de economia que todos os dias nos explicam os números da Bolsa, por exemplo) e passou depois a ser uma função dos próprios jornalistas. Uma notícia não existe se não é interpretada e comentada para os telespectadores ou leitores e se não é repetida infinitamente.

O segundo caminho, mais poroso, porventura mais importante, é a radical modificação do regime de informação. Na maior parte dos casos, quando chegamos à hora do telejornal ou à colocação em banca do jornal no dia seguinte, já muita gente leu, comentou, tuitou, postou e discutiu as notícias (salvo precisamente as que são exploradas por esse arquipélago raríssimo do jornalismo de investigação, que garante o privilégio de noticiar a notícia pelos seus jornalistas). Portanto, a notícia no telejornal ou no jornal do dia seguinte já só é comentário da notícia.

Os jornalistas, para além da corrida contra o tempo na informação online, tornam-se comentadores de si próprios, por acreditarem que o comentário é o que resta da função de jornalista. São portanto imensamente influenciados pelo que se está a escrever nas redes sociais acerca da notícia, como grandes vagas que oscilam para um lado e para outro. Os jornalistas tornam-se eles próprios antenas dos efeitos interpretativos que as suas notícias suscitam e isso é entretenimento mais do que informação. Os directores dos jornais e televisões vão explicar à antena as suas páginas e parece que ninguém nota a estranheza do facto. A comunicação deixou de ser notícia para se discutida pelo público e passa a ser interpretada, comentada e discutida pelo próprios jornalistas num efeito circular infinito.

A outra consequência é que, assim, terminada a notícia (ou prolongada agonicamente para ocupar tempo, o que tão frequentemente vemos na televisão: o clube de futebol jogou e é uma hora de telejornal, Ronaldo ganhou um prémio e revemos mais uma vez a sua carreira desde miúdo, etc.), só resta ao jornalista ser um comentador e daí a tentação óbvia de se tornar o juiz, o que apimenta a análise com a sentença. A agressividade do comentário significa que o jornalismo abdicou da busca ou da intenção de objectividade? Parece que sim.

Portanto, tudo inevitável? Nem pensar. Haverá twitter, mas há vida para além do twitter, a notícia não tem que ser a leve impressão, o efémero da frase sobre o acontecimento, a palavra choque para o classificar, tal como o jornalismo não deve ser condenado a desaparecer com a produção contínua da informação que se deixou contaminar por essa fronteira perigosa da defesa de pontos de vista interessados. A comunicação social sempre se reinventou perante a evolução do seu próprio meio: os jornais sobreviveram à rádio e a rádio sobreviveu à televisão. A televisão pode sobreviver à internet e ficará ao lado dos jornais e das rádios. Mas não precisava de aceitar limitar o jornalismo a uma função de pivot de continuidade.

O que fica atrás dito é testemunho de algum pessimismo, porque creio que o jornalismo está a obrar para a sua própria destruição - no dia em que a informação só for vista como entretenimento ou como análise crispada, passou a ser outra coisa. Portanto, o problema não é do Correio da Manhã, que diz ao que vem. O problema é dos que, querendo ter uma comunicação social de referência, navegam na facilidade. Têm, mas parece que aceitam que acabou.

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