Tortura no Brasil

Comunidade rompe o silêncio

Humilhação, tortura, mortes e assalto a moradores. Este é o saldo dos 14 dias de ocupação do Complexo do Alemão pelo BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), segundo os relatos da comunidade


Por Ana Lucia Vaz - Jornalistas Populares


Humilhação, tortura, mortes e assalto a moradores. Este é o saldo dos 14 dias de ocupação do Complexo do Alemão pelo BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), segundo os relatos da comunidade.

Pelo menos 300 pessoas lotaram a sede da Associação de Moradores da Grota, a SOS Comunidades, na terça-feira, dia 24 de outubro, para denunciar a violência do BOPE. Faixas decoravam o local. “Os moradores do Complexo do Alemão pedem respeito das autoridades policiais”. Ou pediam igualdade aos governantes porque “o povo da favela é igual ao da Zona Sul” ou porque “na favela também paga-se impostos”.

Com a palavra, a comunidade

“Eu presenciei o policial puxando uma faca e ameaçando o rapaz que estava fazendo entrega no caminhão, na frente da DPO (delegacia de polícia)”, contou Jorge Ribeiro, locutor da rádio da Comunidade da Alvorada. Jorge relatou ainda cenas de humilhação que presenciou, como a do garoto que “disse alguma coisa que eles não gostaram: - Tá com a boca muito suja! - E fizeram o garoto beber detergente.”

Eucimar, comerciante da comunidade da Grota, ainda parecia chocado. “Quando começou o tiroteio, tinha que fechar as portas do comércio. No momento em que eu fechei, os policiais arrombaram. E me fizeram colocar o rosto no chão, como se eu fosse um bandido, como se eu não pagasse os meus impostos. Naqueles 15 minutos eu me senti entre a vida e a morte. Eles começaram a invadir, a mexer nas coisas. E perguntaram o que tinha no terraço, e eu disse que tinha a minha cachorra. E ele disse: se você não for lá pegar ela, eu dou um tiro em você e nela. E ele me fez subir no terraço, no meio do tiroteio.

Depois desceu me carregando, como se eu fosse um escudo humano. Uma senhora pediu pelo amor de Deus pra ele me deixar e eu acabei conseguindo sair e fui pra casa dela e fiquei lá até às cinco horas. Isso começou às 9 horas da manhã. Eles ficaram usando minha loja como base. Usaram a geladeira, vasculharam tudo, deixaram tudo sujo...”

“Eles querem que a gente chame eles de doutor, mas nos abordam com agressão. Eles já te revistam te agredindo, de um jeito pra você revidar. Mas se você levantar a mão, é o passo pra ele meter a mão na tua cara”, reclama Roberto da SOS. “O cara toma um tapa na cara, amanhã ele pode dizer: eu vou arriscar minha vida, mas ninguém vai dar mais na minha cara. Que eu vou estar armado e vou dar também.”

Divino, manobreiro de água e vice-presidente da associação do Morro das Palmeiras, em Inhaúma, explica o motivo da falta de água. “Domingo eles me fizeram trabalhar pra virar água só para o DPO. De meio-dia às três e meia, debaixo do sol quente, eu tive que ficar sentado em cima da caixa. Eles disseram: - Enquanto nossa cisterna não encher, você não vai sair daí.

E esse domingo de novo. Eu disse que isso ia me prejudicar no meu ramal de água, mas eles disseram: - não quero nem saber! Ou você bota a água, ou a gente vai esculachar.”

Divino explica que a cisterna da comunidade é muito pequena e, se passa um dia virando água só para o polícia, é o caos. “Agora tem muita gente reclamando que está sem água. Quando eles fizeram o DPO, eles fizeram uma ligação de água só pra eles. Aí eles ligam a bomba sem autorização, eles fazem o que querem. Já me deram tapa, já me deram surra...”

O vereador Jorginho da SOS disse que recebeu denúncias sobre policiais que abriram máquinas de jogo e mesmo caixas de bares para roubar o dinheiro. Vagner, presidente da associação de moradores da Grota, contou que o funcionário da associação teve seu celular roubado por um policial que o abordou dizendo: “O que você prefere? Me dar o celular ou entrar na porrada?”

“As pessoas perderam seu direito de ir e vir” por causa do medo imposto pelas incursões do caveirão. Jorge Ribeiro contou que já viu o blindado entrar atirando mirar no transformador de luz, deixando a comunidade sem luz. As crianças têm medo de ir ou voltar da escola, os comerciantes têm medo de abrir suas lojas. “Estamos sitiados!”, desabafou um morador.

“Nós temos que acreditar em alguém”

O presidente da associação se referia à imprensa. “Nós temos que expressar nossos sentimentos. Temos que dar uma credibilidade à imprensa, porque ela é um meio de socorro, de mostrar pra sociedade o que estamos passando.”

Apesar do pedido de Vagner, quem participou da reunião da comunidade, sexta-feira, dia 20, sem a presença da imprensa, garante que os relatos foram mais fortes. No boca-a-boca, dia 24, muitos falavam no rapaz que foi preso dentro do caveirão, onde os policiais urinaram nele. Houve até quem falasse em tentativa de estupro. Mas, diante dos jornalistas, as denúncias foram mais leves. Apesar das denúncias, a maioria afirmava que o movimento não era contra a polícia, mas contra o “abuso de poder”.

Ainda não se tem o número de mortos. As entidades estão tentando contabilizar o saldo com segurança, para evitar informação contraditória.

Erros da mídia

Na difícil relação entre jornalistas e favelas, as vítimas do momento foram os motoboys. “Disseram que a gente é moto bomba. Não somos. Somos trabalhadores da comunidade, estamos aqui pra servir a comunidade, e qualquer pessoa que estiver precisando. É o nosso dia-a-dia. A gente precisa.

A gente mora numa comunidade, não é porque quer, é devido à nossa condição. Se eu tivesse condição, eu estaria morando na Barra, porque eu quero o melhor pra mim.

Quando a imprensa chega, ela tem que saber o que ela vai falar. Que eu saiba, a imprensa está aqui mais para ajudar. Ela devia ajudar, não atrapalhar. Mas eu e meus colegas de trabalho fomos prejudicados, fomos difamados”, reclamou Marcos Henrique.

“Pois é, completou Paulo Roberto, disseram que a gente transporta as coisas pro tráfico. Não é verdade. A gente leva as pessoas, esse é o nosso trabalho. Nós não vamos perguntar, quando a gente leva a pessoa, o que ela está levando.”


“Tanto um transporte alternativo como um coletivo, quando a pessoa entra, o motorista não vai perguntar: o que você tem aí na sua bolsa? O passageiro está pagando, ele vai levar”, completa Marcos Henrique.


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