Ucrânia: pôr a política no posto de comando

É mais que hora de a política reassumir seus espaços na crise ucraniana. Mas isso implica, em primeiro lutar, que se conclua rapidamente um cessar-fogo entre os governos de Kiev e os insurgentes. Todas as energias deveriam estar empenhadas nessa direção. Mas não é o que se vê; a histeria anti-Rússia está ativada em todos os veículos de toda a imprensa-empresa. 

29/8/2014, Jacques Sapir, Russeurope (fr., ing., esp., ru.)
http://russeurope.hypotheses.org/2710


É preciso lembrar aqui vários pontos que parecem estar sendo sistematicamente esquecidos nos comentários que se leem/ouvem sobre a situação na Ucrânia.

(1) O governo de Kiev empregou força desproporcional, que levou a morte de civis e vasta destruição nas cidades ocupadas pelos insurgentes. Foram muito numerosos os  bombardeios que não discriminavam entre alvos militares e civis. Pode-se mesmo suspeitar que os chefes militares das forças de Kiev quiseram deliberadamente punir as populações e visaram a alcançar efeito de limpeza étnica, provocando o êxodo de populações russófonas. Tudo isso configura "crimes de guerra". Chama a atenção que até há bem pouco tempo, de fato até sábado, 23 de agosto, não se leu/viu/assistiu a qualquer matéria sobre esses morticínios nas "grandes" cadeias de TV.

A imprensa-empresa francesa como de hábito - e tanto se orgulha disso -, sempre pronta a emocionar-se ante mortes e martírios e execuções, manteve-se, nesse caso, estranhamente silenciosa. Talvez porque as vítimas fossem "etnicamente" russos - como dizem? Acreditar que a Rússia, fosse o Estado ou a população russa, se desinteressaria da sorte de suas próprias populações foi ilusão e, pior, erro profundo.

De fato, crer que a Rússia poderia adotar atitude de estrita neutralidade ante esses eventos jamais teve qualquer fundamento. Até os dias mais recentes, a Rússia tomou uma posição de não beligerância. A presença de voluntários russos, cerca de 3.000, nas forças insurgentes, testemunha o profundo movimento de simpatia suscitado entre os russos pelo que foi feito contra as populações do leste da Ucrânia.

(2) Autoridades da OTAN têm alegado a presença de tropas russas; o mesmo tem feito, claro, o governo de Kiev. O governo russo desmente. A OTAN estima que, hoje, haja ali mil soldados russos. Vale a pena anotar desde já que, ainda que a OTAN tivesse razão quanto à presença de soldados russos, mil soldados não bastam para explicar o desmonte das forças militar de Kiev, observado nos últimos dias. Estima-se de fato em 50 mil o número de soldados (do Exército e da Guarda Nacional) ucranianos engajados nos ataques contra os insurgentes. Esses últimos não chegam a 15 mil homens. Se a presença de tropas russa fosse confirmado, só poderiam ter tido papel local e marginal nos combates acontecidos nesses últimos dias. A presença deles não explicaria as grandes derrotas que as forças de Kiev sofreram. Tampouco explica por que as forças ucranianas naufragam cada dia mais completamente ao sul de Donetsk e em torno de Mariupol.

Mapa 1 [na página]

Desse ponto de vista, é significativo que o Departamento de Estgado do Governo dos EUA fala hoje de "incursão" e não, como tantos jornalistas, de "invasão". Significa que o problema é político, não militar. É claro que, se for confirmada, essa presença de tropas russas não é aceitável; é claro que a Rússia deve retirar suas tropas imediatamente. A Rússia deve voltar a uma posição de não beligerância e os países da União Europeia e os EUA não se devem deixar arrastar para a armadilha que Kiev está criando: Kiev, bem evidentemente, está querendo internacionalizar o conflito.

(3) Palavras têm significado. Ao repetir incansavelmente a palavra "invasão", alguns jornalistas franceses cometem duplo erro. De um lado, reativam em nossa memória coletiva a imagem de invasões de que nosso país foi vítima em tantas circunstâncias da história. Quando se fala de invasão, pensa-se imediatamente em centenas de milhares de bhomens rompendo nossas fronteiras. Ora, isso, como se vê bem claramente, não é o que está acontecendo na Ucrânia. Por sua vez, ao fazê-lo, aqueles jornalistas abraçam a 'causa' do governo de Kiev. É o problema do pluralismo de opiniões dentro dos diferentes veículos das empresas-imprensa, sejam escritos ou audiovisuais.

(4) Esses mesmos jornalistas insistem que haveria material "russo" em mãos dos insurgentes, o que "provaria" envolvimento da Rússia a favor dos insurgentes. O que o 'jornalismo' não noticia é que os insurgentes já há vários meses vêm capturando quantidades importantes de equipamentos e de material de forças de Kiev. Os insurgentes falam de mais de 200 blindados (carros de transporte, mas também veículos de combate da infantaria e canhões automotores) capturados em combate.

[Entre 16-23/8, os insurgentes capturaram 14 T-64s (carros), 25 VCI (Veículos de Combate de Infantaria), 18 VTT (Veículos de Transporte de Tropas), 1 ARV, 1 lança-foguetes "Uragan", 2 obuseiros automotorizados "Gvozdika", 4 obuseiros D-30, 4 morteiros de 82-mm, DCA ZU-23-2, 33 veículos. Entre 20/6 e 23/8, foram capturados (além dos materiais destruídos) das forças de Kiev: 79 T-64s (carros), 94 VCI (essencialmente BMP-2s et BMP-3s), 57 VTT (essencialmente BTR-70s et 80 de oito rodas), 3 veículos blindados especiais, 24 lança-foguetes múltiplos (de 122-mm) BM-21 "Grad", 3 lança-foguetes "Uragan", 2 automotores de artilharia 2C4 "Tulip", 6 obuseiros automotores 2C9 "Nona", 27 obuseiros automotores 2C1 "Gvozdika", 14 obuseiros D-30, 36 morteiros de 82-mm, 19 carros duplos de DCA de 23-mm ZU-23-2, 157 viaturas e caminhões].

Cada vez mais, desde o início da insurreição, os insurgentes têm tomado arsenais e depósitos de armas do exército e da polícia, onde se depositava material - em geral antigo. No total, são quantidades significativas, o que permitiu-lhes equipar forças com as dimensões das dos insurgentes (cerca de 15 mil homens). Esses materiais são soviéticos, produzidos nos anos 1980e e no início dos anos 1990. Diferentes imagens que há mostram esse tipo de equipamento e, mesmo, materiais ainda bem mais antigos. Ninguém acreditaria na ideia de que a Rússia teria enviado aquele tipo de armamento aos insurgentes. Mas, sim, deve-se dizer que pode ter havido entregas pontuais de armas russas, seja em ação empreendida pelo governo, seja resultado de negócios ilegais e contrabando. É possível. Mas, até agora, o material que os insurgentes têm exibido parecem, sim, ter sido capturado em combate, das forças de Kiev.

A urgência de um cessar-fogo

Já disse aqui inúmeras vezes que é necessário um cessar-fogo e que é preciso encontrar soluções políticas, para evitar que essa crise se alastre. É preciso que o governo de Kiev aceite discutir com os insurgentes, o que equivale a reconher a legitimidade deles. Enquanto se recusarem, a situação só piorará, não só em solo, mas também politicamente. As tropas de Kiev, em vários pontos do front, estão em debandada, abandonando equipamento e munição. Outros estão, ainda hoje, cercados. O presidente Vladimir Putin da Rússia pediu aos insurgentes que abram um corredor pelo humanitário, pelo qual a Rússia possa evacuar os milhares de desertores. Fácil entender que a situação é absolutamente dramática.

Ao mesmo tempo, as forças de Kiev continuam a bombardear populações civis. É, pois, absolutamente urgente suspender os combates. Mas, embora talvez seja possível suspender o fogo pelos próximos dias, nada estará resolvido e será preciso cuidar para que os combates não recomecem. Isso implica que serão necessárias tropas de interposição, sob mandado da ONU, para estabilizar a situação em solo e evitar novas provocações dos dois lados - o que bastaria, como pretexto, para recomeçar os combates. Mas essas tropas não podem ser tropas de países da União Europeia, nem da OTAN, nem da Rússia.

Tropas de países da União Europeia e da OTAN seriam inaceitáveis para os insurgentes, e tropas russas, para Kiev. Será preciso pois recorrer aos países emergentes (Brasil, Índia, mesmo a China). É preciso pois aferir o peso da simbologia. Se "capacetes azuis" de países emergentes vierem a cumprir as funções de interposição na Europa, ser a demonstração mais clara, brilhante, a mais perfeita, do fracasso da União Europeia; e de sua incapacidade - exatamente na direção oposta de suas pretensões - para assegurar a paz. Será também demonstração da realidade do mundo multipolar do século 21.

E qual solução política?

Um cessar-fogo não é objetivo em si mesmo, por mais que, hoje, seja urgente parar os combates. O cessar-fogo deve permitir que surja uma solução política para essa crise. Ora, podem-se listar, desde o final do mês de fevereiro, a amplidão de erros, cada qual mais trágico que o anterior, que foram cometidos, pelos dirigentes seja em Kiev seja na União Europeia.

Ao recusar, nos primeiros dias de março, garantias sobre os direitos culturais e linguísticos das populações do leste da Ucrânia, os dirigentes em Kiev tornaram inevitável a insurreição. E ao recusar a hipótese de um federalismo ampliado, e engajar-se em hostilidades com a falsa "Operação antiterroristas", os mesmos dirigentes em Kiev provocaram uma ruptura, talvez definitiva, com os insurgentes.

Quanto aos países da União Europeia, demoraram demais para dizer ao governo ucraniano que não se tratava de recebê-lo na UE. Por isso, deixaram que crescessem ilusões perigosas dentro do governo em Kiev. Recusaram-se também, além disso, de fazer pressão decisiva sobre o governo em Kiev para que aceitasse, quando ainda era tempo (em abril ou em maio de 2014), um  federalismo estendido, conforme o federalismo assimétrico canadense (que beneficia o Québec). Nisso, esses dirigentes têm sua parte de responsabilidade da crise ucraniana.

Por fim, terceiro e decisivo erro, os dirigentes europeus tomaram como verdade demonstrada as mentiras de Washington sobre responsabilidades no drama do avião da Malaysian Airline (MH17) - e precisamente quanto há as provas mais resistentes contra a tese de Washington. - Com isso acabaram de convencer o governo russo de que há má fé sistemática da União Europeia, para tudo que tenha a ver com o dossiê ucraniano.

Hoje, quando já é absolutamente claro que nem EUA, nem OTAN, nem União Europeia irão militarmente ao socorro de Kiev, as opções abertas para negociações são, de fato, mínimas.

Essas opções reduzem-se a duas figuras: o reconhecimento da existência das autoridades que se insurgiram e da autonomia da Novorrússia no quadro da nação ucraniana (pelo modelo da província autônoma do Curdistão, hoje, no Iraque); ou uma independência de facto da entidade chamada Novorrússia, mas que não será reconhecida pela comunidade internacional. Teríamos então um novo "conflito gelado" [uma 'guerra fria', dentro da Europa]; e esse conflito gelado dentro da Europa viria acompanhado de tensões de longa duração com a Rússia. Isso, por sua vez, aceleraria o movimento pendular dos russos na direção da Ásia - com consequências comerciais importantes para os países da União Europeia.

Já disse e já escrevi muitas vezes e continuo convencido disso, que a melhor solução é uma grande autonomia no quadro nacional ucraniano. Essa solução permite que haja relações econômicas importantes. Ora, sem o carvão do Donbass, com situação de conflito gelado, as perspectivas econômicas para a Ucrânia são catastróficas. A União Europeia não terá meios para carregar a Ucrânia no colo. Os insurgentes devem também, por sua vez, aceitar o fato de fazerem parte nominalmente da Ucrânia, assim como o governo do Curdistão aceitou sua subordinação nominal ao governo do Iraque. Inúmeras razões sociais e humanas militam fortemente a favor dessa ideia.

Uma vez que a União Europeia fracassou na gestão do dossiê ucraniano, como também fracassou na gestão de muitos outros casos, a França criaria para si mesma uma posição honrosa (e lucrativa: nada impede que se aliem o útil e o honrado), se o mais rapidamente possível se posicionasse inequivocamente a favor de uma opção como a acima exposta. Se não o fizer, deve-se esperar que, passo a passo, imponha-se, como inevitável, a independência de facto da Novorrússia, com todas as consequências desastrosas que se pode prever que daí advenham, para toda a Europa. *****

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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