"Tem uma colônia israelense no lugar da minha vila"

As seguintes reportagens fazem parte de uma sequência produzida pelo Brasil de Fato sobre a Palestina. Nas próximas linhas, a esperança de refugiados  em retornar à terra de origem, resistindo ao exército israelense e às difi culdades do dia a dia
 
José Coutinho Júnior
enviado especial à Palestina


"Uma terra sem povo para um povo sem terra". Esse era o lema do movimento sionista quando começou a ocupar os territórios palestinos em 1948, dando origem ao Estado de Israel. A justifi cativa de que não existia ninguém antes dos judeus na Palestina, e que eles estavam apenas retornando à sua terra sagrada, é amplamente aceita até hoje para justifi car os confl itos que ocorrem no local. A ocupação violenta de 532 vilas palestinas em 1948 por Israel expulsou mais de 750 mil palestinos de suas terras, destruindo suas casas, para que fossem criadas no lugar colônias israelenses, que se expandem em número e tamanho a cada ano.


Nessas colônias, moram civis israelenses que recebem incentivos para permanecer na área, como casa, dinheiro para produção agrária pelo governo de Israel e redução da carga de impostos, além de treinamento militar e armas. Pela proximidade com áreas palestinas, essas colônias têm a função de pressionar os palestinos a abandonar suas terras. "A história ofi cial de Israel diz que os israelenses chegaram aqui e não tinha ninguém nas casas, então eles entraram e ficaram. A história palestina diz que não tinha ninguém nas casas porque os palestinos tinham medo das mortes e dos ataques que estavam ocorrendo nas outras vilas. Ninguém ia sair de suas casas e deixar seus pertences sem motivo", afirma Aysar Alsaif, refugiado  do campo de Deheishe.


Desde 1984, os palestinos expulsos se tornaram refugiados  e vivem em 59 campos espalhados pela Palestina, Líbano, Síria e Jordânia, na esperança de um dia retornarem a suas casas. Hoje, a população de refugiados  palestinos ultrapassa os 5 milhões.


Os refugiados  pensavam que, em algumas semanas, talvez meses, pudessem voltar para suas vilas e casas. Os anos foram passando, as tendas se tornaram casas e os campos de refugiados  surgiram. "De 1948 até 1956, moramos em barracas. Em 1956 ocorreu a maior nevasca da Palestina e muitas pessoas morreram de frio. A ONU então  construiu abrigos de 9m² para cada família, não importando se esta tinha um ou dez fi lhos. Era um quartinho, e para cada 15 casas havia um banheiro. Não tinha eletricidade e a água fi cava em um tanque na rua principal. Em 1970, fi zemos a eletricidade funcionar e criamos uma rede de esgoto. Percebemos que demoraríamos para voltar, então queríamos uma vida um pouco mais confortável", conta Alsaif.


A reportagem do Brasil de Fato visitou dois campos de refugiados  próximos a Belém: Aida e Deheishe. Em Ainda vivem 5 mil pessoas, sendo que duas mil são menores de idade, numa área de 700 mil metros quadrados [mesmo espaço da Ceagesp, em São Paulo]. O campo se encontra ao lado do muro construído por Israel para segregar e oprimir os palestinos. A população do campo vem de 27 vilas ocupadas por Israel em 1948. Deheishe tem uma população de 13 mil pessoas que vive em uma área de 500 mil quadrados. É uma das áreas com maior densidade populacional não só da Palestina, mas de todo o mundo. Os campos têm em sua entrada uma chave, símbolo dos refugiados.


Em 1948, muitos foram expulsos violentamente e não tiveram tempo de pegar seus pertences, enquanto outros, ouvindo as histórias da brutalidade israelense, trancaram suas casas e foram embora. A única coisa que levaram foi a chave. A ex-primeira-ministra Golda Meir, uma das fundadoras do Estado de Israel, declarou que quando os velhos que foram expulsos de suas vilas morressem, os jovens esqueceriam da terra de onde vieram e não teriam mais o desejo de voltar.


Resistência
No entanto, ao andar pelas estreitas vielas dos campos, não é isso que se percebe. As paredes e muros das casas estão cheias de frases contra a ocupação israelense. Pinturas dos líderes, mártires e presos políticos palestinos podem ser vistas a todo momento, além de grafites, charges e desenhos políticos denunciando a ocupação.
Os refugiados  que vivem na Palestina não se consideram cidadãos daquele território. Segundo Mohammed Youssef, refugiado  de Aida, "posso viver na Palestina, mas não vivo na minha vila. Minha vila se chama Deraban, é próxima a Jerusalém, e foi ocupada por Israel em 1948".


Por não se considerarem cidadãos palestinos, os refugiados que vivem no campo não pagam impostos ao governo da Autoridade Nacional Palestina (ANP), o que gera atritos entre as duas partes. "Não pertencemos a esse lugar, pertencemos às nossas vilas. Por isso a ANP se recusa a fornecer água ou eletricidade para o campo. Estamos sob tutela da ONU, o que legitima a nossa condição de refugiados, não da Autoridade Palestina", diz Aysar Alsaif. A vida no campo de refugiados é dura.


Em Aida, 65% dos refugiados estão desempregados - a maioria trabalhava no setor de construção em Israel. Após a segunda intifada, em 2003, e com o crescimento das ações de homens-bomba palestinos, eles foram proibidos de ir aos territórios israelenses. Hoje em dia, trabalham nas cidades mais próximas, em especial Belém, principalmente no setor de serviços.


As crianças não têm nenhum tipo de área de lazer, fi cando a maior parte do tempo na rua. Em Deheishe, além dos problemas com falta de água e luz, existe apenas um médico da ONU para atender toda a população. Não há privacidade, pois a área é muito pequena, e cada vez mais casas são construídas em cima de outras, pois os fi lhos dos refugiadosconstituem famílias e não têm condições fi nanceiras de morar nas cidades.
Mohammed Youssef conta que antes da construção do muro, o campo era maior. "Antes do muro, em 2000, lembro que ia jogar numa área, tinha uma praça para as crianças. Hoje o campo é muito pequeno, não há nenhuma área pública, as crianças brincam na rua. Quando a construção começou, houve muitos problemas. Os israelenses atiraram e mataram crianças".


Relatos
Mas o maior problema dos dois campos é, sem dúvida, a violência. O exército israelense não respeita o fato dos refugiados  estarem sob proteção da ONU ou de os campos se localizarem em territórios governados pela ANP. Em Aida, pela proximidade com o muro, há incursões todos os dias. Existe um portão azul em frente ao campo, do qual o exército sai para realizar prisões, jogar bombas de gás lacrimogênio e atirar nos refugiados.


Em julho deste ano, o exército quis entrar no centro cultural do campo, coordenado por Mohammed, pois como o prédio é alto, seria possível monitorar o campo com facilidade. Ele se recusou a abrir a porta, e foi alvejado com um tiro do soldado. Na porta do centro ainda há marcas das balas. Mohammed afi rma que "em 1948 Israel ocupou minha vila, matou pessoas, crianças. Hoje agem da mesma forma e fazem as mesmas coisas. Todas as famílias aqui têm histórias de parentes que já foram presos ou mortos pelo exército".


Mohammed, ao andar pelo campo, para em diversos locais e conta histórias chocantes relacionadas à violência do exército. "Esta torre do muro está queimada porque um dia era aniversário de um adolescente de 15 anos, que saiu para comprar seu bolo. Ao passar por aqui, um soldado que estava na torre o matou com um tiro. Muitas crianças, revoltadas com o que aconteceu, botaram fogo na torre. Depois disso, no mesmo dia, o exército de Israel veio e prendeu 35 crianças - a mais velha tinha 14 anos".


Ele conta que na época em que o muro estava sendo construído, muitos moradores do campo começaram a conversar com os trabalhadores, dizendo a eles que o muro só legitimaria ainda mais a opressão de Israel no campo, e que a construção deveria parar. O exército israelense rapidamente prendeu 186 pessoas que conversaram com os trabalhadores.  Destas, 100 eram crianças. Ao se aproximar da escola do campo, administrada pela ONU, Mohammed aponta para aonde deveriam estar as janelas.


"Toda escola do mundo tem janelas, certo? Em 2002, soldados nas torres israelenses atiraram nos vidros da escola e feriram 20 crianças. Assustadas, elas não queriam mais voltar à escola, porque diziam que não queriam morrer. A ONU perguntou ao exército por que eles atiraram na escola, se sabiam que lá só tinha crianças, e a resposta foi: 'não sabíamos que era uma escola ali'".


Ainda caminhando, Mohammed aponta para uma casa. "Aqui, Israel colocou uma bomba na porta, bateu, e quando a mulher abriu a porta para ver quem era, a bomba explodiu. Seis fi lhos estavam em casa nessa hora e viram a mãe morrer. Quando a ambulância palestina veio pegar o corpo, o exército impediu a passagem a balas. O corpo só foi retirado dois dias depois, quando a Cruz Vermelha conseguiu entrar".


Aysar Alsaif afi rma que em Deheishe não é diferente. Lá, o exército entra no campo pelo menos duas vezes por semana. "Às vezes entram para prender pessoas e danifi car casas. Há um mês atrás, prenderam uma criança. Eles também entram por nada, e defi nimos 'nada' como o treinamento dos recrutas do exército. A maioria das pessoas nesse campo já foi presa. Uma ou duas pessoas de cada família já passou algum tempo na prisão. Cinco pessoas que estão presas daqui, se somadas a quantidade de anos das condenações, daria mais de 500 anos de prisão, e duas estão presas para sempre".


Retorno
"Os refugiados  que desejam retornar para suas casas e viver em paz com seus vizinhos devem ser permitidos a fazê-lo, na data possível mais próxima, e os que escolherem não retornar devem ser indenizados por perdas de danos as quais, sob princípios da lei internacional de igualdade, devem ser cumpridos pelos governos ou autoridades responsáveis".


Esse é o artigo 11 da Resolução 194 da ONU, que prevê a volta dos refugiados  para seus territórios. No entanto, Israel ignora essa resolução. Um dos motivos é que, se Israel permitir o retorno dos refugiados, a população palestina irá praticamente dobrar: de 6 milhões, passarão a viver no mesmo território 11 milhões de palestinos.


Os refugiados  não veem uma solução simples para sua situação. Acreditam que enquanto Israel existir, não irão retornar para suas terras de origem. A luta dos refugiados é, dessa forma, uma luta de resistência contra a ocupação israelense.


Ambos os campos contam com uma organização social. Há um grupo de esportes e dança para as crianças nos dois campos, e em Deheishe existe um departamento de mulheres e um comitê de saúde para suprir a demanda da população por médicos.


"Seguimos resistindo. Sei que esse campo é simbólico, mas eu odeio morar aqui. Não tenho escolha, estou preso aqui, minha vila está a 10 minutos de distância, mas tem uma colônia israelense no lugar dela", diz Aysar Alsaif.


Segundo Mohammed, a ajuda de organizações de outros países é fundamental para que os refugiados  atinjam seus objetivos. "Procuramos paz, queremos voltar para nossas vilas, e tenho certeza que vou voltar. Mas não vamos conseguir sozinhos. Precisamos da ajuda e da solidariedade do mundo todo, para que nós palestinos possamos obter paz e voltar às nossas terras".


"Quando começamos a resistir por conta própria a tudo isso, nos chamam de terroristas e a lei internacional vai contra nós, mas quando tentamos aplicar esta lei aos crimes de Israel, ela não funciona. Não temos violência injetada no corpo. Somos normais, queremos amar, ser felizes, nos divertir. Mas é uma condição que nos leva à loucura. Não podemos viver por conta da ocupação, e quando reagimos, a comunidade internacional nos chama de terroristas que usam da violência, mas não olham para a ocupação que causa esse processo", afirma Aysar Alsaif. E, na saída do campo de Aida, uma nuvem de gás lacrimogêneo cobre a visão. "É o exército de Israel que atira o gás nas crianças que jogam pedras no portão. Eles não sabem o que é humano", lamenta Mohammed.
 
Brasil de Fato
Foto: Brigada Gassan Kanafani
http://www.iranews.com.br/noticia/11435/tem-uma-colonia-israelense-no-lugar-da-minha-vila

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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