Vida, luta e martírio do sargento Manoel Raimundo Soares (1)

Escrito por Mário Maestri e Helen Ortiz

Fundada há quase 400 anos na boca do Amazonas, a cidade de Belém domina o norte brasileiro. Hoje, sua região metropolitana supera os dois milhões de habitantes, vivendo em condições que lembram as que ensejaram, há mais de 160 anos, a luminar revolta social cabana. Em fins dos anos 1930, Belém mantinha seu perfil colonial, com seus suntuosos casarões e as mangueiras que, ao longo das ruas centrais, esforçavam-se para amainar o calor equatorial opressivo.

Na época, possuiria pouco mais de cem mil moradores, em geral de pele morena, herdada dos antigos senhores dessas regiões.

Em 15 de março de 1936, Etelvina Soares dos Santos pariu Manoel Raimundo, possivelmente em sua residência humilde. Como tantas outras mulheres paraenses fortes, criou o menino e seus dois irmãos desejando-lhes um futuro melhor como trabalhadores dignos. Manoel Raimundo mostrou-se logo menino muito inteligente e de fibra. Após concluir o primário no Grupo Escolar Paulino de Brito, cursou estudos técnicos no Instituto Lauro Sodré, enquanto trabalhava em oficina mecânica.

Em 1953, com apenas 17 anos, Manoel Raimundo abandonou a pacata Belém para morar com conhecidos na capital federal, então grande palco dos fortes confrontos políticos e sociais que dilaceravam o Brasil. Por se envolver neles, mais e mais, com a galhardia dos velhos guerreiros cabanos, o menino de dona Etelvina conheceria a morte, na luta por seus ideais, aos trinta anos, distante de sua terra natal, nas águas geladas do rio-estuário da capital do Brasil meridional.

A crise do nacional-desenvolvimentismo

Em 1950, três anos antes de Manoel Raimundo chegar ao Rio de Janeiro, o rio-grandense Getúlio Vargas elegera-se presidente da República, com 48,7% dos votos, pelo PSD, PTB e PSB, propondo continuar a industrialização nacional autônoma, apoiada no mercado interno. Durante a campanha eleitoral, atacara a "velha democracia liberal e capitalista" e defendera o "industrialismo" e os "direitos trabalhistas". Seu governo seria varado por graves conflitos e contradições.

A valorização do cruzeiro e a desvalorização do preço das matérias-primas no mercado internacional deprimiam o valor das exportações, exigindo o controle governamental das remessas de lucros e de dividendos, necessário à compra de tecnologia, de equipamentos, de petróleo etc. Como no Estado Novo, o getulismo expressava, sobretudo, a burguesia industrial e os proprietários agropastoris voltados para o mercado interno, e, agora, secundariamente, o operariado fabril, mantido na subordinação social, política e ideológica.

O governo Vargas iniciou-se com orientação nacional-desenvolvimentista moderada, oferecendo abertura aos capitalistas estrangeiros, desde que associados aos nacionais e respeitosos aos "interesses do país". Então, o Brasil tinha 52 milhões de habitantes. As classes industriais, médias e operárias haviam se fortalecido grandemente em relação ao Estado Novo, enquanto decrescera o poder dos exportadores, organizados, sobretudo, na UDN, que expressava igualmente o imperialismo e o capital financeiro.

Nova relação de forças

O novo governo Vargas ampliou a intervenção do Estado na economia que levara, no Estado Novo, à criação da Companhia Siderúrgica Nacional e da Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco. Foram fundados os bancos da Amazônia e do Nordeste; o BNDE e a Eletrobrás. Em 1951, ditou-se o monopólio estatal sobre o petróleo e minerais radioativos. Em 1953, a fundação da Petrobrás galvanizou os sentimentos nacionalistas da população e, a seguir, restringiu a hemorragia das contas públicas com as importações do petróleo.

A estreiteza do mercado interno e da poupança nacional emperrava o nacional-desenvolvimentismo. O mercado urbano era limitado e o rural, menor. Os salários fabris aproximavam-se ao mínimo necessário à subsistência. O prosseguimento do padrão nacional-desenvolvimentista burguês exigia maiores investimentos e maior consumo, através do fim do latifúndio (sem indenização), da generalização das leis trabalhistas, da elevação dos salários, de maior participação estatal na economia etc.

Essas medidas democrático-burguesas sequer interessavam aos industrialistas ligados ao governo, pois fortaleceriam o mundo do trabalho e quebrariam o pacto agrário-industrial, que assegurava a manutenção do latifúndio. Em agosto de 1954, o suicídio de Vargas assinalou o fim da capacidade e disposição do capital industrial nacional de garantir ao país desenvolvimento capitalista tendencialmente autônomo. Nesse momento, ele já abandonara maciçamente a política populista, com a qual subordinara os trabalhadores industriais urbanos aos seus interesses.

Rápida progressão

Em 1955, meses após a comoção nacional causada pelo suicídio de Getúlio Vargas, Manoel Raimundo Soares, com 19 anos, alistou-se no Exército, alcançando o posto de segundo sargento, após quatro promoções. Em 20 de setembro do mesmo ano, após namoro de apenas três meses, casou-se com a jovem Elisabeth Chalupp, mineira de origem humilde, criada por família estranha, trabalhando no Rio de Janeiro como operária industrial. Manoel Raimundo gostava de chamar a esposa de Betinha e Beta.

Falta-nos ainda informação mais precisa sobre a precoce e destacada participação do jovem sargento paraense nos conflitos vividos pela sociedade e, junto com ela, pelas Forças Armadas, nesses anos em que o país foi fortemente tensionado por iniciativas golpistas conservadoras, com destaque para a tentativa de deposição de Goulart, em 1961. Ensaio golpista derrotado que transformou o jovem governador sulino Leonel Brizola no principal líder popular-nacionalista e grande referência para o movimento dos suboficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Desde o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), Manoel Raimundo começara a despontar como militante de vanguarda da luta pela organização sindical e política dos suboficiais do Exército. Araken Vaz Galvão, seu companheiro de farda e de luta, assinala que, por volta de 1958, ele vivia em Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e servia, como escrevente, no Batalhão Escola de Saúde, em Magalhães Bastos.

Nesse então, Manoel Raimundo exercia o que Araken definiu como "liderança suave, relacionada com os problemas" dos sargentos discutidos no Clube da classe, transformando-se, logo, em um dos "principais fundadores" do "Movimento dos Sargentos", assim batizado por ele. Além de outras reivindicações sindicais e democráticas, os suboficiais do Exército mobilizavam-se pelo direito de progressão ao oficialato; pelo direito de casamento civil, sem autorização do Exército; pela estabilidade após cinco anos de serviço; pela elegibilidade ao parlamento dos suboficiais.

Por sua cultura, inteligência e decisão, Manoel Raimundo era referência para seus companheiros de farda. O ex-subtenente pára-quedista do Exército Jelsi Rodrigues descreve-o como homem de estatura baixa e corpo franzino, "cabeçudo", de "bigodinho", de pele levemente morena, habitual do paraense, muito culto e sobremaneira corajoso. O ex-sargento Araken Galvão, seu particular amigo, lembra que era um "grande orador" e "neurótico por cultura", tendo procurado intelectuais como o sociólogo Vinícius Caldeira Brant, o filósofo Álvaro Vieira Pinto, entre outros, para ampliar os horizontes do movimento dos sargentos. Antes mesmo do golpe, Manoel Raimundo interessava-se pela literatura marxista, lendo e divulgando Marx, Engels, Lênin.

Na ante-sala do golpe

No mínimo desde 1963, Manoel Raimundo preocupava-se com a necessidade de organizar resistência ao golpe militar, que se aproximava, tendo procurado preparar as condições para resistência, na Serra do Mar, nas proximidades do Rio de Janeiro, possivelmente inspirado na experiência cubana. O que lhe ensejou inquérito no Exército, por desvio de armas e cooptação de sargentos.

Devido à manifestação de sargentos do Exército, em 11 de maio de 1963, no Sindicato dos Comerciários, no centro do Rio de Janeiro, Manoel Raimundo sofreu pena disciplinar e foi transferido, do Rio de Janeiro para Campo Grande, no Mato Grosso, o mesmo ocorrendo com seus companheiros, promotores da reunião, do Comando Geral dos Sargentos, enviados para o mesmo estado e para outras destinações.

Do manifesto de posições muito duras lido quando da manifestação, faria parte frase de autoria de Manoel Raimundo que dizia: "O martelar das oficinas, o ribombar dos tambores confundir-se-ão com o choro das crianças famintas. O instrumento de trabalho dos sargentos é o fuzil". A repressão afastou da capital da República grande parte do núcleo central do Comando Geral dos Sargentos.

O golpe de Estado de 1964

Em 1964, as burguesias industrial e financeira nacionais romperam com o projeto nacional-desenvolvimentista autônomo, para impor padrão de acumulação de capitais através de maior integração ao capital mundial; super-exploração do trabalho; orientação do consumo aos segmentos ricos nacionais e ao comércio mundial etc. O golpe iniciou em Minas Gerais, em 31 de março, chefiado por militar ex-integralista, com o apoio dos EUA, que preparou intervenção no Brasil, caso houvesse resistência – Operação Brother Sam.

Em Porto Alegre, Leonel Brizola tentou reviver a Legalidade, apoiado pelo comandante do 3º Exército, pela Brigada, pelos suboficiais do Exército e da Aeronáutica, por populares. Em 2 de abril, já na capital sulina, João Goulart negou-se a chefiar a resistência, permitindo que o golpismo se instalasse praticamente sem oposição. João Goulart viajou para uma sua estância em São Borja e, dali, para o Uruguai. O PCB, única organização de esquerda com força sindical e popular, subordinara a oposição ao golpismo à direção de Goulart e ao esquema militar organizado em torno de altos membros das forças golpistas.

Políticos e historiadores defenderam e defendem a negativa de João Goulart de opor-se ao golpe como ato que impediu "derramamento de sangue" no Brasil, tese proposta pelo próprio ex-presidente. A imposição da ditadura sem resistência ensejou a maior derrota histórica que o mundo do trabalho e da democracia jamais viveu no Brasil, com gravíssimas conseqüências para o país, para a América Latina e para o mundo, que se mantêm até hoje.

Golpismo em marcha

Após o golpe e o "Ato Institucional" n.º1, de 9 de abril, ao qual seguiriam outros, a alta oficialidade militar interveio nas associações sindicais e profissionais, no legislativo, no executivo eno judiciário; expurgaram, prenderam, torturaram opositores, que abandonaram comumente o país, quando puderam, sobretudo pelo Uruguai, onde se encontravam João Goulart e Leonel Brizola, com as relações políticas e pessoais cortadas.

O golpe militar, apoiado pelas classes proprietárias do Brasil, objetivava relançar o padrão de acumulação de capital, a partir de bases distintas das nacional-desenvolvimentistas, que exigiam, como visto, reformas estruturais não aceitas mesmo pelo capital industrial nacional. A ditadura militar expressava também a necessidade dos capitais externos, sobretudo estadunidenses, de intervenção mais direta no país, onde haviam conquistado maiores posições.

Sob a direção do general Castelo Branco, expressão do capital financeiro e imperialista, o governo implementou política liberal e recessiva, que estendeu a seguir o descontentamento até mesmo a setores que haviam apoiado o golpe, com destaque para as classes médias, ensejando a primeira tentativa de reunificação de oposição anti-ditatorial política superestrutural, a fracassada Frente Ampla, de 1966, promovida sobretudo por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Mário Maestri, historiador, é doutor em História pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Este endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email

Helen Ortiz, historiadora, é mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul.

Publicado em: O direito na história: o caso das mãos amarradas. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, 2008. pp. 177-200.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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