Socorro! Cessar-fogo!

O chefe do governo do Hamás na Faixa de Ghaza, Ismail Haniyeh, fez contato com um jornal israelense e propôs um cessar-fogo. Fim dos Qassams, fim dos morteiros, fim dos homens-bomba, fim das incursões militares na Faixa de Ghaza, fim dos ataques a “alvos políticos” e execução de líderes. Um completo cessar-fogo. E não só na Faixa de Ghaza, mas também na Cisjordânia. Os líderes militares ficaram furiosos.


Uri Avnery*

Tradução de Caia Fittipaldi

ESQUEÇAM os Qassams. Esqueçam os morteiros. São nada, comparados com o que o Hamás detonou sobre nós, esta semana!


O chefe do governo do Hamás na Faixa de Ghaza, Ismail Haniyeh, fez contato com um jornal israelense e propôs um cessar-fogo. Fim dos Qassams, fim dos morteiros, fim dos homens-bomba, fim das incursões militares na Faixa de Ghaza, fim dos ataques a “alvos políticos” e execução de líderes. Um completo cessar-fogo. E não só na Faixa de Ghaza, mas também na Cisjordânia.

Os líderes militares ficaram furiosos. Quem ele pensa que é, este sujeito? Pensa que pode nos deter, com seus truques sujos?


ESTA É a segunda vez, em poucos dias, que há um atentado contra nossos planos de guerra.


Há duas semanas, a comunidade de inteligência dos EUA declarou, em relatório oficial, que o Irã havia suspendido, há quatro anos, todos os esforços para produzir uma bomba nuclear.

Em vez de suspirarem aliviadíssimos, os militares israelenses reagiram com fúria explícita. Desde então, todos os colunistas de jornal em Israel, e toda a gigantesca rede de jornalistas alugados, em todo o mundo, tentam desqualificar aquele relatório. É falso, não tem fundamento, é motivado por uma agenda secreta, sinistra.


Milagrosamente, o relatório sobreviveu ileso. Sem um arranhão.


O relatório, pelo que se vê, varreu da mesa de negociações qualquer possibilidade de um ataque norte-americano ou israelense contra o Irã. E, agora, aparece a iniciativa pró-paz, de Haniyeh, e põe em perigo toda a estratégia do establishment militar israelense para a Faixa de Ghaza.


Outra vez, mobilizou-se o coro dos militares. Generais de uniforme e de pijama, correspondentes militares, correspondentes políticos, comentaristas de todos os tamanhos, gêneros e cores, políticos de esquerda, políticos de direita... todos estão atacando a proposta de Haniyeh.


A mensagem é: não podemos aceitar esta proposta, de jeito nenhum! Não devemos sequer considerá-la! Ao contrário: a proposta mostra que o Hamás está fraco, quase derrotado. Portanto, é hora de intensificar a guerra contra eles, apertar ainda mais o bloqueio de Ghazaa, matar mais líderes – e, aliás, por que não assassinar o próprio Haniyeh? O que estamos esperando?


Opera aqui o mesmo paradoxo inerente ao conflito, como sempre operou, desde o início: se os palestinos estão fortes, é perigoso fazer a paz com eles. Se estão fracos, não é preciso fazer a paz com eles. De um jeito ou de outro, é preciso derrotar os palestinos.


"Não há o que discutir!" Ehud Olmert declarou, imediatamente. Então, está tudo bem e o massacre pode prosseguir.

E O MASSACRE prossegue. Na Faixa de Ghazaa e nas regiões próximas, prossegue uma pequena guerra, cada dia mais cruel. Como sempre, os dois lados alegam que apenas respondem às atrocidades cometidas pelo outro lado.


O lado israelense diz que reage aos foguetes Qassams e aos morteiros. Que Estado soberano toleraria ser bombardeado por mísseis que chovem sobre ele, vindos do outro lado da fronteira?

É verdade, milhares de mísseis mataram um número muito pequeno de pessoas. Mil vezes mais pessoas morrem ou são feridas em acidentes nas estradas. Mas os Qassams semeiam o terror, os habitantes de Sderot e arredores exigem vingança e proteção para suas casas, o que custaria uma fortuna.


Se os Qassams realmente perturbassem os líderes políticos e militares israelenses, eles aceitariam a proposta de cessar-fogo. Mas os líderes não estão preocupados com o que aconteça à população de Sderot, localizada na “periferia” geográfica e política, longe do centro do país. Sem qualquer peso econômico ou político. Aos olhos dos líderes, o sofrimento de Sderot é, afinal de contas, tolerável. O sofrimento de Sderot, sobretudo, tem um lado muito positivo: serve como pretexto perfeito para a ação do exército.

O OBJETIVO ESTRATÉGICO de Israel em Ghaza não é acabar com os Qassams. Seria tudo exatamente igual, mesmo que nem um único Qassam fosse jamais disparado contra Israel.


O verdadeiro objetivo é quebrar os palestinos, quer dizer, quebrar o Hamás.


O método é simples, chega a ser primitivo: apertar o cerco por terra, mar e ar, até que a situação fique absolutamente intolerável na Faixa.


A falta absoluta de suprimentos, exceto um mínimo indispensável para evitar a fome absoluta, reduziu a vida a padrões desumanos. Não há nem importação nem exportação de praticamente coisa alguma, a vida econômica está paralisada, o custo de vida subiu à estratosfera. O suprimento de combustível foi reduzido à metade, e há planos para reduzi-lo ainda mais. O suprimento de água pode ser arbitrariamente suspenso.


A atividade militar está aumentando gradualmente. O exército israelense faz incursões diárias, empregando tanques e carros blindados, mordendo as franjas das áreas não habitadas, para empurrar os combatentes palestinos para terreno aberto. Todos os dias são assassinados de cinco a dez combatentes palestinos – e, todos os dias, também morrem civis. Todos os dias há seqüestros de moradores da região, dos quais se tenta extrair informações. O objetivo declarado é manter o atrito, o desgaste, a pressão, e, também, talvez, preparar a re-conquista da Faixa – por mais que os chefes militares tentem esconder isto a praticamente qualquer custo.


Um a um os líderes e comandantes palestinos estão sendo assassinados nos ataques aéreos. Toda a Faixa está exposta aos aviões, aos helicópteros de combate e aos mísseis teleguiados israelenses. Tecnologia de última geração permite rastrear os “filhos da morte”, os marcados para morrer, e enorme rede de informantes e agentes, alguns manobrados por coação e chantagem organizada há muito tempo, completam o quadro.


Apertando todos estes parafusos, os chefes militares esperam conseguir que a população local levante-se contra o Hamás e outras organizações de combatentes. Então, a oposição palestina contra a ocupação entrará em colapso, e toda a população palestina render-se-á e estará à mercê das forças ocupantes, que poderão fazer o que bem entenderem – expropriar terras e propriedades, ampliar as colônias, construir muros e bloqueios e fatiar a Cisjordânia em vários enclaves semi-autônomos.


Neste plano israelense, o papel reservado à Autoridade Palestina é o de subcontratada dos serviços de segurança de Israel, em troca de uma torrente de dinheiro que dará à AP o controle sobre os enclaves.


Ao final desta fase do conflito Israel-Palestina, o povo palestino estará pulverizado e impotente para resistir à expansão israelense. O impasse histórico entre a força invencível (a empreitada sionista) e o objeto inamovível (a população palestina) terminará na aniquilação da oposição palestina.

PARA CONSEGUIR sucesso nesta operação, é indispensável jogar um sofisticado jogo diplomático. Em nenhum caso os israelenses podem perder o apoio da comunidade internacional. Ao contrário, o mundo todo, liderado pelos EUA e pela União Européia, deve apoiar Israel e incluir a ação israelense como resistência ao terror palestino, definido, por sua vez, como parte do “terrorismo internacional”.


A conferência de Annapolis e, depois, o encontro de Paris, foram passos importantes nesta direção. Quase todo o mundo, inclusive parte do mundo árabe, entrou em sintonia com o plano israelense – talvez ingenuamente, talvez cinicamente.


Depois de Annapolis, as coisas decorreram conforme o esperado: nenhuma negociação foi iniciada, os dois lados apenas jogando para a platéia. Na primeira hora do dia seguinte depois de Annapolis, o governo de Israel anunciou grandes projetos de construção além da Linha Verde. Quando Condoleezza Rice resmungou algumas palavrinhas de protesto, anunciou-se que os planos haviam sido suspensos. De fato, continuam a pleno vapor.


Como Olmert e seus colegas conseguem enganar o mundo inteiro? Benjamin Disraeli disse uma vez, sobre um político britânico: "O Honorável e Respeitabilíssimo Gentleman surpreendeu seus adversários quando tomavam banho de mar e roubou-lhes as roupas.” Nós, os pioneiros da Solução de Dois Estados, podemos dizer o mesmo sobre nosso governo. Ele roubou nossa bandeira e enrolou-se nela para esconder suas intenções.


No longo prazo, há hoje consenso planetário de que a paz em nossa região tem de basear-se na co-existência de um Estado de Israel e um Estado Palestino. Nosso governo escorregou para o nosso lado. Mas hoje explora este consenso, com outro objetivo: que Israel comande tudo, depois que a população palestina for pulverizada e presa em vários enclaves miseráveis. Esta é, de fato, a Solução Um Só Estado – o Grande Israel – disfarçada em Solução de Dois Estados.

ESTE PLANO pode ter sucesso?


A batalha de Ghaza está em curso. Apesar da enorme superioridade militar do exército de Israel, a batalha não está decidida. Até os comandantes israelenses sabem que o Hamás está se fortalecendo. Fazem treinamento intensivo, têm armamento cada vez mais eficaz, são determinados e muito corajosos. Pelo que se vê, a queda de comandantes e combatentes, sob massacre continuado, não está afetando a moral do Hamás. Esta é uma das razões pelas quais o exército de Israel não está investindo no movimento para re-conquistar a Faixa de Ghazaa.


Na Faixa, as principais organizações contam com apoio da opinião pública – tanto a manifestação em homenagem a Yasser Arafat organizada pelo Fatah, como a contra-manifestação organizada pelo Hamás arrastaram centenas de milhares de manifestantes. Mas parece que a grande maioria dos palestinos deseja a unidade nacional para que, juntos, todos lutem contra a ocupação. Não querem fanatismo religioso, mas tampouco tolerarão líderes que cooperem com a potência ocupante.


O governo pode estar cometendo erro muito grave, se contar com a obediência do Fatah. Em disputa contra o Hamás, o Fatah pode surpreender-nos, e voltar a ser organização de combate, outra vez. Nenhum rio de dinheiro para a Autoridade Palestina conseguirá evitar que isto aconteça. Ze’ev Jabotinsky foi mais arguto que Tony Blair, quando disse, há 85 anos, que é impossível subornar uma nação.

Se o exército de Israel invadir Ghaza para tentar a re-conquista, a população cerrará fileiras ao lado da resistência. Ninguém pode prever como a população reagirá, se a miséria aumentar. Os resultados podem ser completamente inesperados. A experiência de outros movimentos de libertação nacional mostra que a miséria, assim como pode quebrar a resistência, pode fortalecê-la.


Esta, em poucas palavras, é a prova existencial a que está submetido o povo palestino – a prova mais difícil, talvez, desde 1948. É também um teste para a política estreita de Ehud Olmert, Ehud Barak, Tzipi Livni e dos comandantes militares.


Nada sugere que se chegará ao cessar-fogo. Primeiro, Olmert rejeitou a proposta. Depois, negou a rejeição. Depois negou a negativa.


Os habitantes de Sderot provavelmente aceitariam, satisfeitos, um cessar-fogo. Mas... quem se deu o trabalho de consultá-los?


*Uri Avnery é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).

Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974.

Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).

Help! A Cease Fire! 22/12/2007, em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html . Copyleft.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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