As crises dos EUA

Os povos amantes da Paz e da Natureza devem comemorar com otimismo a derrota do imperialismo estadunidense na conferência de Bali. Em sua arrogância imperial, o governo de George Bush quis sabotar o acordo sobre o clima e deu as costas ao mundo.


por Umberto Martins*

Os povos amantes da Paz e da Natureza devem comemorar com otimismo a derrota do imperialismo estadunidense na conferência de Bali. Em sua arrogância imperial, o governo de George Bush quis sabotar o acordo sobre o clima e deu as costas ao mundo. Colheu um amargo isolamento e viu-se constrangido a retroceder, acatando o chamado Mapa do Caminho proposto pela China, Brasil e outros países em desenvolvimento, e a sugestão indignada de Kevin Conrad, representante da Papua Nova Guiné: “se não estiverem dispostos a liderar, por favor saiam do caminho”.


Foi mais uma prova da desmoralização do império, percebida com muita lucidez e regozijo por Oscar Niemeyer ao comemorar 100 anos. O revés do maior inimigo dos povos não é um fato isolado no cenário político mundial. Deve ser interpretado num contexto mais amplo, marcado pela crise da hegemonia dos EUA no sistema

imperialista mundial.

Inflação do dólar

Observando a conjuntura internacional com um pouco de imaginação podemos ver que os EUA não estão vivendo hoje apenas uma crise econômica cíclica, passageira, como em outros momentos do passado, mas um complexo de crises, com diferentes características, que ocorrem simultaneamente, contaminam a geopolítica e certamente estão interconectadas.

Podemos enxergar, em primeiro plano, a chamada crise imobiliária, presença cotidiana obrigatória nos noticiários econômicos, que contém elementos de uma perturbação cíclica, originária de um boom de investimentos (iniciado em 1997) e uma superprodução relativa no ramo da construção civil, que por seu turno incitou uma farra indigesta no sistema financeiro internacional. Esta crise, em curso, pode ter desdobramentos mais sérios, muito embora as autoridades estejam utilizando todos os instrumentos disponíveis de política econômica para debelá-la.

Temos também a crise do padrão dólar, sinalizada não só pela sua queda persistente e a ascensão, decorrente, do euro, como também pela crescente desconfiança em relação à capacidade do dinheiro fiduciário dos EUA continuar exercendo as funções de moeda internacional. A inflação do dólar em todo o mundo está obviamente interligada à crise imobiliária, conjuntural, apesar de transcorrer numa dimensão de tempo diferente e ter caráter estrutural.


A estagflação (uma combinação heterodoxa de recessão e inflação) que pode estar a caminho, segundo o ex-presidente do FED (Federal Reserve, banco central dos EUA), Alan Greespan, certamente tem a ver com a depreciação do dólar, que é influenciada, de outro lado, pela redução dos juros e o bilionário socorro aos bancos, iniciativas adotadas pelas autoridades monetárias na esperança de prevenir a recessão.

Novo cenário político


Finalmente, a derrota dos EUA na conferência de Bali revela uma crescente contestação à liderança dos EUA nos fóruns internacionais e não é o único fato a sinalizar que o imperialismo vive uma crise política. Contam igualmente, neste sentido, a nova conjuntura política da América Latina e o notável desgaste provocado pela guerra criminosa contra os povos do Iraque e do Afeganistão.

O cenário era outro há pouco mais de uma década. Naquele tempo o dramático desfecho da guerra fria inspirou a ideologia do fim da história e a suposta emergência de um império em substituição ao imperialismo (onde uma multidão equívoca teria tomado o lugar das classes sociais) parecia justificar o unilataralismo ianque.

Uma hegemonia cadente

Tudo isto configura o que podemos considerar, sem incorrer em exageros ou catastrofismos, uma crise de hegemonia que afeta o sistema imperialista mundial como um todo.


Alguns estudiosos já notaram que o poder no imperialismo moderno, sobretudo das potências capitalistas hegemônicas, é exercida basicamente através de duas formas, combinadas e contraditórias: a persuasão e a força.


O poder persuasivo, de convencimento político, depende muito do dinheiro, da liderança econômica e de propostas e iniciativas em que, pelo menos em certa medida, ocorra uma comunhão de interesses entre o líder e os liderados.

Do dinheiro ou do poder econômico provém o fundamental da capacidade política de persuadir, ou seja, de convencer politicamente, pacificamente, sem precisar recorrer às armas ou exibir superioridade militar. Os lobistas não teriam maior dificuldade em compreender esta dialética entre economia e política, que faz da diplomacia (para lembrar Lênin) uma expressão concentrada dos interesses econômicos das nações.
Os fatos sugerem que o poder persuasivo dos EUA é cada vez menos convincente, o que no fundo reflete o declínio da liderança econômica dos EUA no mundo.

Antigamente, Tio Sam tinha o dólar e o dólar era o dinheiro do mundo. Acreditava-se que isto lhe dava a faculdade de dominar o processo de reprodução ampliada do capital em todo o mundo, o que nunca foi verdade.

De todo modo, hoje a situação é outra. Se os mercados cambiais continuarem no rumo atual, o tempo estará dando razão ao presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, para quem o dólar já não passa de “um pedaço de papel sem valor”.

O poder das armas

Já a força, a outra forma de exercer o domínio imperialista, deriva obviamente do poder militar que, embora dependente da força econômica, goza de relativa autonomia. É a força bruta das armas. A este respeito não cabem dúvidas acerca da supremacia praticamente absoluta dos EUA.

A experiência histórica está sugerindo que ao perder a capacidade de convencimento político a potência hegemônica tende a recorrer com maior freqüência e virulência à força bélica para manter as coisas sob seu domínio. Procura instaurar de modo unilateral o direito do mais forte em detrimento das regras do direito internacional e do multilateralismo.

Isto ficou claro com a decisão tomada pelo governo Bush de invadir o Iraque, em 2003, com falsos pretextos e a despeito da oposição do Conselho de Segurança da ONU e de grandes potências como a China, Rússia, França e Alemanha, assim como dos povos, que realizaram manifestações massivas por todo o mundo contra a guerra imperialista.

Sob muitos aspectos o Iraque de Saddam Hussein representava um desafio aberto às pretensões do imperialismo estadunidense no Oriente Médio. Saddam fechou contratos com a China, a França e a Rússia estimados à época em 40 bilhões de dólares para exploração de suas ricas minas de petróleo.

Além disto, ele ousou substituir o dólar pelo euro como padrão de preço, meio de pagamento no comércio exterior e reserva internacional, o que se revelou lucrativo enquanto durou mas certamente não agradou os falcões da Casa Branca e do Pentágono. A resposta foi a guerra.


Corrida armamentista

A intenção de assegurar a hegemonia em crise pelo uso contínuo da força também transparece no orçamento militar de 696 bilhões de dólares para 2008 (US$ 189 bilhões para financiar as guerras no Iraque e Afeganistão) solicitado por Bush dia 15 de dezembro e aprovado pelo Senado. Os EUA respondem por cerca de 50% dos gastos militares realizados em todo o mundo.

Com isto, o desmoralizado império de Bush está instigando uma nova corrida armamentista no mundo. É muito pouco provável que esta orientação belicista produza uma recomposição da hegemonia ianque, mesmo porque trata-se de um contra-senso econômico.

Conforme notou o historiador Eric Hobsbawn, uma das provas da decadência econômica dos EUA consiste no fato de que o Estado norte-americano depende de dinheiro estrangeiro para financiar suas aventuras. Isto significa que a dívida externa e o déficit em conta corrente é a contraface da guerra no Oriente Médio.

Qualquer economista dotado de bom senso sabe que este tipo de financiamento não pode durar eternamente. A verdade cambial que vem sendo insinuada pela queda do dólar e a inevitável correção do déficit comercial (que já pode estar em curso) tornarão as coisas bem mais difíceis para os imperialistas neste aspecto. De resto, os impasses e a perspectiva de derrota no Iraque e no Afeganistão evidenciam os limites do poder militar na presente época.

A crise da hegemonia americana inaugura um processo de transição histórica carregado de incertezas e incógnitas. A ordem imperialista fundada na supremacia econômica e política dos EUA caducou, mas ninguém sabe o que virá em seu lugar.

No futuro o dólar será substituído pelo euro, pelo yuan, pelo yen ou por uma outra moeda internacional? Teremos uma nova potência hegemônica ou presenciaremos o ansiado fim do sistema capitalista-imperialista?

O desfecho da transição não virá em curto prazo. Tampouco virá sem lutas e confrontos. Viveremos uma era perigosa, com certeza, mas também promissora para os povos. Como já disse um poeta: nada será como antes, amanhã!

*Umberto Martins , Jornalista, membro da Secretaria Sindical Nacional do PCdoB.

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
X