Moralismo neoliberal e a Europa-ficção: uma perspectiva pós-colonial

A crise grega revela o modo pelo qual o neoliberalismo continua a instrumentalizar a crítica interna que o colonialismo e o neoconservadorismo haviam aperfeiçoado.


Dentro e fora da Grécia muito se tem dito em semanas recentes sobre o amadorismo do atual governo grego, de sua diplomacia temerária, do estilo confrontacional, da inabilidade para seguir regras, o quanto maltratam e castigam a verdade. Digamos que se aplique. O caso é que, se se toma a sério essa crítica, então os funcionários da União Europeia parecem ainda piores do que seriam, se nada disso se aplicasse.

Mostram-se perfeitos incompetentes petulantes incapazes de lidar com colega menos careta (Yannis Varoufakis), incomodados por alguém não usar gravatas, intrusivos na insistência para que Alexis Tsipras 'se vestisse' adequadamente, tão pouco profissionais que deixam o destino das nações pendurados por um fio, destroem cidades e vidas, porque foram apanhados num confronto com alguns colegas dos quais aquela gente não gosta.

Mais importante que isso: as repetidas invocações a regras de etiquetas, códigos, ordenamentos e a repetição de clichês sobre 'honestidade fiscal' e controle 'austero' das próprias despesas domésticas são parte da economia da moralidade de um neoliberalismo que manipula as pessoas e as induz a crer que nações possam ser governadas como famílias e lares e que a vida é um chá-da-tarde, onde tudo estará sempre bem se se estica o dedo mínimo ao erguer a xícara de chá com a exigida delicada pose.

Um dos maiores sucessos do neoliberalismo tem sido o de convencer as pessoas de que se todo mundo se comportasse bem, com bons modos e 'ética', a vida seria melhor. Se há gente que caia nessa conversa, é porque ela lhes dá a ilusão de serem parte de um empreendimento cujo prêmio é o próprio empreendimento. O capitalismo nos diz que estamos no controle de nosso destino e podemos inventar-nos e reinventar-nos à vontade, e, nessa barganha, o capitalismo ganha dinheiro.

Que nada disso começou com os eventos recentes, não é relevante. Se a ficção do empreendimento econômico e correspondente responsabilidade já estão tão internalizados, não surpreende que tanta gente deseje crer que tenham algum controle sobre as realidades fiscais que governam a vida das pessoas. Deve ser altamente empoderador que alguém consiga acreditar que se Tsipras usasse gravata e se Varoufakis apenas sorrisse com gentileza e só emitisse tolices de chás-da-tarde, seria possível espantar a crise. 

A retórica da confiança talvez seja a mais assustadora de todas. Os gregos são acusados de terem desmerecido a confiança neles depositada, o que implica assumir, para começar, que algum dia alguma confiança teria sido depositada nos gregos. As revelações de Timothy Geithner sobre Wolfgang Schäuble[1] sugerem que Schäuble não perdoou os gregos por tem maquiado seus livros contábeis para poder entrar no Euro.

Aí se vê que a acusação de maltratar a verdade não se aplica, porque logo se vê que, há cinco meses, já não havia verdade alguma para que os gregos maltratassem, quando chegaram à sala. Mas mais importante é a confiança que os gregos (e todo o povo europeu) 'deve(ria) ter' no Eurogrupo, em Schäuble e em Angela Merkel - seus membros mais poderosos. É confiança da qual não e fala e nunca se discute. Aproxima-se muito suspeitamente do que se entende por fé - fé, só fé, fé pura e simples.

Todos estão solicitados a crer, com fé absoluta, no poder alemão. Essa demanda mascara porém outra demanda, para que todos se rendam ao código moral da retidão (e 'austera' retidão) fiscal. Esse assentimento seria sim uma forma de fé - a autossubmissão a um poder inescrutável que cobre aquela demanda na linguagem e na lei da virtude sociais.

Muito já se disse sobre a virtude fiscal dos "Protestantes Nortistas", embora eu (surpreendentemente) não tenha visto qualquer menção aos Anabatistas de Munster. É boa analogia. Ajuda a destacar que os líderes europeus pregadores da virtude fiscal parecem exigir fé (confiança) à qual historicamente só um Deus Protestante aspiraria.

Difícil negar também o sentimento de que o vingancismo alemão tem muito a ver com o fato de que os gregos expuseram a hipocrisia alemã e forçaram a Alemanha a confrontar o próprio passado, abrindo à força, no processo, a contradição dentro da Europa.

Talvez, em negociação com parceiros infinitamente mais poderosos, sem qualquer transparência, e sem poder (os gregos) para denunciar quaisquer violações da lei (supondo que existam tais leis), o SYRIZA devesse ter sido mais cauteloso e discreto (estranho o quanto vaidade e arrogância voltam sempre à discussão, como se tudo se consertasse, se a humilhação fosse internalizada). Mas essa demanda assume que essa abjeção é a única postura aceitável na presença do poder.

Se é isso que a Europa demanda, o vício está do lado dela. Mas os homens e mulheres das colônias sempre souberam disso. E a violência vingancista que se viu manifesta na reunião da Eurocúpula não surpreende quem preste atenção à história colonial da Europa. Deste ponto de vista, a Europa como tal apenas fez, mais uma vez, o que sempre fez. 

"Europa" sempre foi produto de ficção. Do ponto de vista das colônias, sempre foi ficção doentia. Quando europeus falam sobre ideias de paz e prosperidade, de esquecer a violência das duas guerras mundiais, é difícil não ver tudo isso como notável exercício para criar uma inocência coletiva comum, absolutamente dependente de se conseguir apagar o passado.

Que ninguém se lembre do colonialismo de ocupação, do escravismo racista, a miserabilização do sul e do leste, das escolas a ensinar que seria carga civilizacional, o que nunca deixou de ser colonialismo suprematista branco, do Congresso de Berlim... Em vez disso, a palavra de ordem foi que todos caíssem de amores por uma união europeia baseada em direitos, lei, democracia social (que cada vez mais, parece ser só uma piscadela na história), porque as nações europeias seriam capazes de apaziguar inimigos passados que se dilaceraram em duas catastróficas guerras mundiais.

Outro elemento significativo nessa ficção, é a dita capacidade da Europa para superar suas diferenças depois da sistemática erradicação de população dentro do seu próprio espaço na 2ª Guerra Mundial (depois de já ter seguido as mesmas políticas nas colônias). A novela da união europeia sempre visou a provocar determinada amnésia. 

Daí que talvez não seja surpreendente que, quando perguntada sobre a analogia com o tratado de Versailles que se começava a ouvir, na discussão sobre o "acordo" na Eurocúpula, conste que a chanceler Merkel tenha dito que "Nunca faço comparações históricas". Claro que não faz! Não faz, mesmo

A crise grega também mascarou outro enorme desafio à Europa, na forma de refugiados e imigrantes que estão chegando à Grécia, e a carga absurda que as Regulações de Dublin impuseram a países como Itália e Grécia. O rompante de Matteo Renzi sugere que a questão dos imigrantes é desafio tão radical às limitações e brutais fracassos da Europa, quanto a crise grega. Claro que as legiões de refugiados que estão chegando às ilhas gregas são parte da crise enfrentada por um governo que simplesmente não consegue governar. Mas a crise econômica também gerou condições para que a questão dos refugiados fosse posta de lado.

Abundaram os exemplos históricos na atual crise. Por que a Europa ficaria de fora do pesado simbolismo do destino e da história? E o que é o pensamento alemão sem a importância simbólica da Grécia para Herder, Winckelmann, Hegel? Às vezes, a virulência da resposta alemã parece sugerir que os alemães não perdoam os gregos que vivem hoje por serem inconvenientemente e insistentemente quem são, dada a importância da antiga Grécia para a imaginação intelectual dos alemães. Mesmo sob risco de parecer pernóstica: não convém à imaginação intelectual dos alemães que os gregos deixem de ser estátuas sem braços e pernas, pintados de tintas desbotadas, diluídos pelos museus do mundo.

Ao mesmo tempo, referências a Sarajevo antes da 1ª Guerra Mundial e à Crise dos Sudetosrodopiaram sem parar na mídia e em muitas conversas na Grécia nessas últimas semanas. E claro que projeto concebido para 'consertar' a história evoca analogia histórica. E devo dizer que várias vezes surpreendi-me, eu mesma, nas últimas semanas, recorrendo a referências histórias.

No momento, quando ouço falar tanto de regras e códigos e etiqueta, me parece que é hora de ler/reler Eichmann em Jerusalém. Ao mesmo tempo, ao longo de toda a semana não deixei de pensar que o que está acontecendo na Grécia assemelha-se ao que aconteceu no Chile, 1973, sem o sangue. A hashtag #ThisIsACoup [#É_Golpe] parece acertar.

Se nos pusermos a culpar o estilo confrontacional de Varoufakis e a ostensiva ingenuidade do SYRIZA por tudo que está acontecendo, em vez de detectar os códigos e tendências sistêmicas mais amplas às quais deveríamos estar dando cuidadosa atenção, com certeza estaremos participando de mais uma recunhagem do colonialismo.

Nada disso implica que corrupção e nepotismo não sejam endêmicos na Grécia. Mas visa, sim, a nos fazer ver que ao usar esses problemas como porretes para castigar a Grécia deixamos livre o neoliberalismo para que continue a instrumentalizar o tipo de crítica que o colonialismo e o neoconservadorismo aperfeiçoaram.

Por duas semanas a Grécia vem sendo mantida presa como refém, e a própria noção de soberania está morrendo aí, à vista do mundo. É situação familiar no Sul global e nas colônias. Está acontecendo na Europa (outra vez), e a ausência de declaração formal de guerra só faz deixar ainda mais exposta a impotência geral.

Se já se consegue culpar os governos menos poderosos na Europa, pode-se também fazer reviver uma verdade europeia benigna e, assim, sentir que estamos no controle! Talvez mesmo, que sejamos parte dos Eleitos. Aparentemente, todos agora teremos de ser Protestantes. Sempre Avante, etc., mas, principalmente, Basta a Fé! *****

 


Sadia Abbas é professora-associada no Departamento de Inglês, Programa de Estudos da Mulher e de Gênero, Rutgers University. Especializou-se em literatura e teoria pós-coloniais, cultura e política do Islã na modernidade, literatura inglesa do início do modernismo, e teoria da crítica do século 20. É autora do livro At Freedom's Limit: Islam and the Postcolonial Predicament e está trabalhando num livro sobre Grécia e pós-colonialismo.

[1] "Em seu novo livro, Stress Test lançado nos EUA em maio de 2015, Timothy Geithner revelou que em 2012 o ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble lhe apresentou um plano para expulsar a Grécia da Eurozona. Isso, disse Schäuble, "acalmaria os eleitores alemães e aterrorizaria a Europa" (The Press Project) [NTs, com informações das fontes aí indicadas]. 

 

 

 

16/7/2015, Sadia Abbas*, Greek Left Review apud OpenDemocracy.net

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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