Gaza: Uma guerra que certamente não é de legítima defesa

O conflito visto sob o Direito Internacional – As imagens falam por si. Por semanas tivemos imagens de um massacre: corpos mutilados e crianças mortas assombrando as telas da televisão e chocando em fotografias nos jornais e na internet. Israel usou todo seu sofisticado arsenal para destruir o Hamas. E o Hamas, por sua vez, continuou a atirar seus foguetes em Israel.

Victor Kattan

1. Apresentação

As imagens falam por si. Por semanas tivemos imagens de um massacre: corpos mutilados e crianças mortas assombrando as telas da televisão e chocando em fotografias nos jornais e na internet. Israel usou todo seu sofisticado arsenal para destruir o Hamas. E o Hamas, por sua vez, continuou a atirar seus foguetes em Israel. Desde que Israel lançou sua operação em Gaza no dia 27 de dezembro de 2008, 1010 palestinos e trezes israelenses foram mortos (1). De acordo com o Ministério da Saúde em Gaza, um terço dos mortos são crianças.

Aproximadamente 5000 palestinos foram feridos. Não sabemos a exata proporção de combatentes do Hamas entre os números de mortos. Israel também bloqueou a entrada de jornalistas internacionais para uma verificação independente dos fatos.

Na resolução 1860, o Conselho de Segurança da ONU destacou a urgência da situação e fez um apelo para um "imediato, durável e completo respeito ao cessar-fogo, levando à retirada de forças israelenses de Gaza". A resolução foi sendo ignorada pelos dois lados e tropas israelenses entraram na Cidade de Gaza. Mas foi esta guerra necessária? E foi juridicamente aceitável?

Na primeira manhã em que Israel lançou sua ofensiva em Gaza matando 225 palestinos, a embaixadora israelense para a ONU, Gabriela Shalev encaminhou uma carta ao Secretário-Geral anunciando que "após um longo período de supremo autocontrole, o governo de Israel decidiu exercer, nesta manhã, seu direito à legítima defesa". Duas semanas após o início do conflito, a Câmara dos Deputados dos EUA adotou uma resolução "reconhecendo o direito de Israel à legítima defesa contra os ataques de Gaza" por uma maioria de 390 votos contra 5.

No dia 6 de janeiro de 2009, quando um ataque de um tanque israelense matou 40 palestinos em uma escola da ONU, o primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd reafirmou que a "Australia reconhece o direito de Israel à legítima defesa". Na última conferência à imprensa, o então presidente George W. Bush declarou que Israel tem direito a se defender, mas deveria atentar para "as pessoas inocentes".

Pode causar espanto que, apesar destas declarações, muitos especialistas em Direito Internacional argumentam que Israel não pode sustentar o direito à legítima defesa para justificar suas ações em Gaza. Em uma carta publicada no jornal Sunday Times (2), o argumento de legítima defesa pretendido por Israel for rejeitado por duas dúzias de especialistas em Direito Internacional. Eles argumentam que as ações israelenses na Faixa de Gaza são uma agressão e não legítima defesa.

2. Legítima defesa: o que é um ataque armado?

O artigo 51 da Carta das Nações Unidas (3) sustenta que os estados-membros têm o inerente direito a legítima defesa, seja individual ou coletiva, se ataques ocorrerem. A questão então é o que é um ataque armado?

Para o senso comum, a palavra "ataque armado" pode significar qualquer ataque. Mas sob o Direito Internacional o assunto não é de fácil solução. Se, por exemplo, um único disparo através de uma fronteira fosse considerado ataque armado para os propósitos do artigo 51 da Carta das Nações Unidas, Estados poderiam invocar seu "inerente" direito à legítima defesa e partirem para o ataque por menores ofensas. Isto causaria interminável instabilidade nas relações internacionais e poderia ainda levar a guerras acidentais. Basta pensar nas tensões entre Índia e Paquistão, China e Taiwan, Coréia do Norte e do Sul, Grécia e Turquia, Rússia e Geórgia para perceber este perigo. Além do mais, se o artifício para um ataque armado fosse tão reduzido, Estados poderiam efetivamente "fabricar" uma guerra: tudo que precisariam seria provocar um incidente nas fronteiras, alegar que foram previamente atacados e enviar suas tropas.

No caso "Nicarágua", a Corte Internacional de Justiça traçou a distinção entre "escala e efeitos" de uma operação militar particular que poderia ser então classificada como um ataque armado em oposição a "um mero incidente de fronteira". A Corte declarou que um ataque armado lançado por "bandos armadas, grupos irregulares ou mercenários" teria que ser de "tal gravidade que se compare com um verdadeiro ataque conduzido por forças regulares", impondo um critério para mensuração ligando-o ao potencial danoso da ação. A jurisprudência da Corte no caso "Nicarágua" foi mantida no caso relativo às "Plataformas de Petróleo", onde foi dito que para determinar se um ataque armado havia ocorrido seria necessário distinguir "as formas mais graves de uso da força em relação a menores".

Mesmo ataques cumulativos, segundo a Corte, seriam necessários que se acumulassem ao ponto de atingirem o nível de um "ataque armado" para os fins do artigo 51 da Carta da ONU.

Nocaso do conflito Israel-Palestina, não se trata de um tiro singular através de fronteiras. Estamos enfrentando décadas de disputas territoriais. Tomando que o direito à legítima defesa como explícito no artigo 51 se aplica a atores não-estatais como o Hamas, os foguetes disparados por sua ala militar são em "escala e efeito" ao ponto de se constituírem um "ataque armado" e não um "incidente de fronteira"?

E são de "tamanha gravidade" que se equiparam ao ataque perpetrado por uma força militar regular? Neste caso, como se pode quantificar os ataques do Hamas para o propósito de constituírem um ataque armado? Seria através do número de disparos? Ou pelo número de mortes causadas? Um foguete disparado em um campo aberto ou em um prédio vazio é um ataque armado? E se este foguete causa danos, ferindo ou matando alguém?

Embora não seja possível ou mesmo desejável quantificar precisamente o que constitui um ataque armado nestes termos, uma vez que esta apreciação será dependente de fatores individuais de cada caso, a morte de uma dúzia de civis causadas pelo Hamas, na escala de um assassinado por ano, por mais deplorável que seja não se qualificaria como um ataque armado para os propósitos da Carta da ONU. No mais, não é possível ignorar a conduta das forças armadas de Israel nos territórios ocupados e, desta maneira, examinar os ataques de mísseis do Hamas em isolado. Existem duas partes neste conflito.

Nos três anos após o rearranjo das tropas israelenses em Gaza, 11 israelenses foram mortos por ataques de foguetes. E entre 12 de setembro de 2005 (o dia em que Israel declarou como tendo findado o processo de "retirada" de seus assentamentos ilegais em Gaza) e o dia 27 de dezembro de 2008 (data em que Israel lançou seus primeiros ataques aéreos da última operação), o exército de Israel já havia assassinado aproximadamente 1250 palestinos, de acordo com dados coletados pela Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU.

De acordo com um relatório produzido pelo próprio consulado de Israel em Nova York, a média de mísseis e morteiros disparados de Gaza caíram para próximos a zero e nesta média se mantiveram pelos próximos quatro meses, após o cessar-fogo iniciado em junho de 2008. Como Nancy Kanwisher, Johannes Haushofer e Anat Biletzki apontaram em Huffington Post, o cessar-fogo terminou em 4 de novembro de 2008 "quando Israel matou palestinos e, só então, palestinos responderam com foguetes contra Israel". No entanto, para propósitos do Direito Internacional, a questão não é quem ataca primeiro - embora a definição do artigo 2º Resolução que define Agressão aprovada pela Assembléia Geral da ONU estipula que "o primeiro uso de força armada por um Estado em contravenção com a Carta deverá constituir prima facie evidência de um ato de agressão".

Como o professor Yoram Dinstein, da Universidade Israelense de Tel Aviv, argumenta em seu livro Guerra, Agressão e Legítima Defesa (War, Aggression and Self-Defence, Cambridge University Press, 2005, p. 191), "não é o primeiro tiro, mas aquele que empreendeu em um aparentemente irreversível caminho cruzando o limite legal. Espalhar a morte, ao invés do primeiro disparo, é que constitui o início de um ataque armado".

Mas, sem dúvidas, foi o ataque israelense em 27 de dezembro de 2008, o maior ataque aéreo na Faixa de Gaza desde 1967, que constituiu o "trespassar dos limites legais", para usar a frase de Dinstein. Embora, de acordo com o governo israelense, o Hamas disparou centenas de mísseis contra o sul de Israel na semana anterior ao ataque de 27 de dezembro, apenas um civil israelense (que estava em seu apartamento em Netivot) foi morto. Não menos importante, este foguete foi disparado como retaliação da ação israelense de assassinatos de palestinos no dia 4 de novembro de 2008.

3. Proporcionalidade: um grande retrato

Certamente poderia ser defendida a posição de que Israel não pode invocar um direito à legítima defesa, pois a resposta militar não era necessária ou proporcional, que em decorrência dos resultados insuficientes dos mísseis lançados pelo Hamas não chegariam a constituir agressão. Na opinião consultiva sobre "Armas Nucleares", a Corte Internacional de Justiça estipulou que "o uso de força que é proporcional dentro do direito à defesa deve, para atender o critério de legalidade, preencher os requisitos do direito aplicável em casos de conflito armado, o que implica na observância em particular dos princípios do Direito Internacional Humanitário". Em outras palavras, todo e qualquer uso da força, ainda que em legítima defesa para repelir um ataque armado, deve atender os critérios da necessidade, proporcionalidade e estar em conformidade com o Direito Internacional Humanitário (Leis da Guerra).

Em qualquer análise de proporcionalidade, devem-se ter os fatos da alegação de legitima defesa em particular. Um ataque não pode ser analisado isoladamente, mas ser interpretado a partir dos incidentes que supostamente o provocaram. Esta é a interpretação de proporcionalidade adotada pela Corte Internacional de Justiça no caso das "Plataformas de Petróleo". Avaliando a proporcionalidade de um ataque iraniano, a Corte decidiu que não poderia "apreciar a proporcionalidade da ação para sem julgar que era uma resposta à agressão; não podendo fechar os olhos para a totalidade da operação".

Em outras palavras, quando avaliando a pretensão israelense de legítima defesa e questões correlatas de proporcionalidade, se deve ter em mente as mortes na Faixa de Gaza, causadas pelas operações de Israel anteriormente à evolução das hostilidades. Assim, mesmo durante o chamado cessar-fogo, Israel assassinou palestinos em Gaza, como no ataque em 4 de novembro de 2008, matando seis pessoas. Israel também cercou e bloqueou Gaza pelos 18 meses que antecederam o ataque.

Portanto, em qualquer avaliação de proporcionalidade, não é possível ignorar o completo quadro da situação, em que números de palestinos mortos nos 3 anos precedentes à dezembro de 2008 totalizam 222 crianças. Também não se pode ignorar o número de civis massacrados nas mais recentes hostilidades. É a morte de um civil israelense na semana antecedente ao ataque aéreo de 28 de dezembro de 2008 proporcional às mortes de mais de mil palestinos?

Ler mais: http://www.socialismo.org.br/portal/internacional/38-artigo/1017-gaza-uma-guerra-que-certamente-nao-e-de-legitima-defesa

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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