Cúpula do Mercosul

O jornal já não serve para embrulhar peixe

Na quinta e sexta-feira (18 e 19/1), ocorre no Rio de Janeiro mais uma reunião de cúpula dos países integrantes do Mercosul. A pauta da reunião engloba variadas abordagens, desde turismo sustentável e prevenção contra a exploração sexual de crianças e adolescentes até as permanentes questões envolvendo interesses políticos, sociais e econômicos da região. Há muito o que se discutir.

Por Fernando Soares Campos em 17/1/2007

Na quinta e sexta-feira (18 e 19/1), ocorre no Rio de Janeiro mais uma reunião de cúpula dos países integrantes do Mercosul. A pauta da reunião engloba variadas abordagens, desde turismo sustentável e prevenção contra a exploração sexual de crianças e adolescentes até as permanentes questões envolvendo interesses políticos, sociais e econômicos da região. Há muito o que se discutir. Existe em andamento a idéia de integração do ensino superior entre os países da América Latina, com a criação de uma Universidade do Mercosul, que teria sede no Brasil. Entretanto a imprensa brasileira já pautou o alvo de suas atenções durante o evento. Sim, será ele mesmo, o nouveau socialiste Hugo Chávez.

Nos últimos dias, uma das frases mais usadas nas crônicas dos articulistas políticos foi "ele roubou a cena", ou "ele vai roubar a cena". Acusam o presidente venezuelano de forçar o foco dos holofotes para si e ofuscar a imagem de seus anfitriões.

Em tempos de Big Brother e Cicarellis Youtubando, o que interessa para essa gente é a "cena" e o espetáculo das frases descontextualizadas. Falam de liderança, alguma coisa em termos de que o Brasil seria o líder natural da América do Sul, porém chegam a acusar o presidente Lula de ser "fraco", de se deixar engambelar pelas conversas de Chávez. Esse pessoal é muito pequeno mesmo.

Hoje, mais que em outras épocas, quando se referem à liderança do Brasil na América do Sul, pode-se perceber que tratam de pintar a imagem do presidente Lula como se este fosse obrigado a fazer o papel de manager de Washington para questões sul-americanas e o nosso país representasse uma espécie de sucursal de Wall Street, ou do Pentágono, ou da CIA. Na verdade, já foi – em tantas outras ocasiões o Brasil desempenhou esse papel. Mas liderança de verdade, desconheço que tenha ocorrido. Já vimos o nosso país atuar como mediador de certas questões, e só.

Cada um por si e o diabo por todos

Segunda-feira (8/1), M. Pio Corrêa, embaixador aposentado, em artigo no Globo, afirmou:

"Os resultados das eleições presidenciais na Venezuela, na Bolívia e no Equador parecem configurar a possibilidade de realização do sonho do presidente Hugo Chávez, a criação de uma `ala dissidente´ de repúblicas latino-americanas – quebrando a unidade do continente".

Que será que M. Pio Corrêa entende por "unidade do continente"? Desde que me entendo por um arremedo de gente, sempre soube que os países sul-americanos nunca formaram uma unidade em defesa de seus interesses. O que aqui sempre predominou foi cada um por si e o diabo por todos. Basta lembrar a Guerra das Malvinas, em 1982, quando a Argentina evocou o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, da OEA), também conhecido como Pacto do Rio. O tratado prevê que, caso um dos signatários seja atacado, os demais também devem se considerar igualmente atacados, obrigando-se a prestar ajuda ao agredido.

Como era de se esperar, a Argentina ficou só e foi derrotada pela Inglaterra. É verdade que, na época, a Argentina era governada por uma junta militar de linha-dura, e talvez por isso muita gente apóie a ajuda do general Pinochet aos britânicos e a aparente neutralidade do Brasil e demais signatários do TIAR.

Descuidos históricos

Chávez já garantiu que um ataque contra qualquer dos seus aliados seria considerado um ataque à própria Venezuela. Na posse do presidente Daniel Ortega, da Nicarágua, o segundo país mais pobre do Ocidente, Chávez repetiu o brado do seu discurso de posse na Venezuela: "Pátria, socialismo ou morte!" Evo Morales não deixou por menos e mandou esta: "Morte ao imperialismo americano!" (O Globo, 12/1).

Aos 57 anos, pela primeira vez ouço discursos e declarações de cooperação entre nossos vizinhos que, acredito, vão além dos simples palavreados. No entanto, os impérios jornalísticos destas bandas estão sempre a postos, menosprezando as intenções e tratando tudo isso como se fossem anacrônicos movimentos. Para essa gente, Chávez é apenas um "inconseqüente agitador". Eles só entendem a linguagem do obediente colonizado, para quem tudo aquilo que vai de encontro aos interesses dos imperialistas é perigoso para os interesses da região ("o quintal").

Muita gente ainda acredita que é "formador de opinião", ainda crê que seus artigos e fricotes são lidos, entendidos e abonados pela população. Não aprenderam coisa alguma com as últimas eleições no Brasil e, pelo visto, em outros países latino-americanos. Tratam Chávez, Evo Morales, Daniel Ortega, Rafael Correa e Lula, por exemplo, como descuidos históricos que logo serão corrigidos. Chuvas de verão. Não duvido que venham a se transformar nisso, pode ser que em breve sejam lembrados como um sopro de esperança que passou por estas terras. Mas prefiro acreditar que estamos avançando para a verdadeira união continental. Esperança de que um dia possamos escolher entre ir à praia no Atlântico ou no Pacífico.

"Generais do povo"

Em setembro de 2006, o jornalista Newton Carlos, um dos mais respeitados analistas de política no âmbito internacional, em entrevista ao site da Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo, afirmou que "a América Latina não repercute". Mas acho que vai repercutir. Nessa mesma entrevista [ ver aqui a íntegra da matéria], ele conta alguns dos episódios que testemunhou em suas atuações como correspondente internacional, entre os quais destaco este:

"Em 1964 [já consumado o golpe militar no Brasil], eu assistia em Genebra à primeira conferência da UNCTAD [organismo da ONU para o comércio e o desenvolvimento]. Nunca me esqueci disso. O chefe da delegação brasileira era o embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues. Eu caminhava com ele pelos imensos corredores do Palácio das Nações. Em dado momento, ele encontrou Che Guevara, que era o chefe da delegação de Cuba. Os dois tinham uma ligação estreita. Ouvi o Che recomendando cautela. `São generais do povo´, retrucou Azevedo. `Jaime, en los militares, ni los soldados [son pueblo]´, berrou Guevara."

El Che sabia das coisas, por isso creio que, se estivesse entre nós, diria: "En la prensa brasileña, hoy, el papel no sirve ni para embrollar pez".

Fernando Soares Campos

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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