Márcio Moreira Alves: memória histórica contra 1964
por Diorge Alceno Konrad*
Passados pouco mais de 40 anos, o 13 de dezembro de 1968 continua a travar sua luta histórica contra certa memória. Naquela fatídica data, a Ditadura Civil-Militar, instaurada pelo Golpe de 1964, aprofundava a repressão do seu regime.
Se em quatro anos e meio, os golpistas não conseguiram impedir a resistência ao modelo associado e dependente que reinseriu o Brasil na divisão internacional capitalista do trabalho, o AI-5 foi derradeiro para concluir o processo iniciado em 31 de março. Porém, o estopim tinha que ser aceso, justificado por um motivo. E ele logo apareceu: o discurso no Congresso do então deputado do MDB, Márcio Moreira Alves, em 1968.
Na História, a causa imediata e aparente pouco tem a ver com as causas profundas e essenciais. Assim como o assassinato de Fernando não explica a I Guerra Mundial, mas tem relação com ela, sendo o pretexto para acioná-la,[1] o discurso de Márcio Moreira Alves é a ponta do iceberg para entendermos o AI-5. Segundo a irmã de Márcio, Maria Helena Moreira Alves, ''embora o discurso passasse desapercebido na imprensa, os militares escolheram-no como pretexto para provocar uma grande crise política''. Segundo a autora, o discurso foi ''particularmente útil aos seus propósitos', pois tocou em ''um ponto sensível na estratégia geral de controle social do Estado''.
- Versão impressa
-
Tamanho da Fonte
- Enviar para um amigo
Ai mesmo tempo, ia ao encontro de um planejamento em andamento de um segundo golpe de Estado, o qual já vinha sendo preparado, que daria ''mais liberdade na defesa da Segurança Interna''.[2] Daniel Aarão Reis Filho explica que a Ditadura, em um processo de perda de popularidade e legitimidade, oriunda de dificuldades econômicas (geradas por uma rígida política monetarista) e políticas (problemas decorrentes de gerenciar múltiplas forças que haviam participado do Golpe e que desgastavam o poder), recorreu à força bruta. Sobretudo em finais de 1968, quando ocorria uma erosão política ainda maior de sua capacidade de direção política, pois o que de fato a preocupava era a questão das dissidências no próprio interior das direitas.[3]
Logo que tomaram o poder, depondo o governo legítimo de Jango e rompendo com a legalidade constitucional, os reacionários asseclas do Tio Sam na América Latina procuraram demover a organização dos movimentos sociais e políticos construídos no período democrático, entre 1945 a 1964.
Os primeiros alvos foram os movimentos sociais do campo (como as Ligas Camponesas), as organizações sindicais (como o Comando Geral dos Trabalhadores - CGT) e as instituições partidárias do campo popular, trabalhista, democrático e socialista. Seus líderes foram colocados na lista dos ''inimigos da pátria'', tudo para que se consolidasse a ''redentora'', autodenominada de ''revolução'', cuja função era varrer do Brasil qualquer símbolo de transformação e progresso social, proclamadas pelas ''Reformas de Base'', como a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma universitária, a reforma administrativa, a reforma tributária, etc.
Não é verdade que o Brasil estava ameaçado por dois projetos golpistas, um de esquerda e outro de direita, como reivindica certa revisão historiográfica recente. As reformas propostas pelo governo de João Goulart, todas elas nada socializantes, muito menos comunistas, procuravam arredondar o ''círculo quadrado'' de uma revolução burguesa incompleta, cuja direção de classe sempre propensa a tomar posição de ''sócia menor'' do capital estrangeiro. Assim, defendendo o latifúndio monocultor e exportador e o imperialismo ávido em manter estruturas colonialistas de dominação, no lugar de estimular o mercado interno, tirar milhões de miséria social e realmente repartir as riquezas do País, o Golpe de 1964 reinseriu o Brasil sob tutela política norte-americana.
As medidas autoritárias, e não foram poucas, através de quatro Atos Institucionais e outras mais, no entanto, foram insuficientes para ''pacificar'' uma população talhada nas tradições das resistências indígenas, quilombolas e anti-escravistas, nos símbolos de Palmares, Guararapes, conjurações mineira e baiana, Revolução Pernambucana e Confederação dos Tamoios, Balaiada, Sabinada, Malês, Farroupilhas, Abolição, Canudos, Contestado, Insurreição Nacional-Libertadora e vários outros marcos da luta popular de brasileiros que não se acomodaram diante da opressão. Se operários e sem-terra foram reprimidos ao nascer do Golpe, restavam outros mais, além dos intelectuais, dos artistas, dos estudantes, dos militantes clandestinos e daqueles que não se intimidaram, denunciando a Ditadura aqui e no exterior.
Foi contra essa resistência que se deu o que se convencionou chamar de ''Golpe dentro do Golpe''. O que determinada historiografia e a parte majoritária da memória midiática tenta mascarar, depois de 45 anos, foi a participação e o apoio político-econômico de grandes corporações nacionais e multinacionais que financiaram o regime para que seus interesses se consolidassem.