Extradição, direitos humanos e imprescritibilidade dos crimes hediondos

Sérgio Muylaert*

Ante os fatos que descrevem as perseguições políticas atribuídas aos integrantes dos regimes autoritários no Cone Sul, durante a orquestração, montagem e operação Condor por mais de trinta anos, não existe margem para hesitações. Foram práticas sucessivas de um extenso rol de violações de direitos humanos, desde a tortura e o terrorismo de estado até a desaparição forçada de pessoas.

As autoridades da justiça italiana e espanhola colheram nomes de mais de uma centena de acusados, dos países sul-americanos, inclusive, de agentes brasileiros, cujas vítimas seriam cidadãos e cidadãs daquelas nacionalidades. A solicitação feita quer tão somente deitar luzes sobre os fatos e responsabilizar os verdadeiros mandantes e executores. Não se afirma como um ato de interferência externa sobre a vida do País e nem colide com o princípio da soberania

Sabe-se que tais práticas tiveram por objetivo exclusivo conspurcar, intimidar, aniquilar, adversários políticos ou supostos inimigos, sem pouparem vítimas do extermínio físico. Se não houver o entendimento mínimo acerca do pedido formal para a extradição dos acusados é improvável que as entranhas do arbítrio sejam reveladas.

Por meio do procedimento de pedido de extradição instaura-se tentativa heróica de aplicar os preceitos de um ordenamento justo e solidário, fundado no pluralismo das relações internacionais, em contraposta à ordem autoritária e fechada, predominante nas quatro últimas décadas do século XX. A proposição não demanda ameaças às instituições públicas do Estado Democrático de Direito.

Na contramarcha, alguns setores sociais influentes se valem dos mais absurdos pretextos para bloquear a proposta de uma apuração isenta. Cuida-se de uma deliberada idealização de obstáculos e de outros expedientes que se contrapõem à apuração da verdade histórica. Mediante manobras e artifícios, os horrores de que a sociedade brasileira foi vitimada, a partir de 1964, são sistematicamente ocultados.

Evitar, quem sabe, melindres entre os envolvidos nas operações de “guerra suja”, a par de não apurar o uso militar indevido de bens das Forças Armadas e de segurança durante esses regimes, que se prestaram, inclusive, como apoio a milícias particulares e financiadas por grupos empresariais todo-poderosos.

Sabe-se da freqüente utilização dos bens e instrumentos da máquina pública, em desafio às proibições contidas nas convenções e pactos internacionais, que repudiam o crime de terrorismo de estado, a tortura e o desaparecimento forçado de pessoas.

Por outra parte, sob o efeito dos arranjos obtidos com esta relação (incestuosa?) entre as práticas de violência dos agentes do Estado e dos defensores do patrimonialismo, para certo tipo de acumulação privada a qualquer preço, não se tem, ainda, o mais remoto cálculo das perdas sociais alcançadas.

O ciclo histórico deste período de crimes hediondos não se fechará enquanto não vierem à luz os fatos, as provas e os nomes dos responsáveis, mandantes e executores, como resultado prático das ações afirmativas e concretas dos direitos e das garantias individuais e coletivas.

O registro se faz ao tempo que - entre os escárnios à consciência jurídica liberal –, o banimento voltou a ser aplicado como pena contra perseguidos e prisioneiros políticos, sob aplausos e sem disfarce da grande maioria no mundo acadêmico, para demonstração aberta do pouco caso em face dos princípios respeitantes à nacionalidade e à soberania.

Os atos institucionais n° 13 e 14, de setembro de 1969, foram editados pela junta militar governativa, na esteira do recrudescimento do regime político-militar brasileiro, após o ato institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968. A composição do quadro ministerial exibia alguns nomes, incontestáveis formadores de opinião, ainda hoje, na vida política nacional.

Vedada em nosso ordenamento jurídico a iniciativa para a extradição de pessoas, nos casos de crimes políticos, parece intuitivo lembrar que estas práticas (terrorismo de estado, tortura e homicídio qualificado) não sejam propriamente equiparáveis à atuação política. Tanto mais, os crimes hediondos, são imprescritíveis.

Em política, assim como, com a natureza, nada é imutável. Todo o processo histórico se depreende da proposta de organização de poder e das formas de organização social de que resultam. Seja qual for a decisão a ser adotada pelo governo brasileiro em face do pedido das autoridades estrangeiras não cabe precipitar conclusões.

Ainda sob o olhar que privilegia o direito de nacionalidade dos extraditandos, nada obsta, em tese, o governo do país requerido – Brasil – promova as investigações, necessárias e compatíveis com a gravidade das imputações que pesam sobre os acusados, desde o pedido de extradição, submetidos ao devido processo legal, nos termos das leis internas do nosso país.

*Sérgio Muylaert - Vice-Presidente da Comissão de Anistia - Ministério da Justiça;

Presidente da Associação Americana de Juristas, linha fundadora, rama brasileira, DF.

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