O fascismo? Pode, sim, acontecer em Israel


O SOBRENOME ALEMÃO Sternhell significa “brilhante como as estrelas”. É nome adequado: as posições do Professor Ze'ev Sternhell destacam-se, brilhantes, contra a escuridão do céu. Sempre denunciou o fascismo israelense. Essa semana, os fascistas israelenses jogaram uma bomba de fabricação caseira (um cano selado, com pregos e explosivos) na entrada de seu apartamento, e ele sofreu ferimentos leves.

Uri Avnery*


À primeira vista, a escolha da vítima parece estranha. Mas os autores do atentado sabiam o que faziam.


Não atacaram os ativistas que, todas as semanas, fazem manifestações contra o Muro da Separação em Bilin e Naalin. Não atacaram os grupos de esquerda que, ano após ano – e em 2008 também – mobilizam-se para ajudar os palestinenses a colher suas azeitonas nos pontos mais perigosos, nas vilas mais próximas das colônias israelenses. Não atacaram as “Mulheres de preto” que se reúnem todas as 6ªs-feiras, nem as mulheres do movimento “Machsom Watch” que vigiam os postos de controle, para registrar e denunciar as violências praticadas por soldados israelenses. Atacaram alguém que só faz trabalho intelectual.


As lutas de campo são essenciais. Mas elas só visam influenciar a opinião pública. A principal batalha é a batalha de idéias. E é aí que os intelectuais têm papel tão importante a desempenhar.


No plano das idéias, há duas visões em confronto, em Israel, dois modos de ver, tão distantes um do outro quanto o Oriente é distante do Ocidente. Por um lado, há uma Israel culta, moderna, secular, liberal e democrática, que vive em paz e em parceria com a Palestina, vendo-a como parte integrante e integral da Região. Por outro lado, há uma Israel fanática, religiosa, fascista, que se auto-exclui, tanto quanto se auto-exclui da humanidade civilizada, gente que “duela sozinha e não será reconhecida entre as nações” (Números, 23:9), onde a “espada devorará para sempre” (2, Samuel 2:26).


Ze'ev Sternhell é um dos guias mais brilhantes da visão mais iluminada, mais lúcida. Suas posições brilham como estrelas, resolutas e incisivas. Não surpreende que tenha sido escolhido como alvo para os neo-nazistas que há em Israel e suas bombas neo-nazistas.


Sternhell é intelectual especialista nas origens do fascismo, um tema ao qual também me dedico, ao longo de toda a minha vida. Ele e eu somos movidos por interesses semelhantes: o nazismo deixou marca indelével na nossa infância e no nosso destino. Criança, testemunhei o nascimento do nazismo na Alemanha. Criança, Sternhell viu o nazismo nascer na Polônia, quando, depois da morte do pai, perdeu a mãe e a irmã no Holocausto.


“Quem conhece água fervente, tem medo até de água fria”, diz um velho provérbio judeu. Quem tenha conhecido o fascismo atacar a própria vida, na infância, é e para sempre será excepcionalmente sensível ao primeiro sintoma de recaída da mesma doença. Em 1961 escrevi um livro com o título de “A suástica” (que só existe em hebraico), no qual tentei decifrar o código das raízes do nazismo. Ao final do livro, pergunto: “Poderá acontecer em Israel?” Minha resposta bem clara: Sim, pode. Pode acontecer em Israel.


Sou sensível a qualquer sinal daquela doença na nossa sociedade israelense atual. Como jornalista e editor de uma revista, usei minha lanterna para iluminar melhor cada sinal que vi ou pressenti. Como ativista político, combato-os todos os dias, seja no Parlamento seja nas ruas.


Sternhell, por sua vez, depois de uma carreira militar, passou a dedicar-se integralmente à vida acadêmica. E usa os instrumentos da academia: pesquisa, aulas e publicações. Luta para encontrar as melhores definições, as mais precisas, sem buscar popularidade e fugindo às provocações. Em um de seus artigos, há anos, escreveu que a resposta violenta dos palestinenses contra a ocupação é resposta esperável, natural. Por isso, atraiu sobre si a eterna ira dos moradores das colônias e da extrema direita, que trabalharam muito para impedir que Sternhell recebesse o “Prêmio Israel” – a mais importante láurea que há entre nós.


Agora, recorreram às bombas de fabricação caseira.
QUEM PÔS lá aquela bomba? Um único indivíduo? Um grupo? Algum novo grupo clandestino? Os terroristas das colônias? Cabe à Polícia e ao Shin-Bet descobrir.


Do ponto de vista do público, o assunto é mais simples: vê-se facilmente em que canteiro florescem essas sementes daninhas, que ideologia lhes serve de adubo, e quem as semeia por aí.


O fascismo israelense está vivo e esperneia. Cresce no mesmo canteiro que já gerou vários grupos religiosos-nacionalistas clandestinos: o grupo que tentou explodir os locais sagrados para os muçulmanos, no Monte do Templo; os que tentaram assassinar prefeitos palestinenses, a gang “Kach”; os autores do massacre em Hebron; Baruch Goldstein, assassino do ativista pela paz Emil Gruenzweig; o assassino de Yitzhak Rabin; e todos os grupos clandestinos que foram descobertos em estágio inicial de organização, antes de chegarem ao conhecimento público.


São ações que não podem ser atribuídas a indivíduos ou a rogue groups, a rebeldes ou a “grupos do mal”. Há, bem evidente, uma franja fascista na sociedade política em Israel. Em termos ideológicos, são nacionalistas religiosos; têm líderes espirituais, “rabinos” que formulam essa específica visão de mundo e seu respectivo modo de agir. Esses judeus não trabalham em segredo. Ao contrário, oferecem seus serviços na feira, no mercado.


O setor está concentrado nas colônias ‘ideologizadas’. Não significa que todos os colonos judeus sejam fascistas. Mas quase todos os fascistas são colonos judeus. Concentram-se em colônias bem conhecidas. Por acaso ou não por acaso, todas essas colônias ideologizadas estão situadas no coração da Cisjordânia, nas cercanias do Muro de Separação. A primeira delas, na área de Hebron, foi instalada pelo líder ‘esquerdista’ Yigal Allon; outra, próxima de Náblus, pelo líder ‘esquerdista’ Shimon Peres.


DURANTE os últimos meses, aumentou muitíssimo o número de incidentes nos quais colonos atacam soldados, policiais e ‘esquerdistas’ palestinenses.


São atos cometidos abertamente, para aterrorizar e intimidar. Colonos vandalizam as vilas palestinas cujas terras cobiçam ou invadem; ou agem por vingança.


São pogroms no sentido clássico da palavra: atos de vandalismo, executados por grupos armados, intoxicados de ódio contra população civil desarmada; e o exército e a polícia apenas observam. Os Pogromchiks destroem, ferem e matam. Nos últimos tempos, tem acontecido cada vez mais freqüentemente.


Nos raros casos em que o exército ou a polícia intervêm, não tomam conhecimento da ação dos colonos; atacam os ativistas israelenses dos grupos pró-paz que acorrem para ajudar os agricultores palestinenses agredidos. O porta-voz dos serviços de segurança de Israel e os comentaristas que ainda tentam aparentar alguma isenção falam de “agitadores da Esquerda e da Direita”. Nada mais falso que essa aparente isenção – a qual, ela também, é parte do arsenal de truques que os fascistas sempre usaram.


Os pogroms organizados pelos colonos judeus são violentos por sua própria natureza, tanto na intenção quanto na ação; e os ativistas do campo da paz são não-violentos por princípio. Sempre que há violência, começa nos movimentos do exército e da polícia de fronteira, sob o pretexto de que, antes, foram agredidos por meninos locais que lhes atiraram pedras. O que ninguém diz é que soldados e policiais de fronteira, super-armados e super-blindados, perseguem os manifestantes pelas ruas e vielas das cidades.


A violência e a agressividade dos musculosos militantes da extrema direita – “ativistas da Direita”, como a mídia insiste em dizer, com cortesia máxima – estão aumentando dia a dia. Fazem o que querem, quando querem, porque sabem perfeitamente que nada e ninguém os punirá. Sabem que a polícia mantém-se distante e não interfere; e sabem também que, ainda que a polícia interfira, os tribunais não os condenarão a qualquer tipo de pena mais severa.


TODOS que conheçam a história do nazismo conhecem bem o vergonhoso papel que tiveram os tribunais e demais agentes da lei, na República de Weimar, em relação aos criminosos cujo único objetivo era atacar o próprio sistema democrático. Os agitadores nazistas recebiam penas leves, porque os juízes os declaravam “patriotas equivocados”; e os agitadores comunistas eram tratados como agentes e espiões estrangeiros.


Atualmente, Israel está vivendo o mesmo fenômeno. Os colonos israelenses que infringem a lei recebem condenações simbólicas; os palestinos, mesmo quando acusados por infrações muito mais leves, recebem penas duríssimas. Hoje, um colono que atice seus cães contra um comandante de batalhão é absolvido; exatamente como acontece, também, mesmo que ele quebre os ossos de um chefe de destacamento.


O sistema de justiça interno do Exército de Israel é monstruoso: não se pode dizer menos. O comandante que deteve uma mulher palestina em trabalho de parto e com sangramento, num posto de fronteira, causando a morte do bebê, recebeu, como pena, duas semanas de detenção. O comandante que ordenou que um soldado atirasse na perna de um palestino algemado foi “transferido” – o que significa que esse criminoso de guerra pode continuar servindo em outra unidade do Exército.


O aumento no número e na gravidade de incidentes desse tipo prova que está aumentando o poder do fascismo israelense? À primeira vista, sim, pode-se ter essa impressão.
Mas, se se pensa melhor, creio que a verdade é o contrário disso.


Os colonos fanáticos sabem que perderam o apoio da opinião pública em Israel, e que os cidadãos comuns os vêem como bandidos perigosos. Seus movimentos, expostos pela televisão, são criticadas, muitas vezes com indignação e horror. A visão do “Tudo por Israel” não apenas perdeu altitude. Pode-se dizer que já se esborrachou no chão da realidade. Os zelotes[1] agem como agem porque estão fracos e frustrados.


Como os nazistas odiavam a República alemã, assim esses fanáticos estão começando a odiar o Estado de Israel. E têm boas razões. Estão vendo que não há lugar para eles no consenso nacional que vai ganhando corpo em torno da idéia de “Dois Estados para dois povos” – seja por razões negativas, como os medos demográficos que nascem da ocupação; seja quando prospera por razões positivas: pela esperança de alcançarmos paz e prosperidade, depois de Israel retirar-se dos Territórios Ocupados.


Prossegue a discussão sobre as fronteiras, mas a maioria já vê o Muro de Separação como a fronteira futura. (Como sempre repetimos, desde o início, o muro não foi construído, de fato, para impedir a aproximação de homens-bomba, como dizem as autoridades israelenses; foi construído para demarcar a futura fronteira entre os dois Estados).


O establishment israelense deseja anexar as terras que ficam entre o muro e a Linha Verde; e está preparado para oferecer terras de Israel aos palestinenses, em troca. Como os colonos interpretam essa evidência?


A maioria dos colonos vivem em colônias próximas da Linha Verde que, por esse conceito, serão anexadas a Israel. Esses colonos, não por acaso, são colonos ‘não-ideológicos’, que buscam apartamentos baratos e “qualidade de vida”, em área próxima de Telavive ou Jerusalém. Esses colonos aceitarão, muito provavelmente, qualquer acordo de paz que os mantenha em território de Israel.


Os colonos extremistas, os que são motivados por idéias fascistas-religiosas, vivem em pequenas colônias a leste do muro, que serão desmanteladas tão logo a paz seja assinada. São pequena minoria, mesmo entre os colonos, apoiados por uma minoria radical da extrema direita. Aí, exatamente, é que está vicejando o violento fascismo israelense.


Era uma vez… mas, sim, já houve tempo em que uma Linha Vermelha corria paralela à Linha Verde; quando se pensava que o terrorismo religioso-nacionalista feriria ‘apenas’ os palestinos e não atingiria israelenses. Até o rabino Meir Kahane, fascista nato, dizia isso.


Essa ilusão desmanchou-se no ar, com o assassinato de Yitzhak Rabin. Então se viu que o fascismo israelense é igual ao fascismo clássico, que troveja contra “o inimigo estrangeiro”, mas dirige seu terrorismo contra “o inimigo interno”.


A bomba de fabricação caseira que explodiu à porta da casa de Sternhell deve fazer acender todas as luzes vermelhas, porque se soma ao assassinato de Emil Gruenzweig e às ameaças à vida de outros conhecidos ativistas da paz.


A batalha decisiva, a batalha pela sobrevivência de Israel, está entrando em nova fase – muito mais violenta, muito mais perigosa. Mas mais grave que o perigo que ameaça as pessoas é o perigo que ameaça toda a sociedade israelense. Sobretudo se não mobilizar todos os seus recursos – governo, polícia, Serviço de Segurança, lei, tribunais, a mídia e o sistema educacional – para enfrentar esse perigo.


Não creio que o fascismo derrotará a sociedade israelense. Creio na força da democracia em Israel. Mas se eu for encurralado e me perguntarem: “Pode acontecer em Israel?”, serei obrigado a responder: “Sim, o fascismo pode acontecer em Israel.”


* URI AVNERY , 27/9/2008, “It Can Happen Here!”, em Gush Shalom [Grupo da Paz], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1222552857/. Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte. Copyleft.


[1] Membros da seita e partido político judaico que desencadeou a revolta da Judéia à época de Tito (imperador romano, regn. 79-81); zelador [Os zelotes constituíam a ala radical dos fariseus e preconizavam Deus como o único dirigente, o soberano da nação judaica, opondo-se à dominação romana.] (De Dicionário Houaiss, em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=zelote+&stype=k)

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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