Opiniões de um leigo sobre a arte e sua história

1. A EVOLUÇÃO, O BELO E O FEIO

A relação entre o processo evolutivo e os conceitos de belo e feio parece-me das mais complexas. Acho que para enfrentá-la teríamos de destacar alguns planos distintos. Vinculado imediatamente ao processo evolutivo talvez estejam a repulsão do desagradável ou maléfico para o indivíduo e para a espécie e a apreensão, o aproximar-se ou o tomar para si do agradável ou benéfico.

Iraci del Nero da Costa

Com base nesses elementos de ordem material, digamos, devem ter-se desenvolvido já imersas num caldo cultural as noções de "belo" e "feio". Esses últimos elementos estariam só mediatamente vinculados à evolução; para mim é como se o agradável/desagradável estivesse situado no plano do cerebral e o belo/feio na esfera da mente. O agradável estaria na órbita do material e o belo na do real.

Também entendo que o "novo" ou "exótico" cria novos circuitos neurais (sinapses) e isso "chama" nossa atenção, se esse novo for tido como "belo" ou pelo menos "neutro" o novo circuito deve ser percebido como algo agradável, já o "feio", ao causar repugnância deve aparecer como uma "sensação" desagradável.

2. A "DESCOBERTA" DE NOVAS FRONTEIRAS CEREBRAIS E MENTAIS

Um processo dos mais interessantes está no de fato de, no correr do tempo, a humanidade ir, a pouco e pouco, descobrindo novas fronteiras de nosso próprio cérebro (e de nossa mente). Assim, o homem primitivo deve ter começado a fazer as pinturas rupestres como uma extensão de sua atividade cotidiana, como se fosse levado por uma força inercial (ele caçava, caçava, caçava... quando parava continuava a ação de caçar desenhando a caça); talvez não houvesse num primeiro momento qualquer sentido estético naquela ação, no entanto, ao desenvolver sua capacidade de reproduzir pictoricamente o mundo, o homem passou a "ocupar" um lugar que estava disponível em seu cérebro/mente e descobriu o mundo estético. Enfim, as artes, que talvez inicialmente fossem apenas a continuidade de ações "práticas" ganharam uma dimensão nova e se desprenderam de suas bases imediatamente materiais, passando a ocupar "espaço próprio" em nosso mundo mental.

3. MÚSICA E "ESTRUTURAS MENTAIS"

Quanto à música (ou ao ritmo poético) chego a imaginar que exista uma espécie de correspondência entre o que é ouvido e determinadas estruturas mentais (não faço idéia de como "chegaram" ao nosso cérebro) de tal sorte que o conjunto sonoro ouvido "ressoa" como algo agradável por corresponder a tal estrutura (é como se recebêssemos um afago em nossa mente), daí a sensação de intenso prazer que a música (determinadas músicas) nos proporcionam; é como se cada um de nós portasse determinadas estruturas que em seu todo seriam finitas, daí um determinado grupo de pessoas gostar desse autor e não apreciar um outro compositor.

A relação estabelecida entre a música e seu apreciador sugere um paralelo com o fenômeno da ressonância estudado pela física. Como sabido, tal fenômeno implica um processo de transferência de energia de um sistema, que oscila numa dada frequência, para outro que oscila com a mesma frequência. No caso da música, dar-se-ia a transferência (ainda que meramente virtual) da "energia" derivada dos sons, mediante a intermediação do cérebro, para a mente do espectador, a qual deteria elementos (estruturas específicas) que a fazem estar em sintonia com o conjunto sonoro em causa.

Evidentemente tais estruturas seriam passíveis de mudança no correr da vida de cada um. Lembro que aos vinte/trinta anos odiava a música de Wagner e certo músico da Orquestra Municipal de São Paulo (Brasil) disse-me que, com o tempo, eu aprenderia a apreciar Wagner, e, de fato, isso ocorreu. De outra parte, ficamos como que dependentes de certos compositores; assim, por exemplo, se eu ouço Mahler (que não me satisfaz completamente) logo em seguida ponho-me a ouvir Wagner, é como se ouvindo Mahler ficasse faltando alguma coisa para "fechar" aquelas estruturas cerebrais e eu tivesse de ouvir Wagner para conseguir o prazer que só é lembrado por Mahler, mas só é alcançado plenamente com a música de Wagner.

4. UMA "HISTÓRIA" DA PINTURA

Creio ser possível estabelecer-se uma espécie de "linha de aprofundamento no real" quando contemplamos o desenvolvimento das artes plásticas. Para a pintura, formulei algumas especulações absolutamente descompromissadas.

Num primeiro momento houve, como avançado, apenas um movimento inercial de reproduzir "nas cavernas" o que se fazia durante as caçadas e a pesca. O interessante aqui é que já se nota a presença de dois elementos importantíssimos para as artes: a reprodução do vivido ou visto ou da coisa em si, e a existência do fato "ideológico". Assim, enquanto os animais são reproduzidos com apuro, a figura humana só está presente na forma de figuras pouco definidas. Os teóricos dizem que esta ausência de "autenticidade" da figura humana deve-se ao fato de que para aqueles homens a reprodução da figura emprestava poder sobre o objeto retratado; como era "proibido" aos homens exercerem poder sobre outros homens, eles evitavam reproduzir uma figura humana perfeita, daí só usarem uma menção pouco clara sobre humanos. Não sei se essa última explicação corresponde à maneira de pensar daqueles homens primitivos, mas, de toda sorte, a figura humana discrepa em muito da dos animais e aí se pode "ver" a presença de "algo ideológico".

Para nós, do ocidente, um segundo momento importante na pintura estaria nas iluminuras e na arte medieval em geral. Segundo os especialistas, a falta de perspectiva e o fato de as figuras olharem para algo que está além do espectador dever-se-ia à ideia de que os pintores da época estavam preocupados em reproduzir o mundo penetrado pela presença de Deus. Assim, a figura dirige-se ao mundo celestial, procurando olhar para Deus que está "além" de quem aprecia a obra, as figuras são "descarnadas" (e sem profundidade) na medida em que se está a pensar no mundo espiritual e não mundanamente. Assim, a falta de fidelidade não se deve à ignorância dos pintores (o homem primitivo desenhava com "realismo" as figuras dos animais), mas ao fato de eles estarem pintando o "real" (presença do ideológico) e não o "material".

Este segundo momento foi rompido com a emergência dos Clássicos e do humanismo. Desenvolve-se, de modo rigoroso, a perspectiva e as figuras tornam-se de carne e osso, mundanas, elas encaram os espectadores e não dirigem mais o olhar para algo que está além do observador postado à sua frente. Ademais, retrata-se não só a vida sagrada (de maneira "humana", Cristo e os Santos são "homens de verdade"), mas também a vida cotidiana das pessoas, das vilas e aldeias etc. etc. Enfim, o desenvolvimento da visão humanista tornou a pintura mais próxima da vida das pessoas comuns e, de certa forma, contribuiu para o desenvolvimento das técnicas na medida em que desenvolveu a perspectiva "científica".

Seguiu-se, em termos lógicos, o impressionismo. Agora a apreensão do que está ali, da coisa em si, refina-se. Pretende-se incorporar a própria existência do ar que está entre o representado e o pintor, daí a fluidez, a falta de nitidez própria dos clássicos que não consideravam o ar. Mais ainda, a luz e as sombras, tornam-se uma preocupação sempre presente, esta preocupação chega ao máximo com o pontilhismo, agora as próprias cores são decompostas na tela para recompor-se no cérebro do espectador. Vale dizer, o estudo das cores e da sua decomposição passa para as telas, pretende-se chegar ao que está posto à nossa frente com o maior "realismo" possível.

Mais ainda, como não vemos as coisas de um só ângulo - pois as vemos de frente, de costas, de cima, do lado, por dentro etc. etc. -, impunha-se para "captá-las de verdade" reproduzi-las segundo todas estas formas de abordá-las. Daí o cubismo. Assim, segundo penso, o cubismo é uma tentativa de captar o que se põe à nossa frente de uma maneira mais "real", mais efetiva!

Com o cubismo chega-se a um limite. Aquilo que se coloca à nossa frente, "fora de nós" já foi dominado. Agora é preciso penetrar uma outra realidade, qual seja, a que está dentro de nós. É preciso percorrer nosso cérebro por dentro dele, é preciso captar o inconsciente. Esta tarefa vai ser desempenhada pelos surrealistas. Eles pretendem aprofundar ainda mais a apreensão da "realidade humana", querem surpreender a mente por dentro dela mesma. Por isso pintam uma realidade que está muito longe do mundo que está fora de nós, eles pintam um mundo que está dentro de nós!

Afora o inconsciente existe todo um universos de tensões, medos, angústias etc. que também mereceram a atenção dos pintores, coube ao expressionismo buscar esses elementos nos desvãos da mente. De certa forma impressionismo e expressionismo se complementam e, nessa medida, levam o realismo a outro limite. Agora já dominamos o que está fora e o que está dentro de nós.

Mas a caminhada não se detém aí. Ao percorrer todo esse caminho, os pintores descobriram existir, além do mundo situado fora de nós e do nosso mundo inconsciente, uma outra criação absolutamente original da mente, qual seja: a pura forma, a forma que se volta sobre si mesma, que não se refere nem ao mundo de fora, nem ao mundo do inconsciente, mas é uma criação pura da mente e que se refere a si mesma (a forma ela mesma, a forma pela forma). Assim, esse mergulho "realista" chega a uma dimensão nova da mente: a arte abstrata. Nela vejo um novo limite alcançado nesta penetração da "realidade".

De certa forma os pintores cobriram todo o campo disponível, novos passos virão, mas ainda não podemos imaginar quais serão. Por outro lado, a arte torna-se democrática, isso porque todos os gêneros e todas as visões podem ser retomadas e coexistir numa mesma época. Este parece ser o aspecto bom do momento ora vivido, a face desconfortável é dada por essa sensação de que o mundo das artes plásticas parece encontrar-se esgotado, pois não nos é possível, como avançado, divisar o que nos reserva o futuro.

Esta visão da "história" da pintura é notoriamente reducionista, mas entendo ser ela apenas uma das perspectivas a considerar em demanda do entendimento da arte e das mudanças por que passou. Essa via tem de ser complementada por outras capazes de lançar luz sobre as demais vertentes do desenvolvimento de nossa sensibilidade artística. Podemos pensar, por exemplo, num movimento não programado dos homens em busca de sua essência, daí terem ido do mundo da caça ao mundo da pura abstração formal; como se caminhassem da realidade dada (do mundo externo) para uma supra-realidade, para a meta-realidade (para nossa interioridade). Enfim, não existe apenas uma via analítica, mas um grande número delas.

 

* Professor Universitário aposentado.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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