América do Sul poderá ajudar a extrair o petróleo do pré-sal

Os países da América do Sul poderão cooperar com o complexo industrial destinado à produção do petróleo do pré-sal, dentro de uma estratégia de integração das cadeias produtivas na região. Essa é a visão do assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia.

Na exploração das reservas de petróleo do pré-sal e outros poços em exploração, a Petrobrás prevê uma expansão da sua frota de navios em mais 200 novas embarcações. Trata-se de uma demanda capaz de sustentar um ciclo de industrialização complementar com diferentes parceiros da região, estreitando os laços na formação de um sistema econômico integrado que não se limite a conectar atividades já existentes, mas também a criar novas dinâmicas inteiramente ancoradas numa complementariedade sul-americana.


Em entrevista à Agência Brasil, Garcia também fala sobre as atuais assimetrias comerciais do continente e quais alternativas podem ser tomadas para equacioná-las. Leia abaixo os principais trechos:


A descoberta do pré-sal vai implicar alguma mudança nesse processo de integração industrial com os nossos vizinhos. Como o senhor está vendo este processo?


Só para citar um número, a Petrobras terá que encomendar 200 navios. Hoje não há capacidade de produção de 200 navios no mundo, então, o presidente Lula tem enfatizado que quer prioridade para a produção disso e de outros componentes ligados a essa gigantesca indústria. Ele quer dar prioridade para o Brasil e para a América do Sul. Então, temos que começar a repertoriar completamente o estado da arte da indústria naval argentina, uruguaia, venezuelana, colombiana. Temos interesse em que essa demanda estimule completamente o processo de industrialização ou reindustrialização da América do Sul. Quando começou o governo Lula, a indústria naval estava muito fragilizada. Houve, então, um salto, a partir também das estatais que começaram produzir as plataformas aqui.


Um modelo desse pressupõe estabilidade econômica, fiscal, ter a regulamentação das legislações?


A supranacionalidade é uma coisa que normalmente vai sendo aceita, aí é sempre um problema de sensibilidade, e eu acho que sua aceitação maior ou menor está sempre ligada à capacidade que ela tem de resolver os problemas substantivos. Se houver base de supranacionalidade que resolva os problemas das assimetrias, os problemas sociais, que fortaleça a democracia, ela será aceita. Se não for assim, não será aceita. No caso europeu, onde é que esbarraram os mecanismos supranacionais que a União Européia criou? Esbarraram no fato de que alguns países acreditaram que não era uma Europa social, não estavam sendo resolvidos problemas cruciais, estava-se tentando montar uma institucionalidade, uma burocracia. Não sei se é esse, ou não, não quero entrar na discussão dos europeus, mas o que digo é que, de qualquer maneira, quando as populações de alguns países ou de todos não se reconhecem mais nas instituições, isso vale tanto para o ponto de vista nacional como regional.


Então quer dizer que, do ponto de vista industrial, o Brasil vai ter uma demanda de submarinos, navios, equipamentos etc?


Nós temos interesse de que essa demanda possa estimular, concretamente, o processo de industrialização e de reindustrialização da América do Sul. Do Brasil, evidentemente. Então no fundo, você observa o seguinte: quando começou o governo Lula, o estado em que se encontrava a indústria naval era muito fragilizado. Hoje, houve um salto. A partir de quê? Também das estatais.


Com essa disponibilidade de energia, a matriz energética também começa a ser revista...


Eu acho que o tema energético tem que ser pensado de forma mais abrangente. Nós vivemos um grande paradoxo na região. A região tem as maiores reservas energéticas do mundo, se você somar o potencial hidroelétrico, petróleo, gás, biocombustíveis, sol, vento, e até nuclear. Então nós temos, sem dúvida, a maior reserva energética do mundo e muito diversificada. Qual é o paradoxo que nós temos aqui? Temos gigantesco potencial energético e temos crise de energia em vários países. Uruguai, que vive sempre no limite, Argentina, no limite, o Chile, o Paraguai, que vivem essa coisa surrealista de ter Itaipu e ter apagão em Assunção, e assim vamos. Então uma das coisas que vamos ter que fazer é buscar soluções coletivas para isso. Coletivas e diferenciadas.


Evidentemente o país que tem o maior potencial hidroelétrico do mundo, e isso é seguro, talvez não tenha o maior potencial de combustíveis fósseis, se formos comparar com o que é o Oriente Médio, com o que é a Rússia. Ainda que as descobertas de gás sejam sensacionais, a expansão das reservas venezuelanas e brasileiras também é muito expressiva. Tirando isso, que poderia ser objeto de discussão, do ponto de vista de hidroeletricidade, que é energia renovável, não poluente e barata, nós temos o maior potencial do mundo. No entanto, nós ainda não temos resolvidos os nossos problemas energéticos.


Tomemos o exemplo do Brasil. Aqui no Brasil, uma das razões do apagão que houve era a ausência de redes de conexão. Quando as zonas de interconexão se estabeleceram, o governo fez um investimento que praticamente dobrou as ligações deredes no Brasil. Apesar de que aumentou muito o consumo, com o crescimento da economia, que provocou o crescimento do consumo doméstico, cerca de 7 milhões de pessoas que receberam o Luz Para Todos. Mas quando essa rede se estabeleceu, os riscos do desabastecimento diminuíram. Estamos fazendo novos investimentos, que nos garantem elevação do teto de proteção. A mesma situação se coloca para a América do Sul. Se, quando construirmos as hidroelétricas de Madeira [do Rio Madeira: Jirau e Santo Antônio] e outras que venham, se formos fazer uma binacional com os bolivianos e com os argentinos, a de Garabi, tudo isso vai ter uma utilização multinacional.


Estamos diante de uma perspectiva de consolidação, de uma espécie de divisão do potencial energético do continente, quer dizer, que cada país tem, como a Bolívia, que tem gás - mas se quiser, pode ter eletricidade - e o Brasil, que não tem tanto, mas tem petróleo suficiente, tem biocombustíveis - o Uruguai está começando a investir em biocombustíveis e agora eles descobriram petróleo. Até porque eu acho que uma das coisas que é interessante é: você veja o tipo de discussão que o pré-sal está produzindo no Brasil. Não é uma discussão ligada, fundamentalmente, à relação de sustentabilidade energética. Não é isso? O que está se discutindo no Brasil exatamente é 'o que é que nós vamos fazer com os excedentes, qual será a utilização do excedente petrolífero que vai se produzir no Brasil?' Nós não queremos exportar petróleo bruto. Por isso decidimos construir duas grandes refinarias, uma no Maranhão e outra, no Ceará. que vão se dedicar a exportar gasolina premium para o mundo, para agregar valor. É evidente que nós vamos querer compartilhar com os outros países os investimentos necessários para a produção da exploração do pré-sal, o impacto que isso terá sobre a economia brasileira é gigantesco.


E aí o senhor acha que fortalece o Mercosul, a visão econômica de região, o senhor acha que isso será um mote para consolidar?


Acho que isso ajudará muito. Não vai nos dispensar de tomar outras medidas, que são claras hoje. Precisamos reforçar a estrutura física, a conectividade entre os países, precisamos reforçar a infra-estrutura energética, porque ela independe do programa do pré-sal. Em terceiro lugar, precisamos fortalecer os mecanismos financeiros, a questão do bloco sul é importante, a quantidade de obras que precisam ser feitas aqui. Precisamos também reforçar as políticas sociais, sobretudo uma série de programas de fronteira que são muito importantes, que beneficiam as populações dos países vizinhos e a nossa também. Vamos ter que pensar, também, em outros mecanismos financeiros, quer dizer, essa experiência que estamos iniciando com a Argentina de comércio em moeda nacional pode se generalizar para os outros países. Há ganhos muito fortes. Por outro lado, precisamos agilizar certos mecanismos de garantia na região.


Hoje em dia o problema não é tanto emprestarmos para o país A, B ou C, uma certa quantia para ele realizar uma obra. A negociação das condições, em geral, é um trabalho de engenharia financeira que se resolve rapidamente. O grande problema, muitas vezes, são as garantias. Então como é que se faz. Convênio de crédito recíproco é um mecanismo, conta-petróleo, conta-gás, conta-isso, conta-aquilo. Esse é um problema que nós também precisamos sofisticar mais. Eu diria que, finalmente, haverá, tudo isso, associado a outra coisa, também importante, que é criar mecanismos de compensação das assimetrias.


Como isso é possível?


Essa institucionalidade se reforça reforçando mecanismos já existentes e criando outros. No caso do Mercosul, nós temos uma estrutura em Montevidéu que é muito frágil. Então ela precisaria ser reforçada, mas consideravelmente, para que pudesse haver, por parte do Mercosul, uma capacidade de iniciativa maior. Agora nós vamos ter um parlamento, que pode ser um elemento importante. Uma particularidade que os países menores, muitas vezes, ficam preocupados, é que o parlamento pode significar uma hegemonia brasileira. Isso é uma bobagem. O Parlamento Europeu não está dominado pela Alemanha, França, Reino Unido ou Polônia, mas em partes e tendências que são partidárias.


O senhor acha que vamos caminhar por esse modelo?


Eu espero que sim.


O debate interno da Bolívia sobre a condução da sua política econômica e social pelo presidente Evo Morales, inclusive levando ao referendo, preocupa?


Acho que preocupa fundamentalmente aos bolivianos e a todos nós, porque a Bolívia é um país que tem uma localização específica no continente. Então, tudo que ocorre [ali] reverbera na América do Sul de maneira geral. Temos uma percepção muito positiva da evolução da região nos últimos anos - todos os presidentes da região foram eleitos em pleitos massivos. A América do Sul está vivendo uma situação nova. O que tenho dito é que não adianta ficarmos incomodados com processos políticos que podem não ser exatamente dentro do figurino que é nosso e de outros países da região. Em alguns países, as instituições estavam muito cristalizadas - 'esclerosadas' talvez seja o termo melhor - e elas não davam conta de novas dinâmicas sociais.


Então, lá pelas tantas, se um rio caudaloso vai passar por um canal muito estreito, esse canal é afetado, e eu chamo a atenção para três países onde houve esse problema - Venezuela, Bolívia e Equador - e a solução encontrada foi mais ou menos a mesma: constituinte, isto é, uma espécie de refundação institucional do país. As pessoas dizem:'mas tem muita agitação'. É evidente. Quando há um redesenho do equilíbrio de forças políticas, é normal que isso aconteça. Tem gente que quer avaliar a América do Sul a partir dos textos de teoria política do Século 19.


Do ponto de vista de nossas relações econômicas com a Bolívia, há espaço para avançarmos?


A Bolívia tem um problema crucial hoje, do ponto de vista econômico. É um país com um potencial gigantesco de expansão: produz hoje quase 50 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e só para o Brasil, exporta 30 bilhões. A Bolívia, cujo consumo interno se expandiu bastante, tinha compromissos importantes de venda para a Argentina, que está renegociando. Ela tem a seu lado um país com uma demanda gigantesca, o Chile. Seria uma demanda de 30, 40 milhões, sem falar que, se as negociações com o Chile progredirem como estão progredindo, para se encontrar uma solução de saída para o mar etc, a Bolívia poderia se transformar também em uma grande exportadora para outros mercados: Ásia, Estados Unidos, México. Calculo que ela teria uma demanda potencial de 100 milhões de metros cúbicos, se não mais. O problema é que tem que expandir a produção. Tomamos a decisão de investir porque acreditávamos que não só tínhamos que assegurar a produção para o consumo brasileiro, como também tínhamos que assegurar condições melhores para o funcionamento econômico da Bolívia. Além disso, há toda uma idéia de que a Bolívia possa agregar valor ao seu gás. A Braskem [empresa do setor petroquímico] quer montar uma grande fábrica lá, mas só pode fazer isso se houver oferta de gás. Precisa ampliar a produção.


Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez estatizou uma empresa de cimento. Esse tipo de atitude estatizante, pode ter algum reflexo do ponto de vista da disposição dos investidores em continuar aplicando no continente?


Acho que não. Alguns investidores podem ficar assustados, mas não acho que seja problema. Em primeiro lugar, porque acredito que a decisão de estatizar determinado setor está ligada a um determinado modelo de desenvolvimento da economia venezuelana. No passado, sofremos a praga das privatizações - no Brasil, não atingiu tanto assim, mas estou me divertindo muito vendo agora aqueles que estavam querendo privatizar a Petrobras, agora a defendem com unhas e dentes. O problema que se coloca sempre é que os investimentos demandam certas garantias. O bom investidor, o que sabe das coisas, vai além das aparências. A Venezuela é um país que, finalmente, decidiu industrializar-se, sair da 'maldição do petróleo'. Portanto, é um campo importante. Os interesses do Brasil estão associados a uma integração produtiva da América do Sul. O Brasil fez essa opção, tem quem não goste, que pense que devemos nos integrar aos Estados Unidos, à Europa. Temos relações muito boas com os dois, mas resolvemos por um processo de integração sul-americana, que consideramos melhor para o Brasil e para a América do Sul.


Com o fortalecimento da economia e da moeda brasileiras, nossas empresas estão expandindo seus negócios para países da América do Sul e expandindo suas indústrias em novos mercados. Como o senhor vê esse processo?


Vejo como um fato positivo, até porque temos dois problemas aqui. Temos hoje uma relação comercial muito desequilibrada em favor do Brasil. Temos um superávit de balança comercial com todos os países da região, menos com a Bolívia, em função das importações de gás. Isso demonstra que a relação comercial muitas vezes não resolve as assimetrias existentes entre as economias sul-americanas, pelo contrário, até agrava. Uma das formas pelas quais podemos compensar isso - além dos mecanismos multilaterais, como fundos, programas de infra-estrutura e financiamentos que o Brasil tem propiciado para construção de obras nesses países - é justamente por intermédio de investimentos. E o Brasil tem sido demandado, em grande medida, a estimular os países que precisam de investimentos.


Há áreas específicas pelas quais o Brasil e os parceiros têm preferência?


Depende muito do país. Há investimentos na área petrolífera, de gás e de minérios. A Petrobras está presente hoje na Argentina, na Colômbia, no Peru. Temos mineradoras, como a Vale, e temos presença forte na área industrial, o que nos interessa, porque uma das formas de estabelecer uma relação mais equilibrada com os países da região é ajudá-los a levar adiante um processo de industrialização - seja ele complementar às nossas indústrias, às indústrias argentinas, seja um processo autônomo. O Brasil tem estimulado muito o desenvolvimento industrial e agrícola da Venezuela.


O desenho que está sendo pensado pelo governo brasileiro é de uma integração econômica maior?


Esse pelo menos é o movimento que temos tentado impulsionar. Agora, nossa economia é uma economia de mercado, temos possibilidade de estimular investimentos, direcionar, mas não de dizer para onde uma fábrica vai. Mas as políticas governamentais são fundamentais nesse particular.

Fonte: www.vermelho.org.br

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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