O paradigma mecanicista versus paradigma organicista (2ª parte)

Natureza não viva: sujeito irracional

Imagem de satélite do tufão Hayan, 2013.

Por Arthur Soffiati - PhD. ecohistoriador e ambientalista

Na tradição historiográfica marxista, os fatores externos de um processo histórico contam pouco ou não contam nada. Valoriza-se a dinâmica interna, como a luta de classes, a contradição entre meios de produção e organização social de produção ou a concorrência entre grupos e empresários. Por este ângulo, o clima, a formação geológica, a topografia, o solo, as águas, as formações vegetais nativas e os seres vivos em geral não são devidamente valorizados. Numa passagem de "O capital", Marx diz que as condições naturais da Europa favoreceram o nascimento do capitalismo, que nunca se originaria nos ambientes tropicais, onde a natureza paparica os seres humanos. Mas os historiadores marxistas trataram de expurgar o papel da natureza em suas análises históricas.

         Assim, o marxismo não consegue explicar, por exemplo, como algumas sociedades caçadoras e coletoras (as do Paleolítico) se transformaram em agricultoras e pastoras (as do Neolítico) recorrendo apenas à dinâmica interna das primeiras. Entre elas, não havia classes, empresários, cidades, Estados, enfim, elementos propícios a contradições internas que levassem tais sociedades à condição de sedentárias ou semi-sedentárias. A domesticação de plantas e animais só foi possível com as grandes mudanças climáticas do Pleistoceno, com o aquecimento natural do planeta e com o derretimento das geleiras, que quase alcançavam o Trópico de Câncer.

         Reconheço três grupos de fatores externos que podem influenciar a dinâmica interna de uma sociedade: 1- os humanos, 2- os biológicos e 3- os físicos. As primeiras cidades foram construídas há cerca de 3200 anos antes de Cristo, talvez mais, no Oriente Médio. Elas eram fortificadas não apenas para se defenderem de outras cidades pertencentes à mesma civilização, como na Suméria, mas também dos nômades que viviam no Deserto da Arábia e nas montanhas do Elã. Eles não faziam parte da civilização sumeriana, mas eram atraídos pelos recursos produzidos nas cidades, sobretudo alimentos. Como explicar todo o processo de aculturação das civilizações orientais sem considerar o maremoto representado por Alexandre da Macedônia. O império alexandrino influenciou até o budismo nas suas origens espaciais, na Índia, chegando à China. O mesmo pode se dizer do tufão europeu, que modificou profundamente as sociedades do mundo inteiro, a partir do século 15. Poder-se-ia argumentar que ainda estamos no domínio do humano.

         Então, como absorver as grandes epidemias que varreram a Europa, como a Peste Negra, no século 14, e a Gripe Espanhola, no século XX, que, inclusive, alcançou outros continentes? Já existem estudos de história analisando o papel das epidemias nas mudanças sociais. Por eles, ficamos sabendo que doenças transmissíveis, como a gripe, o sarampo, a varíola e outras dizimaram muitos grupos ameríndios, talvez até mais que as armas de fogo dos europeus. A AIDS apareceu na África e se espalhou pelo mundo, fazendo várias vítimas. Uma corrente explicativa acredita que ela foi transmitida aos humanos por relações sexuais destes com macacos. A gripe aviária também afetou o Sudeste Asiático em 2005. O ebola matou muitas pessoas na África, em 1976 e 1979. Num mundo cada vez mais globalizado pelo ocidente, as epidemias encontram campo fértil para se propagarem.

         Quanto aos fenômenos físicos, é certo que eles provocaram profundas mudanças não apenas nas sociedades humanas, mas no planeta, antes da emergência do "Homo sapiens". A maioria dos paleontólogos acredita que a colisão de um grande asteróide com a Terra tenha exterminado os dinossauros. Como não separo história do Universo, história da vida e história da humanidade, posso citar este exemplo em favor da tese que defendo: não apenas os humanos são sujeitos de história. Com o novo paradigma naturalista organicista, os seres vivos deixam de ser palco ou atores coadjuvantes para serem protagonistas.

         O terremoto que assolou Lisboa em 1755 causou destruição em massa. Já a grande erupção do Krakatoa, na Indonésia, em 1883, além de extinguir a ilha em que se situava, matou 37 mil pessoas. Poeira e cinzas lançadas por ele entraram na atmosfera e circularam por todo o planeta. A gravidade da maior erupção vulcânica dos tempos humanos só não foi maior porque havia menos pessoas no mundo. Muitos outros fenômenos físicos podem ser citados, como o terremoto no Haiti, em 2010 e os tsunamis de 2004 e de 2011, na Ásia. Quanto às chuvas na Região Serrana fluminense, em 2011, o recente tufão Hayan, no sul das Filipinas, que matou cerca de 10 mil e deixou atrás de si um grande rastro de destruição, cabe considerar que podem ser resultado da ação humana coletiva pós-revolução industrial.

         Edgar Morin propõe, no primeiro volume de "O método" ("A natureza da natureza"), que os fenômenos físicos têm organização interna e externa. Diante das catástrofes climáticas recentes, estou considerando também os fenômenos físicos como agentes de história, embora irracionais.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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