Itália: o pavio populista e o barril europeu

Itália: o pavio populista e o barril europeu

 

Flávio Gonçalves, Pravda.ru

 

Adiei propositadamente pronunciar-me sobre a aliança dos extremos populistas em Itália, pessoalmente não me chocou uma vez que desde as Eleições Europeias de tenho vindo a acompanhar as alianças e acordos pontuais efectuados nos corredores do Parlamento Europeu pelas várias forças populistas da extrema-esquerda e da extrema-direita. Sempre me ocorreu que estes acordos decorriam graças à segurança dos muros de Bruxelas e Estrasburgo, onde os populistas de ambos os lados podem negociar resguardados da fiscalização do seu eleitorado natural. Alguns destes acordos foram menos pontuais que outros dado que permitiram a criação de vários grupos parlamentares e partidos europeus e produziram estranhas alianças que um dia espero relatar em livro.

 

Resumindo, que os populistas de esquerda e de direita se entendam não me chocou e não é nada de novo para aqueles que, como eu, já se aperceberam que actualmente os eurodeputados são muito mais relevantes para as políticas nacionais de cada Estado membro da União Europeia do que as eleições nacionais, algo que os partidos portugueses ainda teimam em ignorar uma vez que uma quota parte dos nossos eurodeputados é seleccionado pelos aparelhos para afastar vozes dissonantes do território nacional e não pelas suas qualidades e fidelidade ao projecto europeu. Há muito que denuncio esta realidade, seja na blogosfera ou nos jornais por onde passei anteriormente, as Europeias actualmente são as eleições mais importantes para todas as nações e povos europeus!

 

Antes de avançar creio que seria de bom tom afirmar primeiro algumas balizas quanto ao meu posicionamento ideológico em relação à União Europeia: sou um convicto federalista europeu, é uma bandeira que assumo há muitos anos e cuja convicção devo em grande parte ao posicionamento público e aos escritos do meu conterrâneo José Medeiros Ferreira, cujo obituário e elogio fúnebre tive o desprazer de redigir para o semanário "O Diabo" em Março de 2014. A meu ver a União Europeia já se devia ter consolidado poucos anos após a criação do Euro em uma autêntica Federação (os "temidos" Estados Unidos da Europa) e nem lhe era preciso alterar o nome. 

 

Com um governo europeu, uma política económica de âmbito continental, a criação de um Senado Europeu e de um Ordenado Mínimo Europeu conjugados com uma política externa própria não teríamos chegado ao actual desastre. Mas por interesses alheios aos povos e às nações europeias tal não aconteceu e agora há que lidar com a realidade que se nos apresenta: em vez de uma Europa Federal, temos já uma Europa em desagregação, com Estados como o Reino Unido a desvincularem-se e bolsas de resistência social e nacional a surgirem eleitoralmente em praticamente todos os países, com a excepção de Portugal. O processo de integração europeia estagnou-se de tal modo que perdemos a oportunidade de consolidar uma Turquia europeia e laica em vez do actual espectro islamita de laivos fascistas na qual a tornou Erdogan. 

 

Cimentada acima a minha opinião e posicionamento ideológico pessoais, socialista, libertário e federalista europeu caso não tenha ficado suficientemente claro, debrucemos-nos agora sobre a crise política italiana na qual além dos populistas de direita da Liga e de esquerda do Movimento 5 Estrelas terem conseguido atingir um acordo histórico para formar governo (está no seu direito, goste-se ou não o voto popular é soberano e em democracia há que aceitar posições e opiniões que nos são antagónicas) tal de nada serviu uma vez que o Presidente de Itália preferiu levar a cabo uma espécie de golpe de Estado, recusar o governo que lhe foi proposto e, pela segunda vez na história recente da Itália, impor um primeiro-ministro tecnocrata europeu, desta vez ligado ao Fundo Monetário Internacional.

 

A vacina italiana?

 

Ora bem, como se atrasou a integração europeia ao ponto de surgirem estes sintomas claros de desagregação agora optou-se por uma emenda pior que o soneto e, na mentalidade do eleitorado italiano, confirmou-se aquilo que os populistas eurocépticos sempre propaganderam: a União Europeia é uma força externa que nos é imposta de forma tirânica. Tal significa que se nestas Legislativas a Liga e o Movimento 5 Estrelas já conseguiram a maioria necessária para governar, nas próximas uma destas duas forças irá obter uma maioria absoluta ou, no pior dos casos, ambas saem reforçadas e apresentam o mesmo acordo, primeiro-ministro e ministros que agora... e então? Terá o Presidente a coragem anti-democrática de, uma vez mais, lhes recusar o poder?

 

O mais curioso de tudo isto é que o governo Liga/Movimento 5 Estrelas bem pode moldar o futuro da Europa, quer resulte quer não. Como? Referi anteriormente que desde 2014 que acompanho as alianças, moções e votos dos eurodeputados populistas, é algo ao alcance de qualquer estudioso ou curioso pois o Parlamento Europeu e algumas ONG disponibilizam gratuitamente várias ferramentas virtuais que nos permitem escrutinar as andanças dos eurodeputados. Quem o tenha efectuado verá que, salvo os casos fracturantes como o aborto e os direitos das minorias, os populistas europeus tendem a apresentar moções e a defender posicionamentos semelhantes em questões económicas e de relações internacionais.

 

Em Espanha o Ciudadanos (populistas de direita) e o Podemos (populistas de esquerda) já surgem nas sondagens como cativando maior simpatia eleitoral que o PSOE e o Partido Popular! Nas eleições francesas que colocaram a Frente Nacional de Marine Le Pen (populista de direita) em segundo lugar, o "Le Monde Diplomatique" deu-se ao trabalho de comparar o programa desta com o da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon (populista de esquerda) para concluir que tinham mais semelhanças que dissonâncias, inclusivamente em questões delicadas como os refugiados sírios! Estamos a falar de partidos que em Portugal obtiveram simpatias do Partido Nacional Renovador (caso de Le Pen) e do Bloco de Esquerda (caso de Mélenchon). 

 

Os partidos acima podem muito bem aliar-se e constituir maiorias absolutas nos seus respectivos parlamentos. E estamos a descurar outro gigante, a Alemanha! Sim, os eurodeputados populistas alemães não raras vezes têm colaborado - mormente em questões de política externa, mas tal pode expandir-se. Refiro-me à Alternativa Para a Alemanha (populista de direita) e ao A Esquerda (populista de esquerda). Aliás, a aliança entre populistas não é nova e já aconteceu na Grécia ao abrigo do silêncio da comunicação social de massas. Em Portugal, que me ocorra, só Ricardo Araújo Pereira se atreveu a mencionar isto no decorrer de uma entrevista com Catarina Martins, onde provocativamente perguntou se em Portugal um dia veríamos um governo BE e PNR como o governo Syriza (populista de esquerda) e Gregos Independentes (populista de direita), que o BE então apoiava!

 

Portanto, um governo Liga/Movimento 5 Estrelas em Itália arrisca-se a ser ou um modelo a seguir caso prove ser um sucesso de crescimento económico e de qualidade de vida para o eleitorado italiano ou, pelo contrário, se correr mal, pode bem ser a vacina que irá salvar o Projecto Europeu, pois se falhar e os italianos após um governo populista se virem piores do que estão é certo que os restantes populistas europeus manterão as suas alianças no resguardo dos corredores do Parlamento Europeu e não tentarão repetir o modelo italiano nos seus respectivos países. 

 

A meu ver a única solução passa pela revitalização da esquerda democrática e europeísta, pelo Labour de Jeremy Corbyn (a ponderar rebater o Brexit), pelo PS de António Costa (a aliar-se à esquerda e abandonando o centrão que por pouco não tornava o PS em mera ala esquerda do centro-direita), pelo PSOE (que conseguiu agora aliar-se ao Podemos na moção de censura ao governo de direita), por um SPD alemão e um PS francês mais disponíveis à esquerda e menos próximos do sistema da direita subserviente a interesses que são alheios aos direitos e ao bem estar dos seus respectivos povos. Conseguiremos?

 

Flávio Gonçalves é membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono, sócio fundador do Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares, director da revista "Libertária" e colaborador do Pravda.ru, pode segui-lo em twitter.com/flagoncal e fb.com/flagoncal

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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