Fazer a discussão sempre adiada: os 50 anos do Relatório Kruschev

Paulo Fidalgo, Associação Política – Renovação Comunista

É uma oportunidade usar o aniversário da Revolução Bolchevique, para reflectir sobre o estado do projecto comunista. É essa a ambição da Associação Política - Renovação Comunista quando promove um debate sobre os 50 anos do XXº Congresso do PCUS, no próximo dia 7 Novembro no Museu da República e Resistência. Procura-se abrir a fechadura de um cofre blindado onde se escondem as contradições da história dos comunistas. Para as quais não houve e continuar a não haver coragem de desenterrar a cabeça da areia.

Da re-leitura do relatório «secreto» que Krushchev atirou para cima do XXº Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a 24 de Fevereiro de 1956, percebemos como foram bombásticas as suas revelações. Que consternaram milhões de comunistas, confrontados com um Stálin perverso, violador imperdoável da legalidade socialista e responsável por um gravíssimo atentado à esperança dos comunistas.

Visto à distância, o relatório é contudo, um documento bastante incipiente. Enfatizou a denúncia do «culto da personalidade», ignorando os seus fundamentos, sobretudo de índole económica. Tanto se centrou no culto da personalidade que se transformou ele próprio no negativo da denúncia, numa espécie de culto da anti-personalidade malévola.

Ignorou estrondosamente a cadeia de fenómenos que necessariamente tinham de explicar não só a personalidade, mas sobretudo os seus apoios, escolhas, e projecto.

Foi sem dúvida muito importante denunciar as purgas, fuzilamentos e deportações.

Onde de resto se pode constatar que foram em primeiro lugar os comunistas as vítimas maiores de Stálin. Foi igualmente importante a denúncia do desastre nos primeiros meses do blitzkrieg nazi que levou em 1941 a Wermartch aos arredores da Praça Vermelha, em Moscovo. Foi importante na distensão do clima da guerra-fria e na promoção da coexistência pacífica. Foi finalmente importante a linha de aproximação à Jugoslávia de Tito.

Estabeleceu porém o relatório os limites ideológicos da própria desestalinização ao defender os méritos de Stálin na derrota da direita e da esquerda bolcheviques no final dos anos 20 do século XX. Na medida em que, como nele se diz, ter-se-ia assim possibilitado à URSS desenvolver prioritariamente a indústria pesada e capturar o patamar de desenvolvimento das potências capitalistas. É importante assinalar de resto que o PCUS de Krushchev negou expressamente a reabilitação dos heróis comunistas mais representativos dessas correntes, Trosky e Bukharine, assassinados às ordens de Stálin. Sublinhe-se, naquilo que é um conceito tecnocrata amplamente criticado no marxismo moderno, a prioridade de tal projecto dada à tecnologia e às forças produtivas, onde se desvalorizam portanto, em contraponto, as relações de produção, o motor afinal da transformação socialista.

Ao querer manter enjaulado o processo, que tinha afinal dado origem a Stálin, Krushchev estava por um lado a cumprir um dado acordo no seio da direcção e, por outro, fugia ao verdadeiro debate que ainda hoje assombra o campo comunista: a controvérsia bolchevique dos anos 20, brutalmente interrompida por Stálin em 1928.

Os bolcheviques chegam ao poder em 7 de Novembro de 1917 sem um verdadeiro programa económico para a transição socialista. Confrontados com as tarefas de desenvolvimento, debateram asperamente opções contraditórias de política económica, entre a minoria de esquerda e de direita no Comité Central. É conhecido que a URSS adoptou uma linha de esquerda entre 1918 e 1921, durante a guerra civil, e uma linha de direita a partir de 1921, sob proposta de Lenine, conhecida como NEP (new economic policy), e que vigorou para além da sua morte até 1928, altura em que se dá a expulsão de Bukharine da direcção.

Resumidamente, Stálin alia-se à direita para derrotar a esquerda, rodeia-se de aparelhagem pela sua posição de secretário-geral, e esmaga depois a direita, para adoptar muitas das receitas da esquerda, mas num ambiente de despotismo económico e político. Entre a esquerda e a direita há opções discriminantes óbvias. A esquerda jogava no rápido desenvolvimento económico, por via estatal, com colapso da lei do valor e através da chamada acumulação socialista primitiva, um expediente para manter o assalariamento e sobre-taxar o campesinato a favor das formações estatais.

A direita tinha uma posição evolucionária, onde formações contraditórias poderiam competir pela vantagem histórica, assistidas eventualmente por um governo favorável, com prioridade à smychka – um compromisso voluntário entre o operariado e o campesinato expresso na bandeira da foice e do martelo. A direita privilegiava a lei do valor como propulsora de expansão socialista, acreditava que o controlo laboral dos excedentes (do lucro) levaria à libertação do génio produtivo dos trabalhadores. A esquerda era estatista e anti-mercantil e a direita desestatizadora e favorável à manutenção por um longo período das relações mercantis.

Confrontado com dificuldades económicas, Krushchev recorreu empiricamente a algumas soluções bukarinistas, de restauro das relações mercantis, de reapropriação das mais-valias pelas empresas estatais e um vasto programa de incentivos ao campesinato. Sem que estivesse contudo apetrechado de teoria suficiente para empreender uma remodelação da estratégia de transição. Ameaçou ainda assim de tal forma a elite administrativa e burocrática que acabou por ser por ela derrotado em 1964 a favor de Brejznev.

Qual a pertinência de retomar hoje as velhas discussões bolcheviques? É que a extensão do crescimento da economia estatal na URSS foi um resultado inesperado em relação ao pensamento clássico de Marx e Lenine, fruto da imaturidade do programa bolchevique. Antecipou porém, em muitos aspectos, a evolução económica mundial, sobretudo na Europa ocidental, onde o Estado cresceu como formação económica de relevo, apesar dos ataques neoliberais. Perante o qual, precisam os trabalhadores e os comunistas de debater o sentido da sua intervenção. Para que as oportunidades de alcançarem posições de governo e na administração, sirvam para a transformação em direcção socialista.

Que linha adoptar então face ás formações económicas estatais que hoje proliferam, apesar de defrontarem em muitos casos a oposição dos políticos capitalistas? Irá a esquerda limitar-se a administrar a economia estatal, tal qual a herdem dos capitalistas, ou vão partir dessa plataforma para empreender uma efectiva remodelação?

Vão continuar a favorecer uma apropriação estatal da riqueza, com perpetuação do assalariamento, naquilo que é um pensamento da esquerda, ou vão empreender, pelo contrário, uma transformação das relações de produção que dêem aos trabalhadores mais poder e controlo sobre a riqueza de que são os principais criadores, no que pode ser olhado como um argumento à maneira de Bukharine?

O programa de alternativa que os comunistas irão empunhar carece portanto de uma superação dos bloqueios sobretudo ao nível da teoria económica que degeneraram no Estalinismo, e que acabaram por derrotar as sucessivas tentativas de o corrigir. De acordo com o historiador (Eric Hobsbawn, um historiador marxista maior do século XX) a história não serve para resolver problemas, mas identifica os problemas que temos que resolver.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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