O fim da credibilidade

Durante o programa Matéria de Capa, da TV Cultura de São Paulo, cientistas respeitados que são contrários aos transgênicos não foram entrevistados e muito menos tiveram tempo equivalente ao professor da USP defensor dos transgênicos.
 
Por Sérgio Batista
 
Como fazer uma matéria tendenciosa, como conduzir os telespectadores ao ponto que queremos, como selecionar os argumentos que direcionam as pessoas a chegarem às conclusões que queremos, como desqualificar os argumentos contrários, como transformar problemas reais (como desigualdades sociais, alterações culturais da modernidade, crescimento da miséria, crescimento populacional) em argumentos para induzir os clientes a chegarem a opção favorável aos transgênicos? Nem o Canal Rural (representante do agronegócio) foi tão eficiente como Aldo Quiroga, apresentado do programa Matéria de Capa, da TV Cultura de São Paulo. Este nos deu uma aula de tudo isto.

A partir de domingo (27/10/2013), devemos nos lembrar a cada ano (nos próximos 15 anos) deste programa como um marco da perda da credibilidade da TV Cultura. Credibilidade que foi construída há muitos anos; credibilidade construída a partir de matérias que ajudavam mostrar os dois lados de forma equilibrada (o próprio Matéria de Capa fez isto na matéria sobre Belo Monte). Mas hoje, o Matéria de Capa talvez seja premiado pelo agronegócio - Monsanto etc. -, prêmio merecido por abordar um lado da questão (importante também, mas apenas um lado).

Os cientistas respeitados que são contrários aos transgênicos não foram entrevistados e muito menos tiveram tempo equivalente ao professor da USP defensor dos transgênicos. Partiu se do fato consumado (lógica tão apreciada atualmente); não se mostrou que os transgênicos foram impostos por fato consumado e desobediência civil, marcados por um lobby no Congresso para aprovação, desrespeitando todos os alertas de segurança à saúde pública.

Equívoco jornalístico?

As alergias resistentes, que estão sendo pesquisadas como resultado dos transgênicos, foram desprezadas e trabalhou-se com a premissa e pressuposto das inovações como algo sempre positivo, não se citaram fatos como, por exemplo, os responsáveis pela liberação dos transgênicos meses depois a liberação, serem contratados por empresas ligadas aos transgênicos em diversos lugares do mundo, não se consultou o Greenpeace, que historicamente pesquisa e se contrapõe com argumentos sólidos e claros, não se falou que 10 anos não representam absolutamente nada para avaliar sementes que levaram milhões de anos para evoluir (ou ainda, os efeitos dos transgênicos no organismo de animais alimentados por transgênicos que serão consumidos pelo ser humano), não se falou da privatização da vida pelas empresas de transgenia, os efeitos já constatados pela ciência no sentido dos danos da biodiversidade. Não se falou da dependência da agricultura familiar e das tradicionais gerada pelo fato das sementes transgênicas não serem reproduzidas (ou seja, as sementes tradicionais possibilitam o replantio) e contaminarem destrutivamente as sementes tradicionais.

Foram feitas relações simplistas de causa e efeito para justificar a transgenia, como a dolorosa e histórica frase "Quem pode falar para os famintos que não comam alimentos transgênicos". Os famintos são frutos não da escassez de alimento - hoje a questão não é mais a produção ou produtividade, mas a distribuição, a desigualdade entre nações etc.! Quero acreditar que esta matéria foi um equívoco jornalístico, uma falta de pesquisa, de melhor adaptação e preocupação com a imparcialidade. Quando a TV Cultura permite um programa com tal desequilíbrio ir ao ar, demonstra o fim do sistema que garantia a sua credibilidade.

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Sérgio Batista é cientista social, São Paulo, SP
EcoAgência

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