Brasil: a tática Black Bloc e a ordem instituída

Brasil: a tática Black Bloc e a ordem instituída 

"As ações do MPL foram uma aula. Eu já sentia muita raiva, mas só depois de junho eu aprendi o que era ação direta, como a violência pode provocar mudanças no sistema. Esse tipo de protesto é o resultado do ódio que eu sinto contra o sistema. O objetivo é destruir para construir", afirmação de  um brasileiro que, nos eventos recentes, tem utilizado a tática "Black Bloc".

 

Iraci del Nero da Costa *

  

"As ações do MPL foram uma aula. Eu já sentia muita raiva, mas só depois de junho eu aprendi o que era ação direta, como a violência pode provocar mudanças no sistema. Esse tipo de protesto é o resultado do ódio que eu sinto contra o sistema. O objetivo é destruir para construir", afirmação de  um brasileiro que, nos eventos recentes, tem utilizado a tática "Black Bloc".

  

Pessoas que se sentem ofendidas, discriminadas, repreendidas, menosprezadas por considerarem que seus dons não são devidamente reconhecidos e valorizados ou vitimadas por qualquer sorte de atitude ou de ação, por vezes, voltam-se contra a sociedade em que vivem, contra a "ordem instituída", não porque estejam contra esta dada ordem, mas porque, por razões de ordem objetiva ou subjetiva, sentem-se feridas pela "ordem instituída", ou, empregando termos mais corretos, sentem-se ofendidas pela sociedade enquanto tal. Desejam elas, aberta ou apenas reconditamente, destruí-la como forma de afastar, de exterminar, aquilo que têm como seu malfeitor maior. Matar um algoz significa, pura e simplesmente, destruí-lo. Na verdade, não há nada a ser construído, estão presentes na psique dessas pessoas apenas dois elementos: a destruição do que as magoou e a afirmação de suas personalidades, de suas individualidades, ainda que desapegadas de todo o restante da humanidade.

Evidentemente, estamos em face de recalcados e não de agentes políticos conscientes. Não obstante, ainda no próprio quadro de suas agonias, tais pessoas, como aventado acima, podem tomar como sua a tarefa de destruir a sociedade que as vitimou. Para tais indivíduos, "construir uma sociedade justa" significa, tão somente, a destruição daquilo que os machuca ou daquilo que julgam tê-los  agredido. Não há plano, não há projeto político, não há base ideológica alguma, basta-lhes o ressentimento que os oprime.

Não é raro encontrarmos, agregados a movimentos de esquerda, militantes com o perfil ora traçado. Nada pior do que isso, pois a esquerda, a fim de ser capaz de propor mudanças positivas e a fim de poder lutar correta e consequentemente por tais avanços tem de ser integrada por elementos absolutamente identificados positivamente com a sociedade, solidários com o todo social e interessados não na "destruição física" de inimigos imaginários mas na construção de condições políticas superiores às vigentes. Destarte, o verdadeiro militante de esquerda deve ser contra as mazelas encontráveis na sociedade e desejar removê-las de sorte a afirmar, e no limite criar, uma vida social sã, justa e fraterna.

È uma verdade absoluta que a "destruição" da propriedade privada sobre os meios de produção é condição primacial e primeira para a construção da sociabilidade de novo tipo almejada pelos socialistas e comunistas. O problema está em que, muitas das pessoas cuja personalidade foi descrita acima e que se julgam de esquerda imaginam, em seu desvario, que se trata da destruição física da propriedade quando o necessário e o que desejam aqueles primeiros é a "destruição jurídica" da propriedade privada sobre os ditos meios. Destruição jurídica é um ato político a ser conquistado, necessariamente, com base numa resolução calcada no absoluto respeito às normas democráticas as quais constituem cláusulas pétreas para os autênticos esquerdistas; assim, a menos que se esteja a lutar contra uma ditadura irredutível, implica um erro inaceitável propor qualquer tipo de ofensa física aos bens privados ou públicos existentes em qualquer sociedade, sejam eles meios de produção ou não.

Como consignamos em outro texto: "se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades de cada um de seus integrantes (e é isto que os comunistas alegam querer), seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1) tal sociedade tem de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa sociedade tem de ser "pensada", projetada, antes de existir concretamente, pois ... a  natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la; aliás, pelo contrário, o que se produziu "naturalmente" foi justamente a propriedade privada sobre os meios de produção, óbice maior à instituição da aludida sociedade almejada pelos comunistas; 3) ... tal sociedade não é um produto da natureza, mas algo antinatural, decorrente da vontade dos homens (do espírito); não traz em si, portanto, os elementos necessários à sua reprodução (re-posição), pois, "colocada" (posta) pelo espírito, por ele terá de ser re-colocada, cabendo a ele, portanto, sustentá-la." Ademais (afirma-se no mesmo artigo), "cumpre lembrar que tal sustentação só se verá garantida se forem obedecidas duas condições essenciais e sem as quais, cremos, é impossível pensar-se numa sociedade "pós-capitalista" auto-sustentável. Em primeiro, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova  forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a estes elementos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. De outra parte, as vontades individuais desenvolvidas em tal ambiência devem associar-se livremente de sorte a chegar-se à organização necessária àquela sustentação. Liberdade e associação definem-se, pois, não só como metas desejáveis por si, mas, e sobretudo, como elementos imanentes à assim chamada sociabilidade "pós-capitalista". (Cf. COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 51-52, p. 49).

Essas nossas opiniões dão sustentação, cremos, à postura que adotamos contra a admissão como "homens (e mulheres) de esquerda" das pessoas que se propõem levar a cabo a destruição da sociedade na qual vivem e que, objetivamente, se colocam a serviço da repressão.

Uma crítica cabível com respeito à posição acima explicitada diz respeito ao fato de que podemos interpretar a afirmação "o objetivo é destruir para construir" como um "aviso", como um alerta de que "nós, que somos contra o sistema, estamos aqui, vivos e atuantes". A tal objeção podemos contrapor a pergunta: "construir o quê?". Ao invés da destruição não seria mais razoável explicitar o que se pretende construir? Ou será que o projeto não se estende além do ódio devotado contra o sistema? Estaremos a viver em uma sociedade tamanhamente perversa e fechada que impede inteiramente a propositura de ações positivas? De soluções razoáveis para enfrentar os óbices colocados à vivência mais justa? Enfim, para onde nos conduz uma tática meramente destrutiva senão à própria autodestruição?

    

* Iraci del Nero da Costa é professor livre-docente aposentado da USP.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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