Cesare Battisti

Laerte Braga

Um vídeo mostra o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi limpando o nariz com o dedo, contemplando o peloto retirado e em seguida olhando para os lados. Estava tentando perceber se alguém olhava diretamente para ele. Como achasse que não, colocou o peloto na boca e engoliu-o com o cafezinho*.

Berlusconi é o todo poderoso governante da Itália, dono da equipe da Milan, banqueiro, empresário, reedição contemporânea de Benito Mussolini. E asqueroso. O fato narrado no primeiro parágrafo embora sugira apenas algo nojento é bem mais que isso, é conseqüência de um desvio de personalidade, digamos assim, traço revelador de um caráter perverso.

O simples fato de ser banqueiro já mostra a natureza do seu caráter. Banqueiros não têm idéia que existam outros, tão somente acreditam num bando de dependentes de seu dinheiro. Os explorados. Que, por sua vez, não percebem que o dinheiro dos banqueiros é deles explorados. Banqueiros são saqueadores e quando governantes ampliam a área do saque.

O governo da Itália com base em premissas falsas pediu a extradição do escritor Cesare Battisti, preso faz quase dois anos no Brasil. Battisti é acusado de “terrorismo” por ter pertencido a um grupo de luta armada na Itália. Da prática de “atentados” contra instituições, próprios e cidadãos italianos.

Um dos integrantes do grupo, quando preso, negociou penas menores e vantagens no seu processo atribuindo a culpa dos atos de guerra a Battisti. No caso específico quatro “homicídios”.

O escritor, que havia abandonado o grupo por divergências políticas ficou exilado na França durante o período em que o socialista François Mitterand foi presidente daquele país e em seguida veio para o Brasil. Os governos franceses à direita e que sucederam Mitterand pretendiam entregá-lo à “justiça” italiana, onde está condenado, como conseqüência da delação de um antigo companheiro, a prisão perpétua.

Há indícios, vestígios, que o pedido de extradição de Battisti feito pelo governo da Itália tenha sido negociado com o governo do Brasil em troca de Salvatore Cacciola. O banqueiro foi preso no principado de Mônaco onde passava um fim de semana e num processo longo e demorado foi extraditado para o Brasil. Cacciola havia passado outros fins de semana em Mônaco e nunca fora importunado pelas autoridades do principado. Um dos pilares do governo de Mônaco é acolher indistintamente todos os milionários que lá aportam sem perguntar como ficaram milionários, o que fazem, ou o que fizeram. É uma espécie de oásis para esse tipo de criminoso.

Cacciola, nas vezes anteriores que lá esteve, foi tratado como cidadão de primeira categoria.

Se o acordo é vero não sei, mas que os fatos apontam na direção de algum acordo isso apontam.

Onde há fumaça há fogo.

O Conselho Nacional de Refugiados (CONARE) rejeitou em 28 de novembro o pedido de refúgio político feito por Battisti através de seus advogados. Acusado de pertencer ao grupo Proletários Armados para o Comunismo, Battisti foi condenado à revelia por quatro homicídios.

A decisão do CONARE não foi unânime, embora não tenham sido dados detalhes. Mania das autoridades de um modo geral em quase todos os países do mundo de se eximirem de responsabilidades diante de fatos ou injustiças como a decisão do Conselho.

A sorte de Battisti está em mãos do ministro da Justiça Tarso Genro. Há um recurso a ser apreciado pelo ministro que pode conceder ao escritor a condição de refugiado. Caso contrário Battisti terá o processo de extradição julgado pelo stf (antigo supremo tribunal federal hoje dantas &e dantas s/a) e se for julgado procedente o pedido do governo italiano Battisti será extraditado.

No Brasil não existe a prisão perpétua. Uma das condições para que Battisti possa ser extraditado será um compromisso do governo italiano para que o exilado não seja condenado a pena superior a 30 anos. Na prática prisão perpétua. Battisti tem 53 anos e sairia da cadeia com 83.

Os supostos crimes cometidos por Battisti foram julgados pela justiça comum italiana. Não foram, como o são, considerados crimes políticos.

Já não existe mais o amparo para estrangeiros casados com mulher brasileira, ou pai de filhos brasileiros como condição para que sejam negados pedidos de extradição, como aconteceu com o célebre Ronald Bigs, assaltante do trem pagador inglês.

É da tradição do Brasil abrigar exilados políticos dos mais variados matizes ideológicos. Foi assim com George Bidault, ex-primeiro ministro francês e que aqui se refugiou quando De Gaulle assumiu o governo e decidiu conceder a independência à Argélia. Uma guerra civil que se prolongava há anos e arrasava, em todos os sentidos, a França. Bidault foi contra a política de De Gaulle e fez parte de uma organização formada por militares e civis de extrema direita que se opunha às determinações e às políticas de Charles De Gaulle.

Com a revolução dos cravos em Portugal o ex-primeiro Marcelo Caetano, de extrema-direita, buscou asilo no Brasil e foi acolhido, a despeito dos crimes cometidos pela ditadura salazarista, como refugiado político.

Cito dois exemplos, existem vários.

Uma coisa é abrigar mafiosos e criminosos comuns. Outra coisa é entregar à sanha de um governo fascista como o de Berlusconi, um refugiado político lato senso. Condenado pela justiça comum por supostos crimes cometidos entre 1977 e 1979.

Não é da tradição brasileira (ressalvado o período fascista de Vargas e a ditadura militar) ignorar pedidos de asilo como o feito por Battisti, dar-lhe a condição de refugiado político.

O fato de não ter havido unanimidade na votação do Conselho Nacional de Refugiados (CONARE) já sugere que, no mínimo, independente de acordo ou não, existem os que pensam contra a maioria dos membros daquele conselho.

O governo brasileiro recentemente, por decisão do judiciário, entregou o traficante Abadia ao governo dos Estados Unidos. E até essa foi uma decisão complicada, na prática, se bem pesada, de subserviência, característica distinta da tradição pautada no direito internacional, ou na fumaça de bom direito, como gostam de dizer juristas.

Abadia cometeu vários crimes, por anos seguidos, no Brasil e antes de qualquer extradição deveria ter sido submetido a julgamento aqui, cumprido pena aqui, para depois então ser extraditado e prioritariamente ao seu país de origem, a Colômbia. Muitos especialistas entenderam assim.

Causou estranheza a pressa com que as autoridades brasileiras cederam às norte-americanas. Não é novidade esse tipo de concessão, em qualquer área, mas foi estranha a pressa.

É fundamental resgatar valores e princípios de solidariedade e justiça dos brasileiros a partir do Estado brasileiro. Do mínimo que resta de Estado como instituição pública, longe de interesses privados ou de políticas mesquinhas.

O ministro da Justiça Tarso Genro tem em mãos a caneta que pode devolver ao Estado parte desses valores e princípios concedendo a Cesare Battisti a condição de refugiado político.

Não é um ato humanitário tão somente, diante das perspectivas sinistras no caso da extradição. É um ato de reafirmação da soberania do Brasil calcada em valores universais de direitos humanos.

MINISTRO, SALVE CESARE BATTISTI

Rui Martins

Exmo. Sr. Ministro da Justiça, Tarso Genro
Nesta altura, já lhe deve ter sido entregue o recurso em favor do cidadão italiano Cesare Battisti, preso há quase dois anos no Brasil, cuja extradição foi pedida pela Itália, sob a acusação de ter cometido quatro crimes, dos quais Battisti nega ser o autor. A Conare, com base no pedido italiano, negou a Battisti a concessão de asilo político.


Deve ser do seu conhecimento que a Itália, desde a chegada ao poder do seu atual dirigente Silvio Berlusconi, montou todo um aparelho (inclusive agora no Brasil ) para quebrar o refúgio, que o falecido presidente socialista francês François Mitterrand tinha dado a Cesare Battisti, que, durante alguns anos, viveu pacatamente em Paris, como zelador de prédio e escritor, depois de mais de vinte anos de fuga, culpado de dois anos de militância num grupo armado, que abandonou por divergência quanto aos seus métodos.


Entretanto, aproveitando-se de sua fuga, um dos chefes do grupo, Pietro Mutti, que se declarou arrependido à justiça italiana, negociou sua libertação lançando sobre Cesare Battisti todos os crimes de que era acusado. Na ausência de Battisti, a justiça expeditiva da época condenou-o à prisão perpétua por crimes que Battisti nega ter cometido, considerando ao mesmo tempo as acusações como crimes comuns e não políticos, para evitar que, no futuro, o condenado pudesse pleitear asilo político.


E esse objetivo foi alcançado, pois embora seja óbvio que Cesare Battisti se escondeu no Brasil, na sua fuga, como um foragido político, fato reconhecido por todos os noticiários publicados sobre ele no momento da prisão no Rio de Janeiro, a Conare rejeitou a evidência, considerando Battisti como um condenado de direito comum. Isso porque a aceitação de sua condição de militante político, na época de sua condenação, o enquadraria automaticamente como protegido pela nossa lei e lhe permitiria se beneficiar do asilo político.


Importantes pressões têm sido feitas sobre o Brasil para que entregue Cesare Battisti à Itália. Isso constituiria uma vitória para o governo Berlusconi, cuja ideologia nada tem a ver com os princípio básicos do seu partido, o PT. Cesare Battisti é um incômodo para o governo Berlusconi, que, no seu esforço de liquidar a esquerda italiana, controla a mídia e ressuscita métodos de controle dos imigrantes dignos da época fascista. Deixar apodrecer Battisti numa prisão italiana seria uma vitória berlusconiana sobre a doutrina de Mitterrand, pouco importando a Berlusconi se Battisti é inocente.


Senhor Ministro, sua decisão em favor da concessão do asilo político a Battisti irá não só beneficiar um homem acuado que vem clamando inutilmente sua inocência, mas será um sinal de coragem para a esquerda européia e reforçará a imagem internacional do Brasil, por afirmar sua independência e por não se submeter a pressões ou propostas de trocas de países europeus distantes dos ideais do governo brasileiro.


Numerosos brasileiros, que viveram os momentos difíceis da resistência à ditadura militar, endossam este pedido para que salve o companheiro Cesare Battisti e que o Brasil generosamente lhe permita recomeçar sua vida com sua mulher e filhas nesta terra de liberdade.

MINISTRO TARSO GENRO: SALVE O COMPANHEIRO CESARE BATTISTI!

Celso Lungaretti

O Conselho Nacional para Refugiados Políticos não considerou como tal o italiano Cesare Battisti, deixando o caminho desimpedido para o Supremo Tribunal Federal determinar sua extradição, o que dificilmente deixará de fazer.


Bem vistas as coisas, entre ele e a pena de 30 anos de detenção – praticamente uma condenação a morrer na prisão, para um homem de 53 anos de idade, que tem levado uma vida de muita dor e sofrimento – a melhor, talvez única, possibilidade de salvação seja a decisão do ministro da Justiça Tarso Genro, a quem a defesa de Cesare Battisti recorreu.


Em último caso - negativa de Tarso Genro e decisão contrária do STF - ainda caberia um apelo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, é melhor não depositarmos nele nossas esperanças, pois teria de contrariar não só a decisão do STF como o precedente aberto por seu governo no caso dos pugilistas cubanos.


Trata-se de um caso em que a frieza da Lei conflita com o espírito de Justiça, que inspira ou deveria inspirar nossas ações neste sofrido planeta.


Com vinte e poucos anos, Cesare Battisti pertenceu a um grupelho de esquerda radical na Itália, versão em miniatura das famosas Brigadas Vermelhas. É o que relatou em carta ao Conare, o qual permaneceu cego e surdo ao seu apelo desesperado. [ "Fui membro do PAC, mas nunca pratiquei atos de violência... A verdade é que eu já havia publicamente renunciado à luta armada quando da morte de Aldo Moro. Tão logo percebi o caminho pelo qual a esquerda radical italiana poderia estar indo, fui radicalmente contra e cheguei mesmo a dizer a meus companheiros minha discordância." ]


Havia uma imensa frustração entre os idealistas que tentaram e não conseguiram mudar o mundo, em 1968 e anos subseqüentes.


Nos países prósperos da Europa, parecia mesmo que, como o filósofo Herbert Marcuse escrevera, a combinação de uma situação de conforto material com a atuação atordoante dos meios de comunicação de massa fechara totalmente as brechas através dos quais os homens poderiam chegar ao pensamento crítico.


Então, na segunda metade da década de 1970, uns poucos tentaram abrir novas brechas com dinamite, incorrendo num terrível e trágico erro histórico.


A sofreguidão, entretanto, já se tornara uma tendência avassaladora no mundo moderno.
Muito mais entre os jovens.


E mais ainda entre os idealistas, que exasperam-se por terem uma visão muito nítida das mazelas do seu tempo e de como poderiam ser erradicadas, mas se chocam com a indiferença e o egoísmo da maioria bovinizada.


Battisti, jovem e idealista, acreditou que devesse trilhar um desses atalhos para a transformação da sociedade, já que a estrada principal estava bloqueada. Pagou caríssimo por isto.
Depois que as Brigadas Vermelhas tomaram a decisão inaceitável e inqualificável de executar Aldo Moro, criou-se um estado de ânimo fascistóide na Itália.


Foi em processo marcado por verdadeiras aberrações jurídicas em detrimento dos réus, que Cesare Battisti acabou condenado por quatro homicídios cuja autoria ele nega. [" Hoje estou cansado. Se volto para a Itália sei que vou morrer. Embora nunca tenha matado ninguém, me acusaram de ter matado policiais com base em um depoimento de um 'arrependido' por delação premiada, que jogou a culpa por muitos atos praticados por ele próprio em mim... Nunca pratiquei atos de violência contra quem quer que seja, e não há testemunha presencial que me acuse de tal prática." ]


Conseguiu escapar da prisão do seu país e leva existência de judeu errante há quase três décadas, perseguido, acossado, finalmente preso no Brasil, a pedido da Itália. [ "Fugi para a França, e da França para o México, e do México para a França, e da França para o Brasil. A pé, de ônibus, de avião, de carro, enfim, da forma que fosse possível. Fugi cruzando territórios e fronteiras, que nem sempre eram a minha destinação original. Fugi muitas vezes pensando que nunca mais veria minhas duas filhas, meus amigos, minhas referências de vida."]


Constituiu família, escreveu livros, reconstruiu-se, bem ao contrário dos que preferiram seguir o rumo insensato até o mais amargo fim, como Carlos, o Chacal.


Hoje, é um homem que, livre, não faria mal a uma mosca. Poderia, finalmente, viver em paz com seus entes queridos e continuar exercendo brilhantemente sua atividade literária. [ "Vim para o Brasil pois sabia do calor e do acolhimento que aqui receberia. Sabia também que o Brasil acolhe perseguidos políticos. Hoje tenho certeza que reúno condições de aqui trabalhar, de trazer minha família para perto, de estar ao lado de meus amigos que, mesmo vivendo do outro lado do Atlântico, nunca me deixaram só."]


Que verdadeiro benefício a sociedade tirará do seu encarceramento por 30 anos, ou até a morte? Nenhum. O olho por olho, dente por dente pertence à pré-História da humanidade.


Mas, Battisti se debate numa dessas armadilhas da História, sem saída pelos caminhos legais.


Não cabe ao Brasil questionar a lisura da Justiça italiana ou o rancor vingativo com que a direita de lá, ao assumir o poder, exumou um caso esquecido e passou a perseguir implacavelmente um homem que não incomodava mais ninguém.
É em nome da clemência, dos sentimentos humanitários e do seu próprio passado idealista que Tarso Genro terá de agir, para salvar Cesare Battisti.


Quando Salvador Allende assumiu o poder no Chile, afirmou à militância que, para ela, jamais seria Sua Excelência, o Presidente , mas sim o Companheiro Presidente . Morreu cumprindo a palavra.


Que Tarso Genro, seguindo os passos de Allende, aja agora como Companheiro Ministro - é o que dele esperam Cesare Battisti e os brasileiros que, como eu, conservam o idealismo e o espírito solidário, mesmo nestes trópicos cada dia mais tristes.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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