Fábula no Atacama (Parte 4)

A mídia empresarial elegeu rádio pirata como inimigo nº 2 da navegação aérea brasileira, colocando-a no rol das principais ameaças de desastre envolvendo aeronaves. Falam até que o poder bélico de uma emissora de rádio clandestina vai além dos temíveis drones equipados com aterrorizantes mísseis Tomahawk. Segundo informações não confiáveis dos telejornais, ondas piratas abateriam uma aeronave com maior precisão que a mira cirúrgica dos games de guerra usados contra o povo palestino.

Fernando Soares Campos

Em nome da segurança nacional e proteção de nossas fronteiras, o Ministério da Defesa deveria autorizar a indústria bélica a piratear os equipamentos das rádios piratas e adaptá-los aos instrumentos de comunicação de qualquer aeronave convencional; assim, até mesmo os velhos Mirage da nossa Força Aérea ressuscitariam das próprias sucatas, como ave fênix, das cinzas.

Há quem acredite que, se o sofisticado sistema de ondas piratas fosse adotado pela FAB, reduziríamos despesas com a compra de armamentos e munição (tudo obsoleto, se comparado à frequência de uma emissora clandestina de qualquer favela brasileira) e não precisaríamos ter gasto mais de cinco bilhões de dólares na compra dos aviões-caça Gripen de fabricação sueca.

Como já dissemos, rádio pirata foi eleita pela mídia como inimigo nº 2 da navegação aérea, porém, comprovadamente, o nº 1, na versão latino-americana de Star Wars, é o urubu.

Certa ocasião, a cantora Gal Costa voava para fazer um dos seus brilhantes shows; porém, tão logo o avião levantou voo, precisou voltar ao aeroporto, porque fora atingido de raspão por um urubu. A bem da verdade, o urubu, este, sim, é que havia sido atingido em cheio pela aeronave, Gal virou uma arara, chegou a pedir que se abrisse uma temporada de caça ao carniceiro, desencadeando-se campanha nacional sob o lema "O céu é do avião, urubu é do lixão". Acontece que a lei que protege o poético uirapuru é a mesma que defende os sagrados direitos do prosaico urubu.

Mas a ideia de Gal Costa não era lá tão original. No início do século passado, criou-se um movimento com o propósito de pressionar as autoridades a exterminar urubus urbanos. Em 1937 o Dr. Agenor Couto de Magalhães chefiava a Secção de Caça e Pesca da Indústria Animal e era presidente do Clube Zoológico do Brasil. Ele se dedicou a pesquisas sobre os hábitos dessa agourenta ave e concluiu que se tratava de um ser bem mais útil à sociedade do que metafóricos urubus, aqueles que nos jardins passeiam a tarde inteira entre os girassóis.

O urubu de verdade é o mais zeloso habitante deste nosso planeta; pois, segundo o Houais, zeloso é aquele que demonstra cuidado, esmero, atenção e aplicação no que faz; cuidadoso, diligente; que vigia, vela, permanece atento; cauteloso, precavido... Quem ousa tirar uma só dessas qualidades do nosso zelador-mor?

Alguém se habilita a competir com o urubu a fim de medir seu grau de zeladoria? Atreva-se quem nunca cometeu uma só dessas infrações: cuspir, escarrar ou urinar em vias públicas; jogar papel, ponta de cigarro, latinha de refrigerante, sacola de plástico, garrafa pet ou qualquer outro material descartável em rio, lago, praia ou mata; quem, ao volante, jamais atropelou, aleijando e até matando, gato, cachorro, cobra, sapo, lagarto ou  mariposas aos montes.

Eu estava meditando sobre essas questões, quando o telefone tocou.  Atendi. Era o meu editor-produtor, o homem estava eufórico: 

 

─ Genial! Quer dizer... gen! Você é o mago da redução de custos! 

 

─ Do que você está falando? 

 

─ Estou me referindo ao que acabo de ler nos originais da parte dois desta nossa produção... é... cine-literária.

 

─ Mas, quando lhe enviei os originais desse capítulo, não me lembro de ter anexado planilhas de custo ou relatório de despesa... Tenho certeza de que nem mesmo fiz qualquer sugestão nesse sentido...

 

─ Nem precisava... O fato é que você aproveitou o preá turista, perdido e mal pago num buraco do Vale da Morte, e está usando o infeliz roedor na nossa megaprodução. Até joguei na lixeira os orçamentos para compra e adestramento de um preá... - falava e ria ao mesmo tempo. ─ Você sabe quanto tudo isso custaria, acrescentando-se aí o transporte e alimentação do bicho?

 

─ Não faço ideia.

 

─ Basicamente o mesmo que a MGM pagou por Lessie na década de quarenta.

 

─ Isso tudo?!

 

─ Corrigindo a inflação dos últimos setenta anos!

 

─ Tudo isso?!

 

─ Pois é... sorte nossa, você ter chegado no Atacama no momento em que aquela bicharada turistava pelo deserto. Agora temos uma fábula com características de documentário. Mais original do que isso, nem o Glauber! E com  uma considerável redução de custos! 


─ Sim... claro! 


─ Mas... onde você arranjou aquele urubu?

 

 

─ Urubu?

 

─ Sim, o urubu faminto que acertou um Exocet na cabeça do preá! 

 

─ Ah, o pardal! 

 

─ Pardal?! 

 

─ Isso mesmo, aquilo é apenas um pardal dublê de urubu...

 

─ O quê?!

 

─ Um pardal dublê de urubu. Levei o bichinho no bolso. Não pagou passagem nem precisei de autorização do Ibama. Passou batido pela Alfândega. Trabalha usando uma fantasia de urubu, que custou baratinho, comprei na mão de um camelô na Uruguaiana.

 

─ Gen! Você é o mago da redução de custos! 

 

─ Você já disse isso, mas vai repetir mais uma vez quando eu lhe contar o que estou aprontando. 

 

─ Não preciso ouvir pra dizer que você é o mago da redução de custos. Isso é fato. Pronto, agora conta. 

 

─ Estou preparando a maior economia de neurônios de todos os tempos. 

 

─ Economia de quê?!

 

─ Neurônios. 

 

─ Você vai precisar fazer uso desses elementos na produção da fábula? Pensei que era só urubu e preá. 

 

─ Eu falei que vou poupá-los e não utilizá-los. Vou fazer como autor de  telenovela. 

 

─ Ah, sim! Mas o que você pretende fazer? 

 

─ Adquiri um pacote de clichês. 

 

─ Dê um exemplo. 

 

─ O preá pergunta ao urubu: "Como te chamas?". Ele responde: "Faminto, Urubu Faminto". Sacou? 

 

─ Você quer dizer como em "Bond, James Bond". É isso? 

 

─ Calma, não precisa gastar neurônios. Agora escuta essa outra... O preá está exausto, porém é duro na queda, não quer bater as botas. O urubu resolve dar um rolé, enquanto o bicho fecha o paletó, mas, antes de alçar voo, diz: "Hasta la vista, baby". 

 

─ Gen! Quer uma sugestão? 

 

─ Manda. 

 

─ Diga que o preá respondeu: "Estou ferrado, não tenho onde cair morto". 

 

─ Boa, muito boa! Anotei. Mas creio que seja mais apropriado ele dizer: "Mifu, estou chamando urubu de meu louro". 

 

─ Que tal "com uma mão na frente outra atrás"? 

 

─ "Duas patinhas na frente e duas na bunda" dá um quê de originalidade. 

 

─ Com certeza! 

 

─ Não. Assim já é abuso. Prefiro "sem dúvida". 

 

─ Tudo bem, pode continuar os ensaios, mas apresse os trabalhos, tempo é dinheiro. 

 

─ Anotei. Posso usar "time is money" e mandar a tradução nas legendas? 

 

─ Tem carta branca. Você é o mago da redução de custos. Tchau! ─ desligou.

 

Também anotei "Ter carta branca". Fica bem em espanhol, "Tener carta blanca". 

 

Voltei à revisão do roteiro. 

 

006 ─ Deserto do Atacama ─ Vale da Morte ─ alta madrugada

 

O urubu faminto dorme no topo de uma elevação rochosa, pescoço caído, cabeça encostada no peito, ressonando croacs.

 

O que para reles humanos pode vir a ser um tenebroso pesadelo, para o nosso urubu faminto não passa de natural e prazerosa letargia onírica, Hitchcock à Disney, assim vivida, experimentada, pronta para servir aos seus pares de espécies diversas, ensinando-lhes o que pode vir a acontecer caso não tomem os cuidados que a vida exige daqueles que querem aproveitar a oportunidade de viver.

 

Efeitos especiais: um espectro semiluminoso em forma de urubu se desprende de seu corpo físico e alça voo.

 

Plano geral: madrugada num pântano em que predomina vegetação de manguezal. Serpentes deslizam silenciosas em busca de suas presas; corujas enxergam ingênuas rãs que acreditam que ela está a lhes admirar o canto, até serem alçadas e viajarem direto para o lar-doce-lar da coruja, onde seus filhotes esperam a sagrada ceia. Insetos e pássaros notívagos notivagam. Grilos, sapos e rãs fazem a trilha sonora.

 

Ponto de vista: O olhar atento do urubu espectral vagueia por entre a folhagem, pirilampos assinalam os pontos vulneráveis; seres aterrorizantes e aterrorizados movimentam a cadeia alimentar daquele nicho ecológico.

 

Zoom: Por entre retorcidos galhos do manguezal, a câmera enquadra um ninho de urubus-aquáticos, se urubus-aquáticos existirem. A mãe-urubu cochila enquanto os filhotes tentam enxergar na escuridão alguma coisa que possa servir os seus sôfregos apetites.

 

O espectro do urubu faminto aproxima-se do ninho e encara os filhotes, faz bico torto e olhar de maldade cênica, tenebroso, sinistro, deixando os filhotes quase arrepiados, pois ainda não dispunham de penas, e os escassos pelos caíram, só de pensar em serem engolidos por aquela criatura que de início parecia familiar. O fantasmagórico urubu abre as asas e solta um Croooaaac! ─ Tradução legendada: "Este é o mundo que lhes espera! Se não se cuidarem, o final pode ser draconiano, bico por bico, gula por gula!". Na mente dos filhotes ficou a lição; no coração do urubu faminto, a consciência do dever cumprido.

 

007 ─ Deserto do Atacama ─ Vale da Morte ─ Alvorecer

 

Pico do monte onde o urubu faminto ainda está adormecido. Sua alma, que vagueou em sonho, cruza a vermelhidão do amanhecer no céu atacamenho e, num lace produzido por efeito especial, reincorpora-se ao seu corpo físico.

 

O urubu faminto desperta, abre as asas, deixando escapar odores milenares, coisa tipo amostra grátis de cheiro de múmia, bicoceja e grasna:

 

- Croooaaac! ─ Tradução legendada: "Para os amigos, limpinho e cheiroso; para os inimigos, fedido e horroroso".

 

Moral parcial: Em rota de avião, urubu na contramão vira imprudente oposição a entrar em colisão.

 

***

Episódios anteriores:

Fábula no Atacama (Parte 1)

Fábula no Atacama (Parte 2)

Fábula no Atacama (Parte 3)Ilustração AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoon

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
X