FHC, Lula e a regressão tributária

 ALTAMIRO BORGES

O sistema tributário brasileiro é um retrato da tragédia social que dilacera o país há mais de 500 anos. Devido ao histórico desequilíbrio das forças políticas, ele sempre foi usado como perverso mecanismo de concentração de riqueza e renda. Mas no reinado neoliberal de FHC este quadro só se agravou. As alterações na legislação tributária criaram um ambiente ainda mais favorável aos rentistas e aos oligopólios e, no outro extremo, elevaram a tributação dos assalariados e das pequenas e médias empresas. Tamanha perversão confirma uma antiga tese do tributarista Osíris Lopes, para quem “o Brasil é o inferno tributário do trabalhador e o paraíso fiscal do capital”.

Segundo estudo da Unafisco (Sindicato Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal), entre outros crimes, FHC desmontou a máquina fiscal; criou fortes amarras burocráticas ao trabalho de fiscalização; concedeu anistias fiscais às empresas; congelou a tabela de desconto do Imposto de Renda sobre a Pessoa Física e diminuiu as deduções permitidas; aumentou a alíquota do IR dos assalariados; e elevou os tributos indiretos. Devido ao cruel aperto, entre 1990/98, a carga global média de tributação sobre os rendimentos foi de 27,5%, superior à média de 24,8% nos anos 80.

Inferno do trabalhador

O trabalhador foi duplamente penalizado: com o aumento do desconto na fonte (imposto direto) e com a ação regressiva dos tributos sobre o consumo (indiretos). De 1995 a 2001, a taxação na fonte cresceu, em termos reais, em 27%. “Enquanto isso, impostos sobre os lucros das empresas e o patrimônio rural, cobrados dos mais abastados, tiveram queda real”, critica o livrete Justiça fiscal e social para reconstruir o Brasil, elaborado pelo Fórum Brasil Cidadão. A elevação do imposto direto sobre o trabalho deu-se através do aumento das alíquotas e do congelamento da tabela do IR, que confiscou mais de R$ 15 bilhões dos trabalhadores no período de 1996-2002.

Já na tributação sobre consumo, trabalhador e empresário pagam a mesma quantia. Ao tomar o café da manhã, por exemplo, o desempregado paga 14,7% de impostos; o mesmo valor pago pelo banqueiro. Ao ir ao banheiro, o descamisado desembolsa 36,49% sobre o papel higiênico; o mesmo valor gasto pelo milionário. A tributação regressiva cria várias distorções. Além de taxar injustamente os que ganham menos, ela encarece o produto, restringe o consumo interno e inibe a produção, reduzindo a oferta de empregos e prejudicando o crescimento econômico.

Paraíso dos capitalistas

Enquanto os mais necessitados foram penalizados, os ricaços foram amplamente beneficiados no reinado de FHC. Desde 1995, o governo alterou a legislação tributária através de leis ordinárias, decretos e medidas provisórias com o objetivo de elevar a arrecadação para atender os credores e de beneficiar as corporações empresariais. Entre as medidas, vale relembrar as mais aberrantes:

- Privilégio dos juros sobre o capital próprio. Através da lei 9.249, de dezembro de 1995, as empresas passaram a ter a possibilidade inédita de distribuir juros aos seus sócios ou acionistas. Com isso, reduziram seus lucros tributáveis através de uma despesa fictícia denominada de juros sobre capital próprio. Sócios e acionistas que recebem esse rendimento, geralmente de valores expressivos, pagam apenas 15% de IR. Essa renúncia fiscal atingiu, em 2002, R$ 32 bilhões.

- Isenção da distribuição de lucros e dividendos e da remessa de lucros ao exterior. Desde 1996, rendimentos de pessoas físicas provenientes dos lucros ou dividendos deixaram de pagar Imposto de Renda, independentemente de serem residentes no país ou no exterior. As remessas de lucro ao exterior ficaram isentas. Essa renúncia fiscal retirou do fisco R$ 6,4 bilhões em 2002.

- Redução da progressividade do imposto de renda. FHC extinguiu a alíquota de 35% para a pessoa física que ganha acima de R$ 14 mil e de 15% do adicional do imposto de renda da pessoa jurídica (Lei 9.250/95). Além disso, reduziu as alíquotas do IR das pessoas jurídicas de 25 para 15%. Os maiores beneficiados foram os bancos, que antes pagavam adicional de IR de 18%.

- Ganhos de capital, renda fixa e renda variável. Enquanto a tributação sobre o rendimento do capital era, em média, de 15%, a do rendimento do trabalho era de 27,5%. A incidência exclusiva na fonte significa que a pessoa paga o IR com alíquota fixa, não se aplicando a tabela progressiva nem fazendo ajuste na declaração. Esse tratamento reduziu o imposto do contribuinte com rendas elevadas e onerou os de baixa renda. Essa renúncia fiscal custou R$ 5,9 bilhões em 2002.

- Redução do Imposto Territorial Rural. Em 1996, FHC alterou a lei da tributação progressiva da propriedade em função do uso da terra. Ele extinguiu o VTNm (Valor da Terra Nua Mínimo), o que beneficiou o latifúndio improdutivo, reduzindo ainda mais a pífia arrecadação no campo. Em 2002, o ITR rendeu cerca de R$ 300 milhões, quando o seu potencial era de R$ 1,8 bilhão.

- Imposto Sobre Serviços. O governo tucano inviabilizou a cobrança do ISS dos bancos. Na sua gestão, o sistema financeiro foi o que menos contribuiu, proporcionalmente, aos cofres públicos. Durante a CPI dos Bancos, o próprio Everardo Maciel, secretário da Receita Federal de FHC, afirmou que “58% das instituições bancárias não pagam nada, pois usam das brechas legais”.

Refúgios de sonegadores

Afora as regressões legislativas, FHC ainda aliviou a vida dos sonegadores. Multas por infrações fiscais foram reduzidas, equiparando-se, em alguns casos, o sonegador ao inadimplente (lei 9430, de 1996). Antes, as multas eram de 300%, nas fraudes e de 150% para os demais casos; baixaram para 150% e 75%, respectivamente. Em caso do pagamento do débito no prazo da autuação, elas caíam para 75% e 37,5%. Já o aspecto criminal da sonegação foi atenuado. Basta o sonegador pagar sua dívida para o crime ser extinto. Bem diferente do rigor contra o ladrão de galinhas!

A Secretaria da Receita Federal foi proibida de remeter ao Ministério Público os casos de crimes fiscais até a conclusão do processo de autuação na esfera administrativa, que leva de cinco a seis anos e, muitas vezes, resulta na prescrição do delito. FHC ainda castrou o papel da Procuradoria da Fazenda, órgão responsável pela cobrança judicial de tributos não pagos. No final de 2001, o montante de impostos devidos totalizava RS 150 bilhões. A redução do número de procuradores, a falta de quadros de apoio e a carência de modernas tecnologias tornaram inviável a cobrança.

Os sonegadores ainda foram beneficiados com a concessão de anistia fiscal e com a vigência da Refis (Recuperação Fiscal de Contribuintes em Débito com a Fazenda), que refinancia o débito em até 80 anos e com taxas de juros favorecidas. Estas medidas tiveram como efeito colateral o aumento do contrabando no Brasil. Em 1998, o faturamento da traficância foi de US$ 20 bilhões. Cerca de 1,5 milhão de empregos deixaram de ser gerados na indústria devido à concorrência dos produtos contrabandeados e a perda de arrecadação anual foi de cerca de US$ 9,6 bilhões.

Paraíso fiscal das máfias

A libertinagem fiscal imposta por FHC também tornou o país um atrativo refúgio de sonegadores do mundo inteiro. Apesar de a legislação brasileira caracterizar como paraíso fiscal a nação “que não tributa a renda ou que tributa com alíquota inferior a 20%”, a tributação sobre capital no país é inferior aos 20%. Baita ironia! Além disso, FHC afrouxou mecanismos, como as contas CC-5, que permitem a entrada e saída de recursos sem controle público. Ao beneficiar os sonegadores, tal medida atraiu as máfias que controlam o tráfico de drogas, armas, mulheres e crianças.

O livro “Brasil: Inferno e paraíso fiscal” dá detalhes destas operações ilícitas. Comprova que os paraísos fiscais são o “toque de classe da globalização financeira” das megacorporações. Estas fogem da taxação no país de origem transferindo ilegalmente seus lucros para estes territórios da pirataria. Neles contam com várias facilidades, como a garantia de anonimato sobre o montante depositado, impostos e taxas bancárias reduzidas e possibilidades de criar e extinguir firmas fantasmas rapidamente. Tanto que estes paraísos se tornam centros de lavagem de dinheiro.

Segundo denúncia na época do procurador Luis Francisco de Souza, no reinado de FHC o país se tornou “um dos maiores paraísos fiscais do planeta”. A mesma opinião foi expressa pela francesa Marie Christine, responsável na ONU pelo programa de combate ao crime organizado. “O Brasil é um dos países do Terceiro Mundo mais tentadores para lavagem de capitais extraídos do crime organizado no mundo”. Entre 1992/98, dos R$ 124 bilhões que saíram do país através das contas CC-5, mais de 50% provinham da sonegação de impostos. Dos 90 ricaços que remeteram mais de R$ 20 milhões ao exterior por meio desta conta, apenas 20 pagaram o IRPF em 1998.

O continuísmo de Lula

O presidente Lula, eleito no final de 2002 com um programa de mudanças profundas – inclusive na área tributária –, preferiu não mexer neste vespeiro que afeta interesses tão poderosos. Entre as tímidas medidas positivas, promoveu duas correções da tabela do IRPF, atendendo a demanda do sindicalismo, o que aliviou a carga tributária dos trabalhadores, mas não corrigiu as distorções históricas. Houve ainda um esforço maior de fiscalização, com a contratação de novos servidores públicos, o que causa chiadeiras dos sonegadores. Mas, infelizmente, o entulho liberalizante de FHC não foi removido nem ocorreram avanços maiores nesta área tão estratégica.

Logo no início do seu primeiro mandato, Lula ainda ensaiou bancar a sonhada reforma tributária, aproveitando-se da legitimidade das urnas. Mas, diante da forte pressão, ele optou pela “reforma possível”, segundo o então ministro José Dirceu. A Proposta de Emenda Constitucional-42 foi enviada em abril de 2003 e teve rápida tramitação, sendo promulgada em dezembro daquele ano. Idéias avançadas, como a da tributação sobre grandes heranças e da inclusão da alíquota de 35% para o IRPF, foram abandonadas. O projeto se limitou a medidas para inibir a guerra fiscal entre os estados, desonerar tributos da cesta básica e aperfeiçoar o sistema de arrecadação. “Há muito barulho para pouco resultado”, avaliaram, na época, os especialistas em direito tributário.

Segundo a pesquisa “reforma tributária do governo Lula: continuísmo e injustiça fiscal”, escrita por Carlos Eduardo Carvalho e Alexandrine Brami, a balanço da atual gestão é bem negativo. “A reforma tributária do governo Lula, apresentada e aprovada em 2003, não rompeu o caráter regressivo da estrutura impositiva e manteve os elementos essenciais da injustiça fiscal vigentes no país... Ficaram esquecidos ou foram tratados com muita timidez os objetivos da justiça fiscal-social, como o aumento da tributação sobre as rendas mais altas e sobre o patrimônio, a redução da tributação incidente sobre o consumo da maioria da população e a desoneração da folha de salários. A reforma rompeu com as propostas da esquerda e com as críticas que o próprio PT fez às medidas do governo FHC na área ao longo de seus dois mandatos”.

Para os autores, o governo Lula aderiu às teses neoliberais que orientaram as ações do PSDB e de FHC. “Para estas teses, a tributação deve ser neutra e os objetivos sociais devem ser deixados para a distribuição do gasto público. Trata-se de manter a estrutura tributária injusta que coloca o peso maior da arrecadação sobre os mais pobres e sobre os assalariados”. A crítica é implacável e serve de alerta diante da promessa do governo de apresentar em breve uma nova proposta de reforma tributária. A única forma de se redimir do fiasco do passado é o governo não incorrer novamente no erro de tratar esta reforma como algo puramente técnico, avesso à luta de classes.

O próximo artigo da série apresenta propostas para uma reforma tributária justa e progressiva.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

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