Brasil: Dez desafios para o segundo turno

Por Altamiro Borges*

A confirmação de que a sucessão presidencial será decidida no segundo turno, em 29 de outubro, gerou um otimismo marqueteiro na direita – “Lula teve a sua chance e deixou passar; sua derrota é inevitável”, afirmou o excitado devoto do Opus Dei, Geraldo Alckmin – e causou certo abatimento na militância que apostava na reeleição do atual presidente já no primeiro turno. Mas nada justifica a aparente euforia nas hostes liberais-conservadoras nem o pessimismo entre os lutadores de esquerda bem no meio da batalha.

Em primeiro lugar, porque a votação do presidente Lula foi bastante expressiva, o que mostra a aprovação de algumas políticas do seu governo, o seu carisma popular e a vitalidade da coligação “A força do povo”. Lula obteve mais votos do que no primeiro turno de 2002 – 48,6% contra 46,1% – e sai agora com uma vantagem de 6,7 milhões de votantes. Alckmin é quem precisa correr atrás do prejuízo; Lula deve manter sua base eleitoral, que é bastante consistente segundo vários institutos de pesquisa, e ampliá-la.

Em segundo lugar, porque não se deve subestimar o jogo sujo da direita golpista e da mídia venal. Desde maio de 2005 que a oposição neoliberal, com o descarado apoio da mídia, investe na desestabilização do atual governo. Qualquer outro presidente já teria caído diante deste bombardeio cerrado. Na reta final da eleição, desta vez com a ajuda de alguns petistas “aprendizes de mafiosos”, ela partiu para total baixaria. Até fotos foram vazadas ilegalmente da PF, com o silêncio da mídia. Apesar deste jogo sujo, o presidente Lula ainda saiu na frente no primeiro turno, o que evidencia sua impressionante capacidade de resistência.

Em terceiro, porque o segundo turno se dará numa nova configuração de forças no país. Caciques do PFL foram escorraçados no Nordeste e no Norte, com destaque para o fiasco de ACM, o que pode aumentar a votação de Lula nestas regiões. Mesmo no Sudeste, os tucanos eleitos têm vôo próprio e não bicam com o fanático do Opus Dei. Além disso, a bancada da esquerda não definhou como sonhava a mídia; já o PSDB perdeu cinco deputados e o PFL, 19. Por último, parcelas de esquerda contrárias a Lula no primeiro turno e mesmo setores que se omitiram podem agora, com lucidez, cumprir papel de relevo no segundo turno.

Esta análise, que visa se contrapor à falsa euforia da direita neoliberal e ao veredicto antecipado, parcial e maroto da mídia hegemônica, não deve resultar numa nova subestimação das forças direitistas. A batalha do segundo turno será sangrenta. Nada está decidido. Se a direita jogou pesado na etapa anterior e a mídia simplesmente tirou sua máscara, imagine o que farão a partir de agora. Diante do perigo real da revanche neoliberal, os setores populares, democráticos e patrióticos precisarão arregaçar as mangas, unir forças e concentrar todas as energias no segundo turno. Entre outros desafios, alguns parecem urgentes:

1- Polarizar e politizar a campanha.

O primeiro turno evidenciou uma nítida divisão no país, quase num corte de classes. Com Lula ficaram as camadas populares do Norte e Nordeste e da periferia dos centros urbanos do Sul e Sudeste; com Alckmin estiveram os barões da mídia, das finanças, do agronegócios e da indústria, camadas médias envenenadas e parcelas descontentes com o governo e iludidas com a cruzada moralista. Sem se descuidar da chamada classe média, é preciso explicitar a divisão entre o candidato das elites e o candidato dos trabalhadores e dos “excluídos”, trazendo à tona a gravíssima polarização social no Brasil. Além de polarizar, é urgente politizar o debate, desnudando a plataforma neoliberal contra os trabalhadores e as camadas médias.

2- Desmascarar Alckmin e FHC

Enquanto Lula se preocupou em fazer o balanço do seu governo e apresentar propostas para o futuro, bem ao estilo “lulinha paz e amor”, todos os outros candidatos concentraram seus ataques no atual presidente. Agora é hora de desmascarar o inimigo da direita. Demonstrar a devastação causada por seu desgoverno em São Paulo, com a privatização criminosa das estatais, a redução dos investimentos nas áreas sociais, a explosão do desemprego e da miséria, o descontrole na segurança pública. É preciso, ainda, desengavetar e elucidar a plataforma de Geraldo Alckmin, com as suas propostas ultraliberais. O que mais atormenta o direitista, porém, é o seu vínculo a FHC, o político mais odiado pelo povo brasileiro. A comparação entre os desastrosos oito anos de FHC e os avanços nos quatro anos de Lula é fatal para Geraldo Alckmin.

3- Priorizar o debate programático

No primeiro turno, os adversários insistiram na presença de Lula nos debates da televisão, orquestrando verdadeiras arapucas para emboscá-lo. A sua ausência no debate da TV Globo ainda gera controvérsias, mas parece que a expectativa criada de sua ida teve efeitos negativos nos dois últimos dias de campanha. Agora é Lula quem deve estimular ao máximo o debate na mídia. Com duas candidaturas diametralmente opostas, é mais fácil contrapor projetos, comparar as realizações dos dois últimos governos e denunciar a nefasta administração em São Paulo. Mas o debate programático não depende apenas do candidato. Deve ser feito pelas universidades, sindicatos, associações comunitárias e assentamentos, ajudando apolitizar a sociedade, a desnudar a plataforma neoliberal e a avançar na construção do projeto de mudanças no país.

4- Enfrentar a questão da ética

Com o ostensivo apoio da mídia, a direita golpista conseguiu centrar do primeiro turno na discussão sobre a ética. O debate programático foi escanteado; as comparações entre governos e projetos foram ofuscadas. Mesmo invertendo a pauta de discussão, não se pode tangenciar este tema. Além de apurar e punir alguns petistas afoitos, é urgente desmascarar, sem dó nem piedade, o falso moralismo da direita. Que moral tem Geraldo Alckmin para falar em ética sem antes explicar o seu veto a instalação de 69 CPIs, os vestidinhos de Dona Lu e os negócios suspeitos de sua filha na contrabandista Daslu? Que moral tem FHC, o culpado da privataria, do Proer de banqueiros e da compra de votos para reeleição? O governo Lula ao menos não sabotou as CPIs e reforçou a ação da Polícia Federal em operações inéditas de combate à corrupção.

5- Afastar e responsabilizar os “mafiosos”

O debate sobre a ética, porém, exige medidas imediatas, eficazes e exemplares no combate aos desvios de conduta no nosso campo. Se não fosse a ação tresloucada de meia dúzia de “aprendizes de mafiosos”, que tentaram comprar um dossiê de bandidos na reta final da eleição, é bem provável que Lula fosse reeleito no primeiro turno e que se elegesse um maior número de governadores, senadores e deputados do campo progressista. Essa ação, que mais parece uma armação da direita em que afoitos caíram como patinhos, já é recorrente. Está na origem das crises do valerioduto, do mensalão e das sanguessugas. Ela revela uma postura perniciosa e deformada, que subestima a luta política e o vínculo com a sociedade e prioriza os aparatos burocráticos. Também está contaminada pela ambição e pela briga fratricida por fatias de poder.

6- Disputar as camadas médias

Cortando o mal pela raiz e enfrentando o debate sobre a ética, é plenamente possível reconquistar os votos das camadas médias. Desbastando este terreno, o debate programático ganha maior relevo. Reconhecendo os limites do atual governo, é possível demonstrar que o segundo mandato reúne melhores condições para avançar nas mudanças, superando os entraves neoliberais ao desenvolvimento e ao bem estar social. É possível ainda alertar a alienada classe média sobre os riscos do retrocesso neoliberal. A atual situação de instabilidade destes setores decorre da política destrutiva aplicada por FHC, que resultou na elevação do desemprego e na queda da renda das camadas médias, no aumento da tributação regressiva e na explosão de violência nos centros urbanos. A plataforma de Alckmin é a mesma de FHC, piorada, ultraliberal.

7- Ampliar as alianças políticas

Concluído o primeiro turno, as forças políticas procuram conquistar apoios para o round decisivo. Na arte da política, a capacidade de atrair aliados, neutralizar vacilantes e isolar adversários é das mais cruciais e engenhosas. Erros neste terreno costumam ser fatais. A força mais cobiçada no segundo turno é o PMDB, que obteve expressiva votação, elegeu a maior bancada no parlamento e tem forte capilaridade. Outras forças também podem e devem ser procurados. O presidente Lula parece convencido da importância das alianças para garantir a vitória e a própria governabilidade. É necessário que essa amplitude se manifeste em todos os cantos. As coordenações estaduais da campanha, que no primeiro turno foram pouco amplas e meio burocratizadas, devem rapidamente mudar de formato. A envergadura da batalha exige que sejam amplas, plurais, representativas e, acima de tudo, dinâmicas.

8- Reaglutinar as forças de esquerda

Por discordar dos rumos do governo Lula, as esquerdas brasileiras se dividiram no primeiro turno. Sem entrar no mérito das divergências ou no balanço da forma como conduziram suas campanhas, o momento agora exige a mais ampla e generosa unidade para enfrentar o perigo do retrocesso neoliberal. Nenhuma corrente política – e muito menos os trabalhadores e o “pobretariado” – ganhará com o retorno da direita golpista, que deseja “acabar com nossa raça”. A partir de compromissos programáticos e sem perder sua autonomia, é plenamente possível construir pontes que permitam reaglutinar as esquerdas neste segundo turno. Qualquer postura de neutralidade, omissão ou passividade poderá ter conseqüências desastrosas no futuro. O mesmo vale para os setores populares sociais que preferiram se ausentar da batalha eleitoral. O perigo é do retorno, num patamar mais radicalizado, da criminalização dos movimentos sociais.

9- Consolidar e ampliar a votação

Este conjunto de iniciativas poderá permitir a ampliação da vantagem do candidato Lula no segundo turno da sucessão presidencial. O desafio é consolidar e mesmo ampliar a votação nas regiões Norte e Nordeste. Com a derrota das oligarquias ligadas ao PFL e PSDB e o animo redobrado dos vitoriosos, esta ampliação é plenamente possível. Já nas regiões Sul e Sudeste, com o debate programático, a demarcação de campo, a denúncia do plano ultraliberal e a disputa de idéias entre as camadas médias, não está descartada nem a possibilidade da redução da diferença de votos e até da conquista de importantes estados. O bloco liberal-conservador não é tão homogêneo, tem inúmeros atritos e não consegue ampliar as alianças. Como já foi dito, a vitória no segundo turno está ao alcance das mãos.

10- O papel decisivo da militância

Para viabilizar estas e outras iniciativas, porém, a questão chave é o envolvimento abnegado, combativo e criativo da militância política e social. No primeiro turno, em decorrência de vários fatores, sua presença ainda foi tímida e acuada. É urgente reverter este estado de espírito e colocar todas as energias sob tensão. Esta militância voluntária e consciente, forjada em anos de luta contra a ditadura e a ofensiva neoliberal, é o maior patrimônio de que dispõe a coligação “Força do povo”. Ela é, de fato, a força do povo! Sua ativa participação é nevrálgica na luta de idéias que perpassa a sociedade nestes dias; na construção de espaços amplos e plurais de coordenação da campanha; no aumento do visual nas cidades, com as suas camisetas vermelhas, bandeiras e botons; na formação de milhares núcleos de apoio em sindicatos, bairros, escolas, assentamentos. A militância será determinante nesta batalha histórica. Sua responsabilidade é enorme na luta para barrar o retrocesso neoliberal e, principalmente, para avançar nas mudanças no Brasil.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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