O padre, o bandido e a mídia

Fernando Soares Campos

Um dos momentos de conforto daqueles adolescentes ocorria aos domingos, quando o padre Júlio prestava assistência religiosa àqueles jovens numa unidade da Febem. Grande parte dos adolescentes ali acautelados por decisão judicial não recebia visita de parentes, mesmo porque muitos deles já haviam perdido o contato com seus familiares há muito tempo. As visitas e atividades religiosas promovidas pelo padre Júlio e seus auxiliares da Pastoral do Menor eram, para muitos internos, os únicos contatos que tinham com pessoas do outro lado dos muros da instituição que, supostamente, se destinava à ressocialização de adolescentes envolvidos em atos infracionais, função que divergia da realidade vivida pelos internos.

O padre Júlio costumava proferir palestras sob temas diversos, invariavelmente tratando do uso e tráfico de drogas, roubo, assassinato, promiscuidade sexual e outros atos que a Igreja atribui a condição de pecador a quem os praticar, além de implicar infração à lei. Havia também o momento da confissão religiosa, quando alguns adolescentes se dispunham a falar dos seus desvios de comportamento ao sacerdote, a fim de receber aconselhamentos e se livrar do castigo maior: o fogo eterno na caldeira de um inferno supostamente mais tenebroso que aquele em que se encontravam internados.

Durante a celebração da Santa Missa, os confessados recebiam a hóstia sagrada, que podia ser considerada bem mais palatável que a quentinha servida pela instituição.

A. M. B., que até então gozava do direito ao anonimato, era um daqueles rapazes que, depois de encerrada as atividades dominicais da Pastoral do Menor, se acercavam do padre Júlio para lhe pedir conselhos ou pequenos favores. Numa dessas ocasiões, o jovem infrator conversou longamente com o padre, e este nem percebeu que, naquele dia, outros adolescentes não o procuraram. Não sabia o padre que A. M. B. havia usado sua condição de xerife e reservara aquele domingo somente para ele. Daquela vez os demais internos estavam proibidos de se aproximar enquanto A. M. B. estivesse conversando com o vigário.

O adolescente confessava os seus pecados menores e ouvia os aconselhamentos do padre.

— Padre, eu me arrependo de ter roubado para comprar drogas.

— Entendo, filho, sei que as pessoas cometem certas faltas a fim de atender aos seus vícios. As drogas escravizam, mas você precisa se esforçar para se livrar de tão implacável inimigo.

— Eu tou me esforçando, meu... é... padre... Tou me esforçando, padre!

No domingo seguinte, A. M. B. era o primeiro da fila no confessionário improvisado. Quando o padre Júlio sentou-se para ouvir as confissões, o adolescente falou num tom que revelava profundo pesar. Dizendo-se arrependido, contou que certa ocasião havia roubado uma imagem de uma igreja. Mais uma vez o padre Júlio explicou que os dependentes de drogas caem em tentação.

— O inimigo oculto induz as pessoas a cometer delitos para sustentar seus vícios, filho — justificava o padre.

Poucos dias antes de ganhar a liberdade, A. M. B. declarou ao pároco:

— Padre, quando eu sair daqui, quero ajudar o senhor no trabalho com as pessoas que moram nas ruas.

O padre Júlio encheu-se de esperança, pois tinha diante de si mais uma possível alma resgatada do submundo da universidade do crime. O gesto daquele jovem representava mais uma vitória nas batalhas da eterna luta do Bem contra o Mal.

Poucos meses depois, Anderson (ex-A. M. B.), agora maior de idade, podia ser visto, eventualmente, em companhia do padre Júlio. Curiosamente, manteve o costume de se confessar, como fazia nos tempos de Febem.

Certa noite, quando os fiéis saiam da igreja, depois da última missa, Anderson apareceu no templo católico. Parecia nervoso, queria se confessar. O padre o acompanhou até o confessionário, entrou e sentou-se; enquanto Anderson se ajoelhou no genuflexório ao lado.

— Padre, os home vão me pegar de novo, padre! E, se eu rodar dessa vez, vou pra de maior! Me ajude, padre!

— Meu filho, se você está dizendo que a polícia está lhe procurando, a fim de lhe prender, isso quer dizer que você cometeu um grave crime.

— Não, padre, num foi coisa tão grave assim. Eu só matei o cara que tirou onda com a minha cara num bar lá da favela.

— E você acha isso uma falta leve, meu filho?!

— Bom, se for comparar com outras paradas que eu já fiz, isso até que é manero...

— Mas o que você já fez de tão grave?!

— Padre, o senhor sabe que tudo que eu contar aqui o senhor num pode contar pra ninguém. Nem pro Papa, né?

— Sim, meu filho, eu sou um sacerdote católico e, nesta condição, meu dever é guardar segredo sobre as confissões dos fiéis, cabendo a mim apenas a missão de rogar a Deus que os perdoe e ilumine seus caminhos.

— Então eu vou contar. O senhor se lembra daquele casal de velhos que foi assassinado aqui perto? Aqueles que o ladrão matou a facada?

— Sim, lembro, nunca os esquecerei, Dona Aline e o Senhor Mateus freqüentavam a nossa igreja e participavam ativamente das nossas atividades filantrópicas.

— Pois fui eu que matei eles...

— Filho!, por que você cometeu crime tão hediondo?!

— Ora, padre, eles até que vinham colaborando. De vez em quando soltavam uma merreca, mas acabaram ameaçando de dar parte à polícia, num queriam mais pagar o "pedágio". O senhor sabe, né?

O padre Júlio ficou abalado com a confissão de Anderson, porém se esforçava para não deixar transparecer sua perturbação em vista de tão pavoroso relato.

— Não, filho, não sei de que pedágio você está falando...

— Padre, hoje em dia todo mundo precisa pagar "pedágio" e "taxa de segurança". Principalmente um casal de velhos, que já num tem nem força pra segurar um pau de fogo, imagine se apertasse o gatilho!

— Você continua cobrando "pedágio" e "taxa de segurança" de outros fiéis aqui da nossa igreja?

— Só de uns três, padre, só de uns três! Mas esses num tão chiando muito não, sabe? Eles até que num reclamam muito. Eles sabe o que aconteceu com os velho teimoso.

— Que mais você anda aprontando aqui na paróquia?

— Aqui, nada! Juro, por Deus, aqui só isso.

— Você quer dizer que, em outras áreas, tem transgredido a lei divina e a dos homens?

— Já que o senhor perguntou, vou contar mais uma. Lembra-se daquela menininha de três anos de idade que apareceu morta e istrupada no córrego lá da favela?

O padre Júlio fez o sinal da cruz e perguntou como se não quisesse ouvir a resposta:

— Foi... você quem fez aquilo, meu filho?!

— É, padre, essa é a única coisa que fiz e me arrependo de verdade. Mas, olha, só pra conformar a comunidade, eu provei que quem fez aquilo foi o boiola do Cacá neto da dona Aurora. O viado vivia paparicando a menina. E todo mundo acreditou que foi ele quem istrupou a criança. Quando eu matei o safado, o pessoal da boca e uns morador até me fizeram uma presença, ganhei umas pedra de crack e uns baseado.

O padre Júlio respirou fundo e tentou mentalizar uma poderosa jaculatória, pois já acreditava que o seu confessor estaria, naquele momento, dominado por uma entidade maligna e, provavelmente, dopado por uma mistura de drogas diversas.

— Filho, por que você não me procurou antes de cometer essas loucuras?

— Eu num procurei das outra vez, mas tou procurando agora.

— Mas você está me procurando depois de ter cometido o crime. Está me pedindo ajuda para livrá-lo de ser preso pelo assassinato de um homem.

— É e não é somente por isso...

— Como assim? Não estou entendendo...

— Padre, eu preciso de dinheiro pra pagar um adevogado. Antes de vim aqui, eu procurei a velha Eugênia.

— Você se refere a Dona Eugênia, esposa do falecido Almeida?

— Ela mesmo, padre. Ela é uma das três que paga pedágio e segurança. A velha, o senhor sabe, é viúva rica, ganha pra lá de dez salário de pensão do marido. Num é viciada, num gasta cum quase nada, tem casa própria...

— Mas, e daí, filho, isso foi uma conquista dela e do marido, que trabalharam a vida inteira para gozar desses direitos!

— Mas eu queria que o senhor aconselhasse ela a pagar.

— Eu não posso fazer isso, filho!

— Então, o senhor mesmo pode me ajudar.

O padre Júlio ficou em silêncio por um instante, precisava encontrar a melhor saída para aquela aterrorizante situação, precisava conter os macabros impulsos daquela endemoniada criatura. Devido aos seus votos sacerdotais, não podia simplesmente procurar as autoridades policiais e entregar o seu confessor.

— Está bem, vou fazer todo o possível para ajudá-lo, mas preciso que me prometa que não fará mal algum a qualquer outra pessoa. Inclusive deixará a Dona Eugênia em paz

— Bom, se o senhor me ajudar, eu num vou precisar dela nem de ninguém.

Depois de ter a garantia de que teria o apoio do padre para se livrar do último crime que cometera, Anderson se foi, deixando o padre Júlio entre a cruz e a espada. Naquela noite o pároco precisou recorrer a certo calmante a fim de conciliar o sono.

Com a ajuda financeira do padre Júlio, Anderson contou com a defesa de um bom advogado e se livrou da cadeia. Porém acostumou-se a extorquir o sacerdote. Certamente ele não poderia alegar que o padre se tornara seu "cúmplice", pois o padre Júlio podia evocar sua condição de confessor religioso, portanto impedido de revelar os segredos do confessionário.

Alguns anos depois, cansado das ameaças do bandido, padre Júlio procurou as autoridades policiais e denunciou a quadrilha de Anderson pela prática de extorsão. O caso tornou-se público e a mídia jornalística fez a farra:

"Ex-interno diz que fazia sexo por dinheiro com padre"

"Polícia vai pedir quebra de sigilo de padre Júlio"

"Igreja blinda padre e se protege"

"Sob denúncias, padre Júlio decide parar de celebrar missas em público"

"Padre Júlio passa de vítima a réu"

"Para entidades, acusação contra padre Júlio abala luta por direitos"

"Caso padre Júlio deve ir para a cúpula da polícia"

"Polícia investiga denúncia de corrupção de menor contra padre Júlio"

P.S.: O texto acima é fruto da confusão mental de um escritor hesitante entre escrever realismo fantástico ou mero jornalismo-ficção.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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