Imagens de Portugal

Quando nos debruçamos sobre a soleira do tempo, comemorando o aniversário de 20 anos de uma atrevida iniciativa - o protocolo que transformou Vitória e Cascais em “Cidades Irmãs” – despertamos a saudade e a emoção que desfrutamos com a comitiva de 120 capixabas que entre outras lembranças, conheceram em Portugal a arte maior do ceramista José Franco, hoje desfrutando merecida aposentadoria.

O barro vermelho, na fase do pré-cozimento, sucumbia ante o carinho das mãos do velho artesão. Ele o dominava, acariciava, modelava, parecendo emprestar à massa que dançava sobre a mesa rotativa a sua alegria e felicidade interior. Das mais simples figuras as mais sofisticadas criações se encontra o toque do mestre.

José Franco, artista do barro e da vida, como o identificava este outro sempre lembrado artista da palavra, do conto e da sensibilidade – o nosso quase eterno Jorge Amado, - cidadão do mundo - trabalhou o seu barro vermelho na velha e pitoresca aldeia saloia, em Mafra, entre gente simples, na ante-sala do museu vivo do artesanato regional, seu sonho e sua paixão.

Convivemos por todo um dia com o velho oleiro, admirado e respeitado pela força sublime de sua arte criança. Estivemos com ele, horas e horas, vendo a roda girar, vendo os pés ágeis e seguros impulsionarem o tablado e, as mãos, num vai-sobe-desce nurievesco, criando e dando vida ao barro vermelho.

O ceramista, cujas peças apaixonam, era puro artesão do espírito. Enfeitando hoje milhares de residências, museus e órgãos públicos, a arte de José Franco é um postal das tradições portuguesas, porque em sua obra sempre encontramos um pouco da arte mourisca, das marcas hispânicas, dos vestígios cartagineses, celtas, fenícios e romanos. Mafra é, por si, um relicário precioso das cerâmicas que estes povos legaram a Portugal.

José Franco, com rara felicidade, captou um pouco do passado, aprendeu a conviver com as suas marcas e, não deixou, avaramente, em louvor da historia que os hábitos e costumes saloios deixassem de encontrar a sua forma mais pura de expressão, nas peças carinhosamente modeladas. É uma mensagem sublime, homenagem indelével prestada a sua gente, a sua aldeia, ao seu Portugal.

Transcendeu desta arte maravilhosa o sonho de José Franco, o artesão. Ele construiu, com o mesmo carinho, com seus próprios recursos, sem apoio oficial, uma miniatura viva das antigas aldeias de sua meninice. É um espetáculo de cor e ritmo. A aldeia reflete todo um dia de trabalho das antigas gentes saloias, em tempos idos. Do amanhecer ao cair da tarde, inclusive com os cânticos do adormecer.

As luzes, queimando querosene, os sons, as figuras, todo o instrumental de trabalho, os campos, os rios, as propriedades, os moinhos, os rebanhos, a pesca, os atos de casamento e batizados, a missa, o bater dos sinos, os instantes festivos e cívicos que relembram o doce encanto abandonado do passado, ali estão redivivos, escrevendo em cada curva audaciosa das serras, a epopéia generosa de seu povo.

Justamente por esta simplicidade reveladora de um tempo, pela beleza de seus movimentos e a conjugação de tantas atividades, a aldeia saloia do ceramista José Franco tem sido uma atração internacional, pendurada nas asas da imaginação criadora do artista, que teimou em expressar no barro todas as suas raízes eminentemente populares.

José Franco, que freqüentou os grandes círculos artísticos da Europa, que recebeu homenagens de presidentes, ministros, reis e rainhas, no seu atelier em Sobreiro de Mafra, com a camisa aberta, os olhos em endiabrado saracoteio, o sorriso à flor dos lábios e as mãos, milagrosas, em rasgos de criação, transformou-se e agigantou-se dentro de sua adorável simplicidade aldeã.

Todo o sítio de sua vivência é agora um monumento cercado de amor, embalado apenas pelo seu olhar. Parando um pouco, - lembro-me bem - ele trouxe-me o projeto de seu sonho maior. Estava iniciando as obras do que me permiti chamar Universidade do Barro, dentro da qual ele sonhava formar centenas de sucessores e onde pudesse transmitir os seus conhecimentos, as suas técnicas, formando um verdadeiro e completo centro artesanal. Ficou, no curso dos anos, esquecido o sonho do mestre, agora aposentado.

Já lá existe, em ruelas estreitas e limpas, em tamanho natural, caprichosamente dispostas, a botica, o açougue, o armazém e, sobre o balcão, até o livro do “pendura”, a sapataria, a barbearia e a peixaria. Tudo devidamente equipado com as ferramentas e características de sua época. Maravilhoso trabalho de reconstituição de hábitos, costumes e tradições. O mestre nada esqueceu. Ele recriou em barro o seu mundo para deleite, pesquisa e estudo daqueles que tiveram a ventura de conhecê-lo, como nós e outros capixabas..

Naquele dia, hoje distante, almoçamos com José Franco e dona Helena. Já na despedida José Franco nos ofereceu uma desuas preciosas peças e autografou, no ato, com a mesma criatividade, a brochura que fala da sua obra, e que guardo carinhosamente.

O polegar direito, lá está, no canto esquerdo, em barro vivo, como sinal de uma admiração e carinho que guardamos durante tanto tempo , marcados que estão por 20 anos de imorredouras saudades.

J.C. Monjardim Cavalcanti

jornalista e Diretor da Fundação Jônice Tristão

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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