Cartas da prisão

Affonso Romano de Sant’Anna

Um preso de uma das penitenciárias de São Paulo, o qual não posso identificar aqui para que ele não sofra represálias, tem se correspondido comigo há quase um ano. Contou-me as razões de estar preso (envolvimento com drogas, mas nenhuma violência) e revelou-se uma pessoa apaixonda pela leitura, pedindo-me vários livros, que mandei. Suas cartas são bem escritas. Na verdade é um escritor que intuitivamente está abrindo seu caminho.

A penitenciária onde está é daquelas que foram devastadas pela fúria das recentes rebeliões comandadas pelo “crime organizado”. Ele já passou por várias dessas rebeliões e sobre uma delas comentou: “quase morri de pavor diante de tamanha carnificina e destruição. A penitenciária foi totalmente destruída, mas o que mais me chocou e me chamou a atenção foi o incêndio perpetrado contra a biblioteca, por não terem acesso à biblioteca, revoltados,os presos acabaram com ela.

Um crime mais do que hediondo, a queima de livros deveria dar prisão perpétua. Todos os livros que eu tinha na cela, inclusive os que você me presenteou, foram furtados por um agente penitenciário folgado e ladrão, que aproveitando-se da balbúrdia armada dentro do presídio, achou que tinha o direito de tirar tudo o que havia nas celas”. E segue relatando e comentando o que ele mesmo chama de “universo dantesco” em que vive.

Numa outra carta, voltando ao tema da leitura, que o fascina, diz: “Quem me dera poder adquirir todos os livros que sonho ler, infelizmente, no Brasil não há nenhum incentivo à leitura e acho que qualquer esforço nesse sentido seria vão, já que somente uma minoria aprecia a literatura e quando alguém ama os livros, como eu, não tem como comprá-los porque é pobre.Acho que tudo faz parte de um grande esquema mesmo, justamente para manter o povo sob rédeas”.

Felizmente ele está equivocado em parte dessas observações. Hoje em dia há dezenas e dezenas de programas de promoção de leitura no pais, inclusive em prisões. Cito, por exemplo, duas pessoas amigas. Lá em Brasília, Maria Conceição Salles há muito faz um programa desses na penitenciária da Papuda. E lá no sul da Bahia, Eleusa Câmara conseguiu até que um dos presos editasse um romance, o que virou até notícia no “Jornal Nacional”.

As pessoas e organizações não estão mais esperando que o governo tome iniciativas.Se tomar, bem, caso contrário, vão realizando seu projetos assim mesmo. Ha pessoas abrindo bibliotecas em açougues, borracharias em qualquer birosca de favela. Pos aí afora, há vários programas de promoção de leitura rolando. Só na semana passada estive em Blumenau e Joinville onde presenciei notáveis conquistas neste sentido realizadas pelas professoras Paatricia Constancio e Tayza Rauen Moraes. Outro dia falei aqui do que ocorre em vários municípios cearences com os “agentes de leitura” freqüentam regularmente comunidades carentes.

Há algum tempo comecei a coligir entrevistas e depoimentos de marginais sobre a importância da leitura e da cultura. Suas palavras, em muitos casos, são mais instrutivas que textos de alguns intelectuais e ministros. Uma das constantes na declaração de marginais é a afirmativa- “se eu tivesse tido estudo, não estaria nesta situação”.

Desconcertante é constatar que são os “ excluídos” os que mais clamam por uma chance através do estudo e da cultura. Por estarem aprisionados sabem que o estímulo do imaginário através da leitura é uma forma não só de auto-conhecimento, mas de liberdade possível.

In Jornal Recomeço

http://jrecomeco.blog.uol.com.br/

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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