C'mon baby, incendeie o meu incêndio (crimeano) *

16 de março é o dia C. O Parlamento da Crimeia - por 78 votos e com oito abstenções - decidiu que naquele dia os eleitores crimeanos escolheram entre integrar-se à Federação Russa ou permanecer parte da Ucrânia, como região autônoma, com poderes muito efetivos, nos termos da Constituição de 1992. 

Seja qual for o terremoto "diplomático" que Washington e Bruxelas continuem a estimular, e será incendiário, incandescente, os fatos em solo falam por eles mesmos. A conselho da cidade de Sevastopol - quartel-general da Frota Russa no Mar Negro - já votou pela integração à Rússia. E semana que vem, em Moscou, a Duma [Parlamento] estudará uma resolução para simplificar os procedimentos e mecanismos da adesão. 

Recapitulando rapidamente: aí está o resultado direto do gasto de $5 bilhões de Washington - número oficial, fornecido por Victoria "Foda-se a União Europeia" Nuland - para promover a 'mudança de regime' na Ucrânia. O que se vê é que a Crimeia pode ser incorporada gratuitamente à Rússia, enquanto o 'Ocidente' ficará com o atraso e a bancarrota (Oeste da Ucrânia), do que um leitor de Asia Times Online descreveu, descrição indelével, como o "Khaganato dos Nulands" (reino de Gengis, por exemplo, dentre outros khans), misturado com terra de ninguém, onde reina o marido de Victoria ("Foda-se" etc.) Nuland Kagan.[1] 

O governo que para Moscou é governo ilegal infiltrado de neonazistas em Kiev, comandado pelo primeiro-ministro Arseniy "Yats" Yatsenyuk - ucraniano, judeu e banqueiro, no papel de fantoche do ocidente -, insiste que a Crimeia deve permanecer como parte da Ucrânia. E não só Moscou: metade da própria Ucrânia não reconhece a gangue de Yats como governo legítimo, agora já impondo inúmeros oligarcas como governadores de províncias. 

Esse tal 'governo' - apoiado pelos EUA e pela União Europeia - já declarou ilegal o referendo. Comprovando suas impecáveis credenciais "democráticas", eles já proibiram o uso do idioma russo na Ucrânia; já se livraram do Partido Comunista (que recebeu 13% dos votos nas últimas eleições, mais votos, aliás, que o Partido Svoboda ["Liberdade"] infestado de neonazistas, e agora encarregado dos ministérios da 'segurança' do novo governo; e também já fecharam uma estação de televisão russa, a qual, por falar dela, é a mais popular das televisões ucranianas a cabo. 

No meio de toda a histeria que se vê em Washington e em algumas capitais europeias, o que ninguém explica à engambelada opinião pública é que esses fascistas-neonazistas que chegaram ao poder mediante golpe, jamais permitirão que se façam eleições verdadeiras na Ucrânia; afinal, é praticamente certo que, se houver eleições, eles serão varridos do mapa. 

Isso implica que "Yats" e sua gangue - além de já ter sido recebido com tapete vermelho numa pomposa, embora inócua, reunião da União Europeia em Bruxelas - não sairá de onde está. Por exemplo, já usaram força pesada para pôr a correr manifestantes pró-Rússia que se reuniram em frente à sede do governo na cidade de Donetsk. Cidade fortemente industrializada, Donetsk têm muitos laços comerciais com a Rússia. 

E outro cenário, ainda mais sinistro, já começa a aparecer no horizonte: uma possível instrumentalização da franja de jihadistas lunáticos dos 10% de tártaros que vivem na Crimeia, para tudo: de ataques preparados para serem atribuídos a outros, até suicidas-bomba. A Casa de Saud, segundo sólida fonte saudita, está imensamente interessada na Ucrânia e pode ser tentada a prestar alguns favores à inteligência ocidental. 

Nosso amor se converterá em pira funerária?[2]

Pode-se dizer que, para Moscou, é muito melhor negócio manter a Crimeia dentro da Ucrânia, com amplos poderes autônomos, mais o acordo vigente para manter ali a base naval de Sevastopol, que a anexação. É como se a Rússia estivesse anexando o que, para todos os objetivos práticos, já é província russa. 

Assim, o Kremlin pode sempre decidir não anexar, e usar o resultado praticamente já decidido do referendo como peão chave numa negociação complexa, não com a União Europeia, mas, fundamentalmente, com a Alemanha. A União Europeia é hoje um saco de gatos. O 'governo em Kiev é só confusão. O que realmente interessa é o que Vladimir Putin está discutindo por telefone com Angela Merkel. 

Muita coisa aí tem a ver com o Oleogasodutostão - por exemplo, o Ramo Norte (Nord Stream) de 9 bilhões de euros (EUA$12,4 bilhões), o cordão umbilical de aço que liga Rússia e Alemanha pelo Mar Báltico. Merkel, o então presidente russo Dmitri Medvedev  e o ex-chanceler alemão e hoje presidente do Ramo Norte, Gerhard Schroeder, estavam muito próximos e unidos, quando o projeto de gasoduto para levar gás russo até a Alemanha entrou em operação em 2011. O projeto foi inicialmente proposto em 2005, quando Schroeder era chanceler e Putin era presidente da Rússia pela primeira vez. No início dessa semana, Schroeder disse que a OTAN devia calar o bico. 

Além de tudo mais, dois terços do comércio entre Rússia e a União Europeia estava, em 2012 (ainda não há dados de 2013), em torno de estonteantes EUA$370 bilhões, com a Rússia exportando, principalmente petróleo, gás e cereais, e a União Europeia exportando, principalmente, carros, medicamentos, componentes de máquinas. Esqueçam todas as sanções, o tal sacrossanto mantra de Washington. Sanções são péssimas para os negócios. 

Mas Moscou, sim, tem uma real, tangível e muito séria linha vermelha. Não precisa nem se preocupar com a Ucrânia na União Europeia, porque a maioria dos europeus não quer a Ucrânia como membro do clube deles. A linha vermelha é as bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Ucrânia. Moscou pode, inclusive, aceitar que a Ucrânia permaneça como uma espécie de Finlândia, entre a Rússia e a Europa, com a Crimeia ainda dentro da Ucrânia. Uma base da NATO ali, ao lado da base russa em Sevastopol seria totalmente psicodélico. 

Assim sendo, uma decisão na Crimeia - não importa para que lado vá - envia, sim, uma mensagem muito clara, de Moscou para o "ocidente": prestem atenção à nossa linha vermelha. Diferentes de outros por aí, nós falamos sério. Defenderemos nossa linha vermelha com tudo que temos. 

Não é hora de chafurdar em conversa fiada[3]

Primeiro, o presidente Barack Obama dos EUA declarou solenemente que o referendo na Crimeia "viola(ria) a lei internacional" (mas o Kosovo, sim, pôde separar-se alegremente da Sérvia, em 2008, com ruidosa comemoração em Washington.) 

E, isso, depois de ele ter declarado a Crimeia "ameaça extraordinária à segurança e à política externa dos EUA". O que mais falta?! Nacionalistas da Crimeia invadirem o Iowa? Não, não. É ardil da Casa Branca, para iniciar a usual guerra financeira. 

E tudo isso, quando a mais brilhante "estratégia" da equipe Obama - continuar a demonizar Putin até o Juízo Final - estava atingindo o clímax.[4] 

Mas foi quando Obama - percebendo que Angela Merkel estava roubando para ela todos os holofotes - telefonou a Putin e ficou por quase uma hora tentando "engajar" o homem. Por que, diabos, tão súbita mudança de sentimentos? 

Uma possível resposta pode vir do inescapável Dr. Zbigniew "O Grande Tabuleiro de Xadrez" Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional de Jimmy Carter, aquele Hamlet caipira; o homem que deu aos sovietes "o Vietnã deles"; o homem que sempre sonhou que os EUA deveriam reinar sobre a Eurasia; e principal mentor "invisível" de Obama para sua política externa. 

Como o Dr. Zbig disse a Nathan Gardels do WorldPost, "A estratégia do ocidente nesse momento deve ser complicar o planejamento de Vladimir Putin." Ora... Não funcionou muito bem, né-não? Então vem o Dr.  Zbig e diz que "a OTAN deve convidar os russos a participar das discussões em andamento". Não funcionou. 

Dr. Zbig foi firme: "temos de reconhecer formalmente o novo governo na Ucrânia, o qual, creio, manifesta o desejo do povo de lá". Na verdade, o desejo de talvez metade da nação, se tanto. "Interferência nos negócios da Ucrânia será considerado ato hostil por potência estrangeira". Era o que Obama tinha na cabeça. Até que telefonou para Putin. 

O Dr. Zbig ficou ainda mais apocalíptico, e disse que "Temos de pôr em operação os planos de contingência da OTAN, deslocar forças na Europa Central, para estarmos em posição de responder, no caso de a guerra eclodir e espalhar-se". Não surpreende que a imprensa-empresa nos EUA tenha entrado em surto de total piração. 

Mas foi quando o Dr. Zbig recuperou a sanidade: "A melhor solução para a Ucrânia será tornar-se o que a Finlândia foi para a Rússia." Assim sendo, no final, ele parece ter sugerido a Obama "uma solução de compromisso que seja aceitável para a Rússia e para o Ocidente". E que envolverá "ajuda econômica e investimento sérios". E adivinhe quem deve liderar, garantindo o dinheiro? "A Alemanha, a economia mais próspera e mais forte da União Europeia." 

Assim sendo, no fim, voltamos, mais uma vez, ao que Angela e Vlad já discutem há tempos. É a finlandização? Ou é só questão de decidir quem tenta incendiar a noite? 

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* "Light my fire" é verso e título de The Doors, 1967. Ouve-se [e versos traduzidos] em http://letras.mus.br/the-doors/11476/traducao.html [NTs]

[1] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Khanate. Há aí também um eco semântico, audível para falantes de português e espanhol: "cagar" é variante (muito) chula, para "defecar". Mas o Urban Dictionary registra o verbete "cagada", no inglês norte-americano, provavelmente, pelo espanhol, com o mesmo significado que tem em português e espanhol (em http://www.urbandictionary.com/define.php?term=cagada) [NTs].

[2] Orig. Will our love become a funeral pyre? Também é verso de The Doors, em "Light my fire", cantado pelo coro: http://rock.rapgenius.com/The-doors-light-my-fire-lyrics#note-1789948  [NTs].

[3] Orig.  "No time to wallow in the mire". Também é verso de The Doors, em "Light my fire", cantado pelo coro: http://rock.rapgenius.com/The-doors-light-my-fire-lyrics#note-1789948  [NTs].

[4] http://time.com/13040/putin-ukraine-obama-white-house-attacks/

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Ucrânia, 6/3/2014: RELATÓRIO DE SITUAÇÃO
The Saker, Vineyard of the Saker
http://vineyardsaker.blogspot.com.br/2014/03/ukraine-sitrep-march-6-1250-est.html

 

  • As autoridades da Crimeia acabam de anunciar que o referendo sobre o futuro da Crimeia será realizado dia 16 de março, e responderá as duas seguintes perguntas:

    Você é a favor de a Crimeia tornar-se território constituinte da Federação Russa?

    OU

    Você é a favor de restaurar-se a Constituição da Crimeia de 1992?

  • Os deputados da Crimeia votaram na 5ª-feira a favor de a região "tornar-se parte da Federação Russa, como território constituinte".

    78 deputados disseram "sim" à Crimeia unir-se à Rússia; e oito abstiveram-se de votar.

    O Parlamento também tomou a decisão de solicitar que a liderança russa "inicie o procedimento para que a Crimeia se torne parte da Rússia."


COMENTÁRIO: Para mim, é surpresa. Não esperava que a Crimeia escolhesse integrar-se à Rússia. Suponho que seja reação à escalada das ameaças verbais que vêm dos EUA e da União Europeia.

PS: Sobre os boatos de que os ucranianos estariam minando o porto de Sevastopol, é perfeita tolice, pelas seguintes razões:

1) Quem estaria implantando minas naquele local?  Os ucranianos? Impossível. A inteligência da Frota do Mar Negro teria visto qualquer movimentação. E nem os ucranianos têm meios para fazer tal coisa. O ocidente? Impossível. Seria ato de guerra. E, outra vez, a inteligência da Frota do Mar Negro teria percebido. Os próprios russos? Por quê? E, se fizeram, como teriam perdido o controle dos códigos?

2) Em todos os casos, a inteligência da Frota do Mar Negro tem todos os meios para remover quaisquer minas.

3) Se fosse verdade, as autoridades russas e da Crimeia teriam excelente oportunidade para propaganda. E nada disseram sobre isso.

4) E qual seria o objetivo da ação? Dar pretexto para os russos obterem o que quisessem dos ucranianos? Pouco provável. Ato de provocação? Não seria necessário deslocamento tão grande.

Conclusão: não é verdade. Não deem atenção a esses boatos malucos.

Saudações. Permaneçam sintonizados! [assina] The Saker

 

7/3/2014, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/CEN-01-070314.html

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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