Exportação de gado vivo não respeita a dignidade animal. Entrevista especial com Silvana Andrade

Exportação de gado vivo não respeita a dignidade animal. Entrevista especial com Silvana Andrade

Silvana Andrade | Foto: Divulgação

Por: Patricia Fachin, no IHU On Line

Apesar de a exportação de gado vivo de frigoríficos brasileiros para países do Oriente, com destaque para a Turquia, ter crescido desde o último ano, esse tipo de atividade vem "deixando de lado qualquer preocupação com o bem-estar animal e com o meio ambiente", adverte a jornalista e coordenadora da Agência de Notícias de Direitos Animais - Anda, Silvana Andrade.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Silvana frisa que a exportação de animais vivos gera uma série de riscos não só para os animais envolvidos, mas para o meio ambiente em geral, como o desastre que aconteceu em Barcarena, no Pará, em 2015, quando cinco mil bois morreram num naufrágio. "Isso gerou um passivo ambiental gigante e um impacto ambiental que tem consequências até hoje", lembra. Ela também comenta a polêmica envolvendo os animais que embarcaram no Navio Nada, no início deste ano, rumo à Turquia. "É algo inadmissível, porque os bois vivem em meio a fezes e urina. Os responsáveis pelo navio dizem que soltam esses excrementos no mar, mas isso significa mais poluição ao meio ambiente. Além disso, há relatos de superlotação, porque os bois não têm espaço e ficam o tempo todo em pé, e às vezes eles caem de cansaço. A poluição sonora é ensurdecedora por conta dos equipamentos de ventilação que, segundo os relatórios, são insuficientes para manter a temperatura adequada para os animais. Há relatos de que quando um animal morre durante o transporte de navio, esse animal é jogado ao mar. Além disso, para atender 27 mil bois, havia somente três veterinários. Como cada veterinário dará conta de nove mil bois? Eles também não têm água e alimentação suficientes, ou seja, estão numa situação degradante, e as empresas não estão preocupadas com isso. Elas tratam esses animais como meros objetos sem qualquer valor, que serão vendidos apenas para gerar lucro para as empresas", lamenta.

Na avaliação dela, a exportação de gado vivo para outros países sinaliza que o Brasil não respeita o Código Sanitário de Animais Terrestres, que foi feito pela Organização Mundial da Saúde Animal, nem a Declaração Universal dos Direitos dos Animais e a lei federal de crimes ambientais. Mas mesmo que essas legislações estivessem sendo cumpridas, pondera, "do ponto de vista moral e ético, esse tipo de exportação de animal vivo não tem razão de ser. Esse tipo de exportação não fará qualquer diferença na economia brasileira".

Silvana Andrade é jornalista, vegana e ativista pelos direitos animais, com carreira de 29 anos desenvolvida na imprensa brasileira. Trabalhou como repórter, coordenadora de produção, editora e editora-chefe em redes de TV (Cultura, Record, Manchete, Globo News) e produtoras de vídeo. Atuou também como jornalista em empresas privadas e em órgãos governamentais. Faz planejamento de estratégias de comunicação interna e externa e cria projetos editoriais para todas as mídias. É a idealizadora e presidente da Anda (Agência de Notícias de Direitos Animais), a primeira agência jornalística do gênero no mundo. É responsável por propor a ideia do Projeto de Lei 337/2006, que autoriza o Poder Executivo a criar hospitais veterinários públicos no Estado de São Paulo. É membro fundadora da Sociedade Vegana no Brasil.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Pode nos dar um panorama geral sobre desde quando e por que o Brasil investe na exportação de gado vivo para outros países?

 

Silvana Andrade - Esse processo começou no Pará, no Norte do Brasil, e o grande problema é que a demanda por esse tipo de exportação vem crescendo, tanto que cresceu bastante do ano passado para cá. A Minerva, maior exportadora de bois vivos do Brasil, começou a operar no Porto de Santos, deixando de lado qualquer preocupação com o bem-estar animal e com o meio ambiente.

 

Há risco de desastres neste tipo de atividade, como o que aconteceu em Barcarena, no Pará, em 2015, quando cinco mil bois morreram num naufrágio. Isso gerou um passivo ambiental gigante e um impacto ambiental que tem consequências até hoje, o que demonstra que esse tipo de atividade não considera o passivo ambiental. Somente em março uma área equivalente a cinco mil campos de futebol foi desmatada na bacia do Xingu, para garantir o plantio para alimentar o gado. Entretanto, essa atividade não é compensatória para o Brasil, porque o preço do "boi em pé" é pequeno em relação ao preço da carne de uma forma geral. Então, o Brasil não precisa desse tipo de exportação e o impacto financeiro desse tipo de venda é muito pequeno sobre o agronegócio, considerando o montante gerado pelo setor.

 

IHU On-Line - Há uma tendência de aumentar esse tipo de exportação no Brasil?

 

Silvana Andrade - A demanda aumentou nos últimos anos, especialmente nos países árabes e muçulmanos. E como não existe uma consciência do agronegócio sobre esse tipo de atividade, a tendência é que a exportação continue, porque o Brasil é um dos maiores exportadores de carne do mundo. Entretanto, trata-se de uma afronta à lei, uma afronta ao Código Sanitário de Animais Terrestres e à Organização Mundial da Saúde Animal. É uma afronta também à lei federal brasileira de crimes ambientais, que é a Lei 9.605, de 1998. Enfim, do ponto de vista ambiental, estamos gerando problemas não só nas cidades onde existem portos, mas também nos oceanos, por conta desse processo.

 

IHU On-Line - Em que condições esses animais são exportados? Como é feito o manejo do gado que é exportado e que informações você tem sobre maus-tratos?

 

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Sou contrária a esse tipo de exportação, mesmo que os bois sejam embarcados em ambientes climatizados e recebam massagens - Silvana Andrade

 

Silvana Andrade - Quero deixar claro que sou contrária a esse tipo de exportação, mesmo que os bois sejam embarcados em ambientes climatizados e recebam massagens etc. Mas para além disso, o que acontece com esses animais é um horror. A Magda Regina, perita judicial e médica veterinária que realizou a perícia do Navio Nada, coletou imagens, e fez um parecer e uma conclusão sobre o que viu lá. É algo inadmissível, porque os bois vivem em meio a fezes e urina. Os responsáveis pelo navio dizem que soltam esses excrementos no mar, mas isso significa mais poluição ao meio ambiente. Além disso, há relatos de superlotação, porque os bois não têm espaço e ficam o tempo todo em pé, e às vezes eles caem de cansaço. A poluição sonora é ensurdecedora por conta dos equipamentos de ventilação que, segundo os relatórios, são insuficientes para manter a temperatura adequada para os animais. Há relatos de que quando um animal morre durante o transporte de navio, esse animal é jogado ao mar. Além disso, para atender 27 mil bois, havia somente três veterinários. Como cada veterinário dará conta de nove mil bois? Eles também não têm água e alimentação suficientes, ou seja, estão numa situação degradante, e as empresas não estão preocupadas com isso. Elas tratam esses animais como meros objetos sem qualquer valor, que serão vendidos apenas para gerar lucro para as empresas.

 

IHU On-Line - O que caracteriza o bem-estar animal? Que aspectos fundamentais estão envolvidos nessa concepção?

 

Silvana Andrade - A dignidade dos animais, ou seja, se considerassem o bem-estar desses animais, eles jamais poderiam ser transportados. Quando vamos a um hospital e vemos pessoas deitadas pelos corredores, achamos que essa situação configura um desrespeito à dignidade humana. No caso dos animais, a dignidade deles também não é respeitada quando eles são transportados em pé entre 12 e 14 horas, que é o tempo que leva para sair da fazenda e chegar até o porto. Imagina você sem água e sem alimentação durante 12 ou 14 horas.

 

Como bem disse o procurador geral da República em seu parecer sobre essa questão, muito do que ocorre nesse tipo de transporte, se assemelha aos navios negreiros. Para você ter uma ideia, em algumas partes do navio a perícia não era autorizada a entrar. Se nos locais autorizados a perícia já percebeu várias violações de direitos dos animais, imagina qual é a situação nos espaços em que os peritos não puderam entrar.

 

IHU On-Line - Existe alguma legislação nacional que estabelece as regras sobre a exportação de gado vivo e sobre os cuidados com os animais que são criados pela indústria com destino à comercialização?

 

Silvana Andrade - Existe o Código Sanitário de Animais Terrestres que foi feito pela Organização Mundial da Saúde Animal, mas o Brasil não está por dentro desse código. Além dessa legislação internacional, existe uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais e existe uma lei federal de crimes ambientais, mas nenhuma delas está sendo cumprida. Mas ainda que elas estivessem sendo cumpridas, do ponto de vista moral e ético, esse tipo de exportação de animal vivo não tem razão de ser, pois não fará qualquer diferença na economia brasileira.

 

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Se alguns produtores colocam papel dentro das carnes processadas, ou seja, se fazem isso com o cliente que vai dar lucro para a empresa, imagina o que eles não fazem com os animais - Silvana Andrade

 

IHU On-Line - A que outras condições, além de maus-tratos, os animais criados pela indústria são submetidos?

 

Silvana Andrade - Essa atividade, por si só, intrinsecamente, é um maltrato, porque leva à morte dos animais e os coloca em condições não adequadas. Vídeos produzidos por ONGs internacionais mostram as terríveis condições em que esses animais vivem: vemos galinhas debicando umas às outras, animais sendo espancados etc. Eu não considero que colocar uma música clássica para esses animais ouvirem pode beneficiá-los, porque a própria condição de eles estarem confinados, sabendo que vão morrer ou sendo separados uns dos outros, gera dor. Veja, por exemplo, que a vaca e seu bezerro são separados dois dias depois do nascimento, porque esse bezerro vai virar baby-beef. Eles são seres sencientes como nós, e isso foi comprovado pela Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, em 2012.

 

Se alguns produtores colocam papel dentro das carnes processadas, ou seja, se fazem isso com o cliente que vai dar lucro para a empresa, imagina o que eles não fazem com os animais. Falar dessa indústria é sinônimo de maus-tratos aos animais.

 

IHU On-Line - Nos últimos anos cresceu a discussão sobre o uso de animais para pesquisas científicas e alguns estudantes se recusam a assistir aulas que envolvam experimentos com animais. Como você vê o uso de animais para esse tipo de finalidade?

 

Silvana Andrade - Isso é algo absolutamente anacrônico. Eu não gosto de usar a palavra "desnecessário" porque parece que em algum momento este uso foi necessário; mas esse é um uso desnecessário. Hoje nós temos todos os recursos, toda a tecnologia, todo o conhecimento e o apelo da sociedade para que se usem métodos substitutivos às pesquisas com os animais. Dentro da academia, existe a possibilidade - não só hoje, mas já há muitos anos - de não utilizar os animais em sala de aula, porque temos métodos substitutivos para tudo. Além disso, nós temos uma regulamentação internacional que surgiu a partir de experiências feitas pelos nazistas na Segunda Guerra. Então, temos um tratado internacional sobre isso, o qual regulamenta as fases da pesquisa.

 

Inclusive, os métodos substitutivos são mais indicados, porque apenas 1% das pesquisas realizadas com animais extrapolam para a fase humana, o que é muito pouco. Alguns cientistas dizem que determinados testes precisam ser feitos em animais, como na área da urologia, mas se não dá, é preciso que se busquem alternativas, porque temos tecnologia; o que falta é vontade de se investir nisso. Portanto, não precisamos ter uma ciência em 2018 tão desalinhada e distante da ética, porque o que fazemos hoje com os animais, os nazistas já fizeram com os judeus, os ciganos e os homossexuais.

 

IHU On-Line - Como a temática sobre os direitos dos animais tem sido discutida hoje no país? Quais são os principais impasses envolvidos nessa discussão?

 

Silvana Andrade - Nos últimos anos cresceu bastante na grande imprensa e nas mídias sociais a discussão sobre temas ligados aos interesses dos animais, o que é muito bom, porque a sociedade está avançando não só do ponto de vista moral e ético, mas também de uma consciência maior do planeta. Mesmo quem consome carne, quando vê como esses animais são transportados, se indigna e não apoia esse tipo de prática. Eu enxergo isso como um avanço para o reconhecimento dos direitos dos animais.

 

Outro tema que tem avançado bastante é o uso de animais para testes de cosméticos. Quando um produto não é testado em animais, ele é vendido com um valor agregado, e as pessoas estão privilegiando a compra de produtos que não contenham exploração de animais. Além disso, uma pesquisa recente do Ibope demonstrou que 14% dos brasileiros das principais capitais do país são vegetarianos. Em algumas capitais, inclusive, esse percentual chega a 16%; é fantástico. Isso demonstra uma mudança no comportamento das pessoas. Se antes as pessoas não pensavam sobre os animais, hoje existe uma consciência e uma preocupação com isso.

 

IHU On-Line - Quais são as questões mais urgentes a serem discutidas sobre os animais, hoje, no Brasil?

  

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Quando um produto não é testado em animais, ele é vendido com um valor agregado, e as pessoas estão privilegiando a compra de produtos que não contenham exploração de animais - Silvana Andrade

 

Silvana Andrade - Muitas coisas com relação aos animais ainda precisam ser discutidas, mas acredito que um dia vamos abolir o consumo alimentar de animais. Porém, antes disso, temos que acabar com o transporte de animais e com o uso de animais para testes cosméticos e acadêmicos. A última fronteira será a alimentação, ou seja, o fim do consumo alimentar de animais.

 

Brasil e Cuba foram os últimos países a abolir a escravidão humana, e, da mesma forma, hoje o Brasil é muito resistente ao fim da pecuária, porque temos uma classe feudal. Os agropecuaristas e ruralistas fazem do país o quintal deles, e querem ditar como é a sociedade, que já não aceita os maus-tratos aos animais. Se hoje já existem 22 milhões de vegetarianos e veganos, a tendência é que esse número cresça ainda mais, e que daqui a 10 anos tenhamos cerca de 50 milhões de brasileiros vegetarianos ou veganos, ou seja, 25% da população. A indústria terá que se reinventar e acompanhar as mudanças da sociedade, assim como a justiça sempre acompanhou e precisa acompanhar a cada dia mais, ou ela perderá espaço.

 

Na indústria vegana, os produtos estão crescendo muito. Pessoas que eu não imaginava estão se tornando vegetarianas ou consumindo mais produtos veganos, o que reflete mais essa mudança na sociedade, que é irreversível. Essa mudança da sociedade para um mundo sem crueldade, mais compassivo, ético e ambientalmente preservado, é irreversível. Se hoje no Rio de Janeiro, em Recife e São Paulo, 16% da população se declara vegetariana ou vegana, no futuro isso representará ¼ da população.

 

Em 2017 o DataFolha já tinha mostrado que 63% dos brasileiros queriam reduzir o consumo de carne. A indústria tem esse dado, mas não se reinventa. Enquanto isso, fora do Brasil o mercado vegano atingiu bilhões de dólares e é cada dia maior. Recentemente, Vancouver aboliu o uso de canudos plásticos, mas mais do que isso, o mundo está discutindo e ainda veremos o fim do uso de plásticos. Por isso, a indústria precisa se reinventar e investir em novas tecnologias e criar novos produtos, assim ela terá muito mais dinheiro. Veja que hoje já existe o ovo, a carne, o camarão e o siri veganos; fora do Brasil é possível comer todo tipo de comida vegana. Além disso, temos os queijos e os leites vegetais, tudo com boa qualidade. Sei que agora estão desenvolvendo uma "carne vegana que sangra", que é para essas pessoas que gostam da carne crua. O próprio Leonardo di Caprio e a Fundação Bill Gates têm laboratórios para a produção de carne vegana.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

 

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A economia será grande quando respeitar a vida e o bem-estar de todos, e isso inclui as árvores, os rios, os mares, ou seja, tudo o que existe nesse planeta, animais humanos e não humanos - Silvana Andrade

 

Silvana Andrade - O Brasil está passando por um momento estranho. Talvez o joio e o trigo estejam brotando juntos, para que depois sejam separados, por isso é um momento muito difícil, mas tenho esperanças. Para além da classe política que hoje nos causa tanta indignação e reduz o país a um tamanho que ele não tem, espero que a sociedade alavanque essa mudança e que possamos ter governantes com mais consciência em relação à ética animal, à biociência e ao planeta. Espero que possamos ser aquele país que escuto desde que nasci: um país do futuro.

 

Gostaria de ressaltar que nenhum valor monetário explica e justifica o transporte de animais e a exportação de gado vivo, ou qualquer exploração, maltrato e morte de animais. A economia será grande quando respeitar a vida e o bem-estar de todos, e isso inclui as árvores, os rios, os mares, ou seja, tudo o que existe nesse planeta, animais humanos e não humanos. Essa é uma economia próspera, qualquer outra é danosa aos humanos e aos não humanos.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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