Trocando a insanidade econômica pela economia solidária

Marcus Eduardo de Oliveira

É fato inconteste que por meio do comportamento econômico é possível compreender a atual situação do mundo, em suas dimensões econômicas e sociais. E, ao compreender essa atual situação que se desenrola nesse século XXI, com 1 bilhão de pessoas passando fome, segundo dados divulgados pela ONU (Organização das Nações Unidas), torna-se inadmissível aceitar a existência de um modelo econômico que produz riqueza gerando pobreza; que eleva a produção agredindo o meio-ambiente; que fabrica bens à base da subordinação de muitos mediante a precarização cada vez mais intensa das relações de trabalho; que faz uso de trabalho escravo e infantil; que desumaniza as relações econômicas em troca do lucro rápido.

Isso é simplesmente uma insanidade econômica que produz para o gosto de alguns apenas extravagâncias e, em nada, absolutamente em nada, contribui para a efetivação do bem-estar coletivo, distanciando-se, pois, do objetivo principal dos modelos econômicos, qual seja: consolidar o desenvolvimento econômico.

Exemplos dessa insanidade econômica não faltam e ganham, a cada dia, maior visibilidade. Enquanto de um lado poucos ganham muito, do outro, muitos sofrem e nada ganham. Essa insanidade econômica parece não ter limites e se reproduz, por consequência, cada vez mais usando trabalho infantil e escravo. Os exemplos disso saltam aos olhos de todos que querem ver. Lojas de tapetes na Índia, no Nepal e no Paquistão usam quase um milhão de crianças na linha de produção. Vários são os casos em que muitas dessas crianças atingiram a cegueira devido ao longo tempo em que passaram costurando.

As casas de prostituição tailandesas, indianas e birmanesas usam meninas de 10 e 11 anos de idade, numa submissão sexual sem precedentes. De igual forma, em várias cidades da região Nordeste do Brasil, são “vendidos” pela rede internet a estrangeiros em visitas às cidades “programas sexuais” com adolescentes menores de 15 anos de idade.

No Oriente Médio, nas famosas corridas de camelo, os jóqueis são meninos entre 12 e 15 anos “comprados” por comerciantes e tratados com brutalidade, da mesma forma como também são tratados os camelos.

No Camboja, a indústria de tijolos e telhas faz uso de meninos descalços e sem nenhuma proteção para o transporte desse produto. Razão pela qual muitas crianças aparecem com braços, pernas e dedos cortados pelo manuseios dos pesados tijolos.

A Nike, fabricante de calçados esportivos, enquanto enche ano a ano seus cofres e torra fortuna em publicidade, continua usando trabalho infantil na Indonésia. A Adidas, outra marca de reconhecimento internacional, fechou fábricas na Europa e transferiu grande parte de sua produção para a Ásia, aproveitando assim a mão-de-obra de baixíssimo custo.

No estado de Tamil Nadu (sul da Índia) quase 400 mil meninos e meninas trabalham manualmente produzindo cigarros da marca “beddies” vendidos exclusivamente a elevado preço no mercado local. O “salário” desses meninos e meninas não ultrapassa 30 centavos de dólar por hora.

Os brinquedos distribuídos junto aos lanches das redes alimentícias Mc Donald´s, Bobs e Burger King, em mais de 140 países, são feitos por crianças com idade entre 11 e 14 anos em galpões sem nenhuma ventilação, a maioria deles localizados em Taiwan. Essas crianças chegam a trabalhar entre 10 e 12 horas por dia em troca de ninharias ao final do mês; grande parte delas apresentam queimaduras em mãos e braços, mediante o uso de componentes químicos. No entanto, em 2008, somente a rede Mc Donald´s anunciou um lucro recorde de US$ 4,3 bilhões (US$ 3,76 por ação) atendendo, em média, 58 milhões de consumidores por dia.

Ainda em termos de brinquedos infantis, talvez os casos mais infelizes aconteçam nas fábricas na China, onde trabalham 70 milhões de crianças e adolescentes. Esse país asiático é o maior exportador de brinquedos do mundo, usando aproximadamente 6 mil fábricas situadas na maior parte na chamada "terra dos brinquedos", a província de Guangdong (sudeste do país).

Desse local procedem, por exemplo, o boneco "Buzz Lightyear" (do desenho "Toy Story"), um dos mais populares da Walt Disney. Há ainda uma ampla gama de produtos da empresa Mattel, a fabricante das bonecas “Barbie”. A mão-de-obra infantil usadas nessas fábricas é remunerada a 13 centavos de dólar por hora, numa jornada diária de 14 horas de trabalho. Por sua vez, em 2007, o lucro da Mattel atingiu US$ 379,6 milhões (US$ 1,05 por ação).

No Brasil, apesar da lei estabelecer 16 anos como a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho, mais de 5 milhões de crianças e jovens entre 7 e 15 anos trabalham nesse país, segundo pesquisa do IBGE – grande parte delas na agricultura.

De acordo com dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e do Programa Internacional de Eliminação do Trabalho Infantil ( IPEC ), base 2006, existem no mundo cerca de 350 milhões de crianças entre 5 e 16 anos envolvidas em alguma atividade econômica. Entre elas, cerca de 250 milhões são submetidas a condições consideradas de exploração, o que equivale a uma criança em cada seis no mundo. Destas, 170 milhões trabalham em condições perigosas e 76 milhões têm idade inferior a 10 anos. A maior parte deste “exército de mini-trabalhadores” (entre 5 e14 anos de idade) vive na Ásia (127 milhões) e na África e Oriente Médio (61 milhões).

Na América Latina e Caribe são 17,4 milhões. Os países industrializados e o leste europeu não são exemplos de boa conduta nesse problema, uma vez que abrigam pelo menos 5 milhões de crianças trabalhando. Uma parte menor, mas dramaticamente consistente, desse contingente de trabalhadores é vitima de escravidão e destinada, por exemplo, à atividade de prostituição - número estimado em 8,4 milhões de crianças no mundo.

Em Bombaim, nos bordéis localizados na rua de Falkland, as meninas mais jovens e bonitas são exibidas em jaulas ao nível da rua para atrair clientes. Muitas mulheres são ali despejadas por traficantes, mas muitas são definitivamente “vendidas” pelos pais ou pelos maridos. Estima-se que atualmente 90 mil mulheres – metade das quais despachadas a partir do Nepal para a Índia – trabalham como prostitutas nessa cidade. A violência, as doenças, a subnutrição e a falta de cuidados médicos reduzem a esperança de vida para menos de 40 anos dessas pobres trabalhadoras.

Todos esses poucos (diante de uma infinidade) exemplos fazem parte de um modelo econômico insano que privilegia os ganhos financeiros em detrimento do sofrimento e da dor.

No mesmo instante em que crescem os lucros de empresas como a Nike, Adidas, Matell, das redes alimentícias Mc Donald´s e similares, dos fabricantes de tapetes do Nepal, da Índia e do Paquistão, cresce a dor e o sofrimento de milhões de indivíduos que “contribuem” com horas e horas de trabalho para os ganhos exorbitantes desses grandes conglomerados que superam em importância econômica várias nações. Não por acaso, nesse pormenor, 51% das cem maiores economias do mundo são corporações, e não países.

Enquanto esse modelo econômico perverso não for alterado, o alargamento dos bolsões de pobreza, miséria e indigência será constante. Enquanto o próprio conceito de economia não incluir em suas análises a valorização e a participação do indivíduo, nenhuma mudança será possível. Nesse sentido, enquanto a economia não for solidária e participativa, o modelo econômico atuante será o de sempre: excludente e individual, guiado unicamente pelo egoísmo e pela insensibilidade perante o sofrimento de muitos.

Por Economia Solidária entendemos um sistema econômico em que o indivíduo seja o ponto central na organização da atividade econômica e, acima de tudo, em que os direitos sociais sejam estabelecidos como princípios reguladores da economia. Economia Solidária pressupõe que a responsabilidade seja coletiva, e não individual; onde haja a união do capital ao trabalho, unindo o trabalho associativo (ajuda mútua) entre associações, cooperativas e agências de fomento.

No entanto, não nos iludamos: a mudança para uma economia solidária e participativa exigirá tempo. Necessitará, nas palavras de Riane Eisler, autora de The Real Wealth of Nations, [A Verdadeira Riqueza das nações], “modificações nos valores culturais e institucionais”. Mas, nmão tenhamos dúvidas: se um número suficiente de pessoas se mobilizar, ela terá lugar.

Dessa forma, a economia precisa urgentemente mudar em prol da melhora de vida dos mais necessitados. Uma economia mais justa e solidária é perfeitamente possível e, com ela, não haverá perdedores – todos ganharão. Diante disso, resta nos mobilizarmos e nos inserirmos participando da economia solidária; afinal, entendemos que a economia (enquanto ciência) deve se pôr exclusivamente à serviço de diminuir as diferenças sociais que são, infelizmente, cada vez mais gritantes.

O autor:

Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário.

Mestre pela USP em Integração da América Latina e

Especialista em Política Internacional.

Autor dos livros “Conversando sobre Economia” (ed. Alínea) e “Provocações Econômicas” (no prelo).

Contato: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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