Jacob Gorender ingressou no PCB ainda estudante, durante a II Guerra, combatendo o nazismo na Itália como pracinha. De volta ao Brasil, tornou-se militante profissional do PCB, integrando suas direções médias e superiores. Após o golpe de 1964, rompeu com outros camaradas com aquele partido para fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário,
Escrito por Mário Maestri
Quarta, 06 de Fevereiro de 2013
O Correio da Cidadania publica a entrevista concedida pelo historiador Mário Maestri ao jornal Brasil de Fato, em homenagem ao historiador Jacob Gorender.
Qual a importância de Jacob Gorender para a esquerda brasileira?
Jacob Gorender ingressou no PCB ainda estudante, durante a II Guerra, combatendo o nazismo na Itália como pracinha. De volta ao Brasil, tornou-se militante profissional do PCB, integrando suas direções médias e superiores. Após o golpe de 1964, rompeu com outros camaradas com aquele partido para fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, com a orientação do qual se dissociava quando foi preso. Após cumprir a pena de prisão a que foi condenado, jamais voltou a militar organicamente em partido político de esquerda, dedicando-se essencialmente à produção teórica marxista. Portanto, por quatro décadas, acompanhou como militante de base e dirigente as vicissitudes da esquerda organizada brasileira para transformar-se, a seguir, em minha opinião, no mais importante pensador marxista brasileiro.
Quais as maiores contribuições de Jacob Gorender no campo intelectual?
A dolorosa e difícil trajetória política de Jacob Gorender permitiu-lhe despontar, em fins dos anos fins 1970, ainda sob a ditadura militar, como o mais importante pensador marxista revolucionário produzido pela luta de classes no Brasil, como apenas assinalado. Boa parte da militância pecebista havia se radicalizado, sob o avanço da revolução mundial e o impacto da derrota do colaboracionismo de classes em 1964, sem realizar real balanço e superação das concepções e reflexões que haviam sustentado a prática passada. Gorender expressou a necessidade daquela superação teórico-política, através de sua crítica sistemática do processo de gênese e devir da formação social brasileira.
Ao ser lançada, em 1978, O escravismo colonial alcançou grande repercussão, ainda que em forma transitória, sobretudo devido à retomada potencializada das lutas proletárias no Brasil, na segunda metade dos anos 1970, com destaque para São Paulo, o coração industrial do país. O escravismo colonial conheceu, no ano passado, uma cuidada quinta reedição pela Fundação Perseu Abramo..
O escravismo colonial é citado por muitos militantes e analistas como uma obra fundamental sobre o Brasil. O que ele trouxe de tão inovador?
Em 1978, ainda sob a ditadura militar, o lançamento por Jacob Gorender de uma erudita tese científica sobre a economia política da escravidão americana surpreendeu profundamente a esquerda brasileira em difícil processo de reorganização, após duas derrotas políticas importantes, em 1964 e em inícios dos anos 1970. Uma esquerda que, em verdade, pouco compreendeu, e segue pouco compreendendo, o sentido profundo daquele trabalho. Apesar de ser livro escrito e destinado principalmente para a esquerda brasileira, O escravismo colonial teve importante consagração no mundo acadêmico, antes de sofrer enorme ofensiva de deslegitimação conservadora nos meios universitários.
Com O escravismo colonial, Jacob Gorender perscrutou as leis tendenciais do modo de produção escravista colonial [definido como historicamente novo] que conformara a antiga formação social brasileira. Tratou-se de esforço titânico que dissolveu as fantasmagorias dominantes sobre um passado capitalista, feudal ou híbrido, estabelecendo as bases para a interpretação das dinâmicas profundas do passado e do presente do Brasil. A tese se constituiu como construção dos fundamentos de uma crítica sistemática geral da formação social brasileira.
E essa crítica foi realizada?
Com O escravismo colonial, Jacob Gorender realizou crítica categorial sistemática do modo de produção que fundamentou a antiga formação social brasileira. Sua leitura posterior do período pós-1888 foi apenas delineada e esboçada, sobretudo em dois breves ensaios. O primeiro, Gênesis e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, conferência pronunciada em 1979, discute a transição singular, que deu origem à produção capitalista no campo, após a definitiva superação da produção escravista, através da revolução abolicionista de 1888. O segundo, A burguesia brasileira, de 1981, editado na coleção Primeiros Passos da Brasiliense, aborda sumariamente a gênese e o desenvolvimento da industrialização no Brasil e da formação da burguesia brasileira, até fins dos anos 1970.
Em última instância, no plano individual, as dificuldades de Jacob Gorender em enfrentar aquela tarefa isolado, combatido, desprovido de recursos, sem uma forte compulsão social, contribuíram certamente para o caráter sintético do desdobramento da crítica iniciada com O escravismo colonial. Limitações que se materializaram no contexto do refluxo do mundo do trabalho no Brasil, após o ápice das lutas sociais de 1979, e através do mundo. Refluxo que resultou na vitória histórica da contrarrevolução mundial, em fins dos anos 1980.
Que outras obras de Gorender merecem destaque?
Entre outros importantes livros, além da monumental tese O escravismo Colonial, atinente à economia política, Jacob Gorender escreveu dois clássicos da historiografia brasileira. O primeiro, Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, constitui avaliação da luta da esquerda nos anos pós-1964. Trata-se de preciosa reconstituição sintética e crítica histórico-política daquele período, nas quais podemos acompanhar as rupturas e as permanências das visões do autor quanto às suas concepções e ações naquele período. A escravidão reabilidata foi editada também pela Ática, em 1990, dois anos após as celebrações do primeiro centenário da abolição da escravatura, em 1988. Constitui obra antológica de crítica historiográfica, que desvela o processo genealógico e as raízes ideológicas do revisionismo historiográfico sobre a escravidão brasileira, que restaurou as antigas teses sobre uma sociedade escravista patriarcal, consensual, negociada, hoje plenamente hegemônica, etc.
Na sua avaliação, a obra de Jacob Gorender como um todo e suas ideias continuam atuais? Por quê?
Como um todo, não. Após a ruptura com o PCB, o próprio Jacob Gorender jamais reivindicou a produção realizada quando dirigente daquela organização. Com O escravismo colonial, em 1978, como proposto, ele despontou como a principal referência teórica do marxismo revolucionário no Brasil, resgatando genialmente a vigência daquele método e a necessidade histórica da revolução socialista sob a direção do mundo do trabalho. Nesse processo, construiu obra magnífica que se mantém como instrumento incontornável da interpretação da formação social brasileira para a sua superação revolucionária. Entretanto, a maré da contrarrevolução de fins dos anos 1980, que restaurou a produção capitalista nos países de economia planejada e nacionalizada, ditos socialistas, motivou ruptura essencial de Gorender com as posições por ele defendidas.. Recuo que fez par do terrível processo de retrocesso político-ideológico que envolveu milhares de intelectuais, políticos, lutadores sociais, etc. no Brasil e no mundo. Em 1999, já com 76 anos, publicou o livro Marxismo sem utopia, pela Ática. O trabalho materializou espécie de salto em direção ao passado, que retomou a ótica revisionista defendida, por ele e pequeno grupo de dirigentes comunistas, entre os quais Mário Alves, sob a inspiração de Luís Carlos Prestes e da aceleração colaboracionista do PCURSS, quando da Declaração de Março de 1958. Um enorme retrocesso produzido em idade tardia, que tornou e torna ainda mais difícil a imprescindível compreensão da importância de sua produção pela esquerda revolucionária brasileira e latino-americana.
Mário Maestri é historiador e professor do programa de pós-graduação em História da UPF, RS. E-mail. maestri@via-rs.net
Entrevista concedida à jornalista Patrícia Benvenuti do
Jornal Brasil de Fato, 3/02/2013.
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