A frágil narrativa sobre os campos de concentração na Chechênia

A frágil narrativa sobre os campos de concentração na Chechênia

Com o início da Copa do Mundo de futebol na Rússia, o mundo todo tem voltado os olhos para o país de maior extensão territorial do planeta. É uma oportunidade para desvendar as características de uma sociedade estranha ao mundo ocidental. Obviamente, há interesses que movem e direcionam esses olhares.

Eduardo Vasco, Pravda.Ru

Envolvida em uma nova guerra fria com os Estados Unidos e países aliados, a Rússia tem sido alvo de sistemáticas campanhas políticas, econômicas e midiáticas. Uma delas é a repercussão de supostos campos de concentração para homossexuais na República da Chechênia.

A primeira - e amplamente difundida - notícia que se tem relacionada a esse caso foi publicada em 1º de abril de 2017 no jornal Novaya Gazeta, de oposição liberal ao governo do presidente Vladimir Putin. A reportagem denunciava uma suposta "detenção em massa" de mais de 100 cidadãos LGBT, inclusive com casos de execução, na Chechênia.

As "provas" do semanário russo são um número não revelado de testemunhas anônimas (poderia ser apenas uma testemunha ou dezenas, o periódico não informa) e uma mensagem em um grupo da rede social Vkontakt (VK) de um dos integrantes sobre a suposta perseguição, tortura e assassinato de LGBTs na região autônoma. Segundo o Novaya Gazeta, as informações foram confirmadas por diversos órgãos oficiais da Chechênia e por ativistas locais.

 

Entretanto, o governo checheno e as autoridades russas negaram saber da existência de tais prisões e crimes. As autoridades foram aos locais onde tais violações dos direitos humanos teriam ocorrido, com assistência de instituições humanitárias, e não encontraram nenhuma prova nessas localidades.

 

No mês seguinte, o presidente da República da Chechênia, Ramzan Kadyrov, convidou publicamente os líderes de Alemanha e França, Angela Merkel e Emmanuel Macron, a visitarem a região para tirarem suas próprias conclusões sobre o caso. União Europeia, Estados Unidos e as organizações de direitos humanos Human Rights Watch e Anistia Internacional (financiadas por Estados ocidentais) haviam condenado as supostas ações criminosas e discriminatórias.

 

A campanha internacional contra os alegados "campos de concentração" de homossexuais na Chechênia rapidamente se disseminou, com um roteiro semelhante a outras que buscam "denunciar" e "pressionar" governos ditos autoritários ou ditatoriais, invariavelmente em atrito com os interesses do governo e do poder econômico estadunidenses.

 

Após publicar a polêmica reportagem, a jornalista do Novaya Gazeta concedeu uma entrevista a um programa da rede britânica BBC, de algum ponto do planeta fora da Rússia (teria fugido do país temendo represálias). Quantas vezes não vimos "vítimas", "perseguidos" ou mesmo "opositores" de regimes inimigos do Ocidente aparecendo nas TVs e jornais de grande público, contando suas histórias dramaticamente fantásticas, frequentemente recebendo um belo cachê por suas "revelações"?

 

Elena Milashina disse na entrevista que eram quatro as "prisões secretas", duas delas em Grozny, capital da Chechênia com mais de 291 mil habitantes. É de estranhar que um governo instale duas prisões secretas de tortura e assassinato em uma cidade como essa, ainda mais com uma grande presença de jornalistas do mundo todo que estão cobrindo a preparação da seleção do Egito para os jogos do Mundial em Grozny.

 

Embora a reportagem original não tivesse falado em "campos de concentração", foi essa a designação dada para os supostos locais pela imprensa global, sempre sem investigações e baseadas apenas em "testemunhas anônimas" ou relatórios de ONGs de origem obscura. A "fonte" do diário inglês The Guardian, por exemplo, era uma aparente vítima da perseguição na república russa, não identificada por seu verdadeiro nome e que não está mais no país.

 

Igor Kochetkov, porta-voz da ONG russa LGBT Network, disse à reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, que gays fogem da Rússia porque famílias estão matando seus próprios parentes homossexuais. Esta ONG é parceira de outras ONGs internacionais financiadas por governos europeus e por Washington. Entre elas, destaca-se, além da Anistia Internacional, a Freedom House, um braço do Estado norte-americano (tal como o NED ou a USAID) que tem financiado grupos opositores e a subversão em países como Iugoslávia, Cuba, Venezuela e Ucrânia.

 

Por sua vez, a Public Radio International publicou um relatório a partir das "denúncias" do Novaya Gazeta, intitulado "Gays na Chechênia: Detidos, torturados e assassinados". Esta mídia pública estadunidense tem como principais financiadores a Fundação Bill & Melinda Gates e a Fundação MacArthur, entre outros.

 

A preocupação parece ser realmente espalhar propaganda, ao invés de apurar os fatos. A mídia internacional que está em Grozny para a Copa do Mundo, assim como a dupla Merkel-Macron, poderiam ter organizado um trabalho de campo para comprovar ou refutar esse boato.

 

Aliás, logo quando o assunto se tornou conhecido no mundo todo, a Rússia se dispôs a abrir passagem para a investigação da imprensa internacional. Na época, questionada por um jornalista finlandês sobre os supostos crimes contra LGBTs na Chechênia, a porta-voz do Ministério do Exterior russo, Maria Zakharova, o convidou a ir à região investigar o caso. Porém, o jornal Yle, onde o repórter trabalhava, proibiu a viagem.

 

"Por acaso tem medo de sair de seu mundo virtual e trabalhar 'sobre o terreno'? Depois de tudo, para um jornalista, o mais terrível é admitir a si próprio o seu pensamento unilateral, sua parcialidade, a apresentação consciente de informação falsa", questionou Zakharova em sua conta no Facebook.

 

Abordado pelo Novaya Gazeta, até mesmo o advogado, ativista LGBT (líder do projeto GayRussia.ru) e opositor de Putin, Nikolai Alekseev, acusou o jornal de "especular com informação não verificada, operar com fatos infundados e que ele [Alekseev] pessoalmente não tem conhecimento de tal perseguição e as consequências de suas ações".

 

Os pretensos campos de concentração para homossexuais são algo "sem precedentes não só na Rússia mas na história mundial recente", disse aquele mesmo Kochetkov ao The Guardian. Justamente por ser algo tão absurdo e incomum, deveria levantar suspeitas sobre sua veracidade. Ao contrário, os meios de comunicação do mundo todo dão como certa a existência desses campos, sem provas, sem fotos, sem rostos nem vozes, cujas fontes são um jornal opositor e ONGs financiadas por governos adversários de Moscou.

 

No entanto, há outros lugares em que a comunidade LGBT é brutalmente oprimida, de maneira incontestável e comprovada, como na monarquia da Arábia Saudita. Mas não veremos campanhas sofisticadas de ONGs nem ampla cobertura midiática sobre isso, porque os sauditas são eternos e fiéis aliados dos EUA.

 

O fato é que o Ocidente está criticando a Rússia por supostos crimes e violações dos direitos humanos que ocorrem em seus próprios territórios e com cumplicidade das autoridades e da mídia de seus respectivos países. Além de tachar o governo russo de autoritário e repressor, difundem um estereótipo de intolerância e homofobia por parte da sociedade russa, escondendo assim os mesmos preconceitos predominantes em nossas próprias sociedades.

 

Foto: Marco Fieber/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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