Brasileiro e angolano traduzidos na Itália

Adelto Gonçalves

I

A Morlacchi Editore, de Perúgia, acaba de colocar nas livrarias da Itália a tradução da novela policial O caso do martelo (Il caso del martello) , do gaúcho José Clemente Pozenato, prefaciada e traduzida pelo professor Brunello De Cusatis, responsável pelas cátedras de Literaturas Portuguesa e Brasileira e de Línguas Portuguesa e Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade de Perúgia. A obra faz parte da coleção “Letteratura luso-afro-brasiliana”, dirigida pelo próprio De Cusatis e inaugurada em 2007 com o lançamento do livro de contos Fronteiras perdidas, contos para viajar (Frontiere perdute, racconti per viaggiare) , do angolano José Eduardo Agualusa, com tradução e glossário de Marco Bucaioni e apresentação de De Cusatis.

Com livros em edição bilíngüe português-italiano, a coleção deverá lançar nos próximos meses mais três obras: Il giorno in cui Paperino s´è fatta per la prima volta Paperina , do português João Melo, com tradução de Marco Bucaioni; Buona notte, signor Pessoa , do português Mário Cláudio, com tradução de Brunello De Cusatis; e Racconti , do gaúcho Sérgio Faraco, também com tradução de De Cusatis.

Numa coleção que pretende cobrir todo o mundo lusófono, mas com ênfase em autores das últimas gerações – que pouca ou nenhuma notícia têm recebido na Itália –, o Brasil vem representado, logo de início, por dois grandes autores gaúchos em razão do interesse do leitor italiano pelo Sul do Brasil, onde se concentra a maior população de oriundi fora da Itália, como observa De Cusatis na apresentação que escreveu para O caso do martelo: “Tradizioni e condizioni di vita delle ‘colonie’ italiane ne Il caso del martello do José Clemente Pozenato”. É de notar que, hoje, no Brasil, existem cerca de 25 milhões de descendentes de imigrantes italianos, metade dos quais se concentra no Estado de São Paulo e os demais no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

II

Filiado à tradição do romance negro, O caso do martelo, de José Clemente Pozenato, conta as peripécias de um delegado provinciano para chegar à autoria do assassinato de Nàne Tamànca, solteirão de mais de 60 anos, que vivia sozinho num lugarejo perto de Caxias. Quem matou Nàne Tamànca? – a resposta para essa questão leva o comissário Hilário Pasúbio a duvidar de tudo e de todos, até chegar a um final surpreendente, como em toda boa história policial que é capaz de prender a atenção do leitor até a última linha.

Na novela, o autor até reproduz na fala de seus personagens algumas expressões do dialeto vêneto, ao mesmo tempo em que faz uma descrição inesquecível não só da paisagem gaúcha como das pequenas comunidades em que se movimentam personagens ligadas à colonização italiana no Rio Grande do Sul.

José Clemente Pozenato nasceu em 1938 em Santa Teresa, no Estado do Rio Grande do Sul, povoado que se emancipou em 1992 de Bento Gonçalves, tornando-se município. A colonização nessa região iniciou-se em 1875, com a vinda de imigrantes italianos e poloneses que se instalaram às margens do rio Taquari. A ligação com outras cidades era feita, principalmente, pela navegação fluvial, meio pelo qual chegaram sucessivas levas de imigrantes. Esse certo isolamento, com certeza, ajudou as famílias de imigrantes do Nordeste da Itália a preservar as suas tradições.

Pozenato, porém, é filho de um imigrante italiano, Girolamo, que fez questão de romper com o seu passado. Nascido no Vêneto, em Nova Vicenza, ao se transferir para Conceição do Arroio, atual cidade de Osório, Girolamo casou-se com uma brasileira e fez o que, mais tarde, seu filho identificou como uma ruptura intencional com a cultura italiana.

Sem nunca ter ouvido do pai um palavra do dialeto vêneto, Pozenato viveu uma infância adaptada exclusivamente à realidade brasileira e, aos 12 anos, mudou-se para Caxias do Sul, onde entrou num seminário. Só mais tarde, já como professor de Literatura Brasileira da Universidade de Caxias do Sul, aprofundou-se no estudo da cultura italiana, interessando-se pelas tradições trazidas pelos seus ascendentes italianos que se estabeleceram no Sul do Brasil.

Sua carreira literária começou em 1967 com a publicação de um livro de poesias, Matrícula, que dividiu com Oscar Bertholdo, Jayme Paviana e Ary Trentin. Em 1993, já grande conhecedor da cultura de suas origens paternas, publicou outro livro de poemas, Cantos rústicos / Cànti rùsteghi, em português e em dialeto vêneto. Sua obra poética completa até 2000 foi publicada em Mapa de viagem.

Como estudioso do movimento literário, Pozenato publicou, em 1974, O regional e o universal na literatura gaúcha, reunindo textos saídos em jornais e revistas especializadas. Foi em 1985 que publicou a novela policial O caso do martelo, que teve uma adaptação para a televisão de muita repercussão. O sucesso, porém, veio mesmo com o romance histórico O quatrilho, publicado em 1985 e, mais tarde, transposto para o cinema pelo diretor Fábio Barreto. Em 1996, o filme concorreu ao Oscar como o melhor longa-metragem estrangeiro.

Em 1989, Pozenato teve editado A cocanha, segundo romance policial de uma trilogia histórica que se completou em 2006 com A babilônia. Versátil, ainda publicou dois livros de literatura infanto-juvenil, O jacaré da lagoa (1999) e Pisca-tudo (2001). Cronista do jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, reuniu parte de suas crônicas no volume Conversa solta, de 1999. Em 2000, publicou pela editora Mercado Aberto, de Porto Alegre, o romance O caso do e-mail.

Pozenato, membro da Academia Rio-grandense de Letras e da Academia Sul-Brasileira de Letras, recebeu a medalha da Ordem do Cavaleiro de Mérito da República Italiana, entregue pelo cônsul-geral da Itália em Porto Alegre em 2008.

III

José Eduardo Agualusa nasceu em 1960, em Huambo, região central de Angola, mas é descendente de portugueses por parte de pai e de brasileiros pelo lado materno. Viveu até a juventude em Luanda e mudou-se para Lisboa, onde estudou no Instituto Superior de Agronomia. Morou também no Recife e no Rio de Janeiro e, hoje, alterna residência entre Luanda e Lisboa, o que lhe dá certa condição de nômade, como assinalou De Cusatis na apresentação que escreveu para Frontiere perdute. Em 2006, fundou no Rio de Janeiro, com Conceição Lopes e Fátima Otero, a editora Língua Geral, que publica exclusivamente autores de língua portuguesa.

Além disso, é jornalista profissional há largos anos, tendo feito reportagens em vários cantos do mundo, inclusive na América Latina, o que se reflete nos 17 relatos curtos reunidos em Fronteiras perdidas (edição original: Dom Quixote, Lisboa 1999), dos quais um se passa em Portugal, três no Brasil, nove em Angola e os demais em outras partes do mundo.

No texto introdutório, ao ressaltar o nomadismo e a multiculturalismo da obra de Agualusa, De Cusatis compara-o a dois nômades da literatura portuguesa: o romancista Eça de Queirós (1845-1900), que como cônsul viveu em Havana, Newcastle-on-Tyne e Bristol (Inglaterra) e Paris; e o poeta Ruy Cinatti (1915-1986), que, nascido em Londres, foi criança para Lisboa onde também se formou em Agronomia, antes de virar secretário do governador de Timor, onde viveu durante alguns anos após a Segunda Guerra Mundial, e estudar na Universidade de Oxford, onde se doutorou, em 1961, em Antropologia Social e Etnografia.

Um dos contos de Fronteiras perdidas mais bem acabados é “Plácido Domingo contempla o rio, em Corumbᔠem que um antigo mito da luta pela independência de Angola conta, no amargor da velhice, que o que havia sido fora mesmo um agente infiltrado da Pide, a polícia política do regime fascista português, entre as forças que se batiam pelo fim do colonialismo. E que o avião que seqüestrara e desviara para Kinshasa, visto por todos como um golpe fatal no colonialismo, não passara do cumprimento de uma missão que tinha por objetivo infiltrá-lo nas estruturas do MPLA, a facção majoritária que lutava pela independência.

Apanhado de surpresa pela mudança de regime político em Portugal, Plácido Domingo optara pelo silêncio e por uma retirada de cena que o levara a Corumbá, às margens do rio Paraguai, na fronteira com a Bolívia. Ao contrário de outros, que também infiltrados, com a queda do regime salazarista e com a separação, mantiveram em oculto a condição de infiltrados e continuaram ao lado dos comunistas. E até ocuparam posições-chaves no governo dos vencedores. Por esta amostra, já se pode constatar a qualidade excepcional da prosa de Agualusa.

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IL CASO DEL MARTELLO, de José Clemente Pozenato Tradução de Brunello De Cusatis. Perugia-Itália: Morlacchi Editore, 193 págs., 2008.

FRONTIERE PERDUTE: RACCONTI PER VIAGGIARE, de José Eduardo Agualusa. Apresentação de Brunello De Cusatis, tradução e glossário de Marco Bucaioni. Perugia-Itália: Morlacchi Editore, 135 págs., 2007.

E-mail: [email protected]

Site: morlacchilibri.com

Foto: José Eduardo Agualusa

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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