Sangue e Champagne

Sangue e Champagne *

Uri Avnery**


NÃO HÁ quem não fale bem da profissão na qual se destaque.


Se alguém perguntar a qualquer israelense, nas ruas, qual a área de empreendimento em que Israel destaca-se, quase com certeza ouvirá como resposta: hi-tech. E, sim, Israel alcançou alguns sucessos impressionantes nesta área. Parece que não passa um dia sem que alguma empresa israelense, destas que nascem em fundo de garagem, seja vendida por centenas de milhões. O pequeno Israel é um dos gigantes entre as potências hi-tech do mundo.


Mas há um campo em que Israel não é apenas um dentre vários gigantes, mas o incontrastável gigante Número Um: liquidações. Esta semana, outra vez, ficou provado que é.


O verbo lekhassel em hebraico – liquidar – em todas as formas gramaticais, atualmente domina todos os discursos públicos em Israel. Professores respeitáveis debatem, com solenidade acadêmica, quando liquidar e quem liquidar. Generais de pijama discutem com zelo profissional as tecnicalidades da “liquidação”, regras, métodos. Políticos safos competem entre eles para definir o status dos adversários a serem “liquidados”.


DE FATO, há muito tempo não se via tal orgia de júbilo e auto-elogio na mídia israelense, como esta semana. Todos os repórteres, todos os colunistas, todas as celebridades políticas instantâneas, todas as celebridades televisivas ainda mais instantâneas, na televisão, no rádio e nos jornais, flamejavam de orgulho. Conseguimos! Deu certo! "Liquidamos” Imad Mughniyeh!


Era um "terrorista". Não qualquer terrorista: era mestre terrorista! Super-terrorista! Arqui-terrorista! O rei dos terroristas! A estatura do homem crescia de hora em hora, até alcançar proporções gigantescas. Comparado a ele, Osama Bin-Laden virou principiante. A lista de explosões que planejou aumentava a cada noticiário, a cada nova manchete.


Não há e jamais houve outro como ele. Viveu anos escondido. Mas os bons rapazes de Israel – muitos, muitos bons rapazes de Israel – nunca o esqueceram. Trabalharam dia e noite, semanas, meses, anos, décadas, até encontrá-lo; sabiam mais sobre ele que “seus melhores amigos, mais do que ele sabia dele mesmo” (palavras citadas verbatim, de um respeitado colunista do jornal Haaretz, sapateando sobre um cadáver, como seus colegas).


Sim, um colunista ocidental, estraga-festa, disse, pelo canal Aljazeera, que Mughniyeh desaparecera do noticiário porque deixara de ter importância, que seus grandes dias de terrorismo ficaram no passado, nos anos 80 e 90, quando seqüestrou um avião e pôs abaixo o quartel central da Marinha em Beirute e várias instituições israelenses em todo o mundo. Quando o Hizbullah converteu-se em Estado-dentro-do-Estado, com uma espécie de exército regular, ele teve – segundo esta versão – de sobreviver à própria inutilidade.


Mas… bobagens. Mughniyeh-pessoa desapareceu, e Mughniyeh-a-lenda assumiu seu lugar, um terrorista mitológico do tamanho do mundo, há muito tempo denunciado como "Filho da Morte” (quer dizer, alguém a ser assassinado), nas palavras, por televisão, de outro general-no-estaleiro. A "liquidação", neste caso, assumiu proporções imensas, sobrenaturais, muito mais importante que a Segunda Guerra do Líbano, na qual Israel não foi muito bem-sucedido. A “liquidação” alcançou o patamar da gloriosa operação Entebbe, ou patamar ainda mais alto.


Sim, a Bíblia ensina que “Se cair teu inimigo, não te alegres, se sucumbe, não rejubile teu coração, não suceda que, ao vê-lo, o Senhor se desagrade e desvie ele sua ira” (Provérbios, 24:17). Mas não era um inimigo qualquer, era um super-super-inimigo, e, portanto, o Senhor que desse um jeito de perdoar os israelenses por sapatearem cada vez mais, de talk-show em talk-show, de jornal em jornal, de discurso em discurso, e só faltou distribuírem doces e balões para as crianças, na rua – mesmo que o governo israelense negasse em voz baixa, quase em segredo, que Israel tenha tido algo a ver com a “liquidação” do homem.


Por coincidência quase inacreditável, a “liquidação” foi perpetrada poucos dias depois de eu haver publicado um artigo em que comentei a incompetência, a incapacidade dos poderes ocupantes para compreender a lógica interna das organizações de resistentes. A “liquidação” de Mughniyeh é caso exemplar. (Claro que Israel esqueceu que ocupou o sul do Líbano há alguns anos, mas isto nada alterou a relação entre as partes.)


Aos olhos dos líderes israelenses, a “liquidação” foi sucesso estrondoso. Israel "decapitou a serpente” (outra manchete do Haaretz). Infligimos terrível dano ao Hizbullah, dano irreparável. “Não foi vingança, foi ação preventiva”, nas palavras de outro repórter teleguiado (também no Haaretz). Um feito de tal magnitude, que arrastará consigo a inevitável vingança, por maior que seja o número de mortos.
Aos olhos do Hizbullah, a coisa é muito diferente. A organização ganhou mais um nome, num grande e precioso patrimônio: um herói nacional, um nome que hoje corre com o vento, do Irã ao Marrocos. Mughniyeh “liquidado” vale mais que Mughniyeh vivo, fosse qual fosse o seu status real no fim da vida.


Basta lembrar o que aconteceu em Israel em 1942, quando os britânicos “liquidaram” Abraham Stern (codinome Ya'ir): de sua morte nasceu o grupo Lehi (codinome Stern Gang, ‘os invencíveis’), para tornar-se, bem se pode dizer, a mais eficiente organização terrorista do século 20.


Portanto, não interessa ao Hizbullah diminuir o status simbólico do liquidado. Ao contrário: Hassan Nasrallah, exatamente como Ehud Olmert, tem muito interesse em inflar este simbolismo o mais que possa.


Se o Hizbullah andou um pouco afastado das manchetes no mundo árabe, agora está de volta, em pleno fulgor. Todas as rádios árabes devotaram horas de programação ao “nosso irmão mártir comandante Imad Mughniyeh al-Hajj Raduan”.


Na luta pelo Líbano – principal batalha à qual Nasrallah dedica-se hoje –, o Hizbullah ganhou enorme vantagem. Multidões acorreram aos funerais, o que turvou o brilho do desfile-homenagem póstuma ao seu adversário, Rafiq al-Hariri. Em seu discurso, Nasrallah descreveu seus inimigos, sem meias palavras, como cúmplices no assassinato do herói, colaboradores desprezíveis de Israel e dos EUA; expulsou-os; mandou que se mudassem para Telavive ou Nova Iorque. Avançou mais um passo na luta para dominar a Terra dos Cedros.


E o mais importante: a revolta contra o assassinato e a honra inspirada no martírio mobilizarão outra geração de jovens, que se apresentarão para morrer por Allah e Nasrallah. Quanto mais a propaganda israelense infla a figura de Mughniyeh, mais jovens xiitas movem-se para seguir o exemplo do mártir.


A carreira do homem também se inscreve neste processo. Quando Mughniyeh nasceu, numa aldeia xiita no sul do Líbano, os xiitas eram desprezados, uma comunidade impotente e em frangalhos. Ele ligou-se ao movimento Fatah palestino que, naquele momento, dominava o sul do Líbano; chegou a ser um dos guarda-costas de Yasser Arafat (é possível que eu o tenha visto, quando encontrei Arafat em Beirute). Mas quando Israel conseguiu deslocar as forças do Fatah e elas saíram do Líbano, Mughniyeh ficou; e juntou-se ao Hizbullah, a nova força resistente que então começava a organizar-se, conseqüência direta e imediata da ocupação israelense.


ISRAEL HOJE está como aquela pessoa cujo vizinho do andar de cima deixou cair uma bota no chão. Israel está à espera de que a outra bota caia sobre sua cabeça.


Todo mundo sabe que o assassinato de Mughniyeh será vingado. Nasrallah prometeu vingança, e disse que pode acontecer em qualquer esquina do mundo. Já faz muito tempo que os israelenses acreditam muito mais em Nasrallah do que em Olmert.


As forças de segurança israelenses já começaram a emitir mensagens de alerta para quem tenha viagem marcada para o exterior – atenção total, todo o tempo, não falar com desconhecidos, não se reunir com outros israelenses, não aceitar convites não-habituais etc. A mídia amplificou estes avisos até a histeria. A segurança das embaixadas de Israel foi reforçada. Na fronteira norte, também já soou o alarme – apenas alguns dias depois de Olmert ter vociferado, no Parlamento, garantindo que a fronteira norte estaria hoje mais calma do que nunca.


Nenhum destes medos é injustificado. Todas as “liquidações” deste tipo, no passado, trouxeram, sempre, conseqüências terríveis:


– O exemplo clássico é, claro, a “liquidação” do predecessor de Nasrallah, Abbas Mussawi. Foi assassinado no sul do Líbano, em 1992, por atiradores em helicópteros Apache. Houve júbilo em Israel. O Champagne rolou. Para vingar Mussawi, o Hizbullah explodiu a embaixada de Israel e o centro comunitário judeu em Buenos Aires, em ação que teria sido planejada, como se diz hoje, por Imad Mughniyeh. Houve mais de 100 mortos. Resultado: para substituir um Mussawi já grisalho, lá estava um Nasrallah, muito mais sofisticado.


– Antes disto, Golda Meir ordenara uma série de “liquidações” para vingar a tragédia dos atletas israelenses em Munique (a maioria dos quais foram mortos por policiais alemães, na tentativa de evitar que fossem levados como reféns para a Argélia). Nenhum dos “liquidados” tinha qualquer coisa a ver com qualquer ofensa a Israel. Eram representantes diplomáticos da OLP, funcionários burocráticos, gente de escritório. O filme “Munich”, filme kitsch de Spielberg, mostra tudo. Resultado: a OLP fortaleceu-se e passou à situação de Estado-em-organização, e Yasser Arafat, pouco depois, voltou à Palestina.


– A “liquidação” de Yahyah Ayyash em Ghaza em 1996 é semelhante ao caso Mughniyeh. Neste caso, a arma usada foi um telefone celular convertido em bomba. E a figura de Ayyash cresceu e agigantou-se de tal modo que virou lenda, ainda vivo. Era conhecido como “o engenheiro”, por ser encarregado de preparar os explosivos usados pelo Hamás. Shimon Peres, que foi Primeiro Ministro depois do assassinato de Yitzhak Rabin, acreditava que a “liquidação” lhe traria popularidade e o reelegeria. Aconteceu o contrário: o Hamás reagiu com uma seqüência impressionante de homens-bomba e levou Binyamin Netanyahu ao poder.


- Fathi Shikaki, líder da Jihad Islâmica, foi “liquidado” em 1995 por um ciclista que o matou numa rua de Malta. Sua pequena organização não foi destruída; ao contrário, cresceu e organizou-se para ações de vingança. Hoje, é o grupo que faz chover Qassams sobre Sderot.


- Khaled Mash'al, líder do Hamás, estava sendo “liquidado” numa rua em Amã, com uma injeção de veneno. A “liquidação” foi descoberta, os “liquidadores” foram identificados, e um furioso Rei Hussein obrigou Israel a fornecer o antídoto que lhe salvou a vida. Os “liquidadores” israelenses foram trocados pelo Sheik Ahmad Yassin, fundador do Hamás, que estava preso em Israel. Resultado: Mash'al foi promovido; é hoje a principal cabeça política do Hamás.


– O próprio Sheik Yassin, paraplégico, foi “liquidado” num ataque com helicópteros, quando deixava uma mesquita, depois da reza. Antes, sobrevivera a um ataque falhado contra sua casa. Para todo o mundo árabe, tornou-se mártir e, desde então, serve de inspiração para centenas de ações do Hamás.

O DENOMINADOR COMUM entre todas estas e muitas outras ações é que elas não causaram qualquer dano às organizações dos “liquidados” e voltaram sobre Israel, como bumerangues. Todas estas ações provocaram terríveis respostas de vingança.


A decisão de promover uma “liquidação” é semelhante à decisão que levou ao início da II Guerra do Líbano: nenhum dos decisores dá qualquer atenção ao sofrimento da população civil – vítima, sempre, em todas as vinganças.


Por que, então, organizam-se e perpetram-se as “liquidações”?


Resposta de um dos generais aos quais se fez esta pergunta: “Esta pergunta não tem resposta certa”.


Estas palavras são pura afronta, pura arrogância: como alguém pode decidir entrar ou não entrar em guerra, se não sabe se a guerra tem ou não tem algum sentido?


Desconfio que a razão real que leva às “liquidações” é tanto política quanto psicológica. É política, porque as “liquidações” agradam à opinião pública em Israel. Sempre há júbilo, depois de cada “liquidação”. Quando a vingança desaba sobre nós, a opinião pública (e a mídia) não vêem a relação que há entre a “liquidação” e a resposta. Vêem-se as coisas como se fossem separadas. Pouca gente tem tempo e inclinação para refletir, quando todos à volta ardem de fúria imediatamente depois de cada ação criminosa contra Israel.
No caso presente, há também uma motivação política extra: o exército não consegue fazer parar os Qassams, nem tem qualquer desejo de atolar-se na re-ocupação da Faixa de Ghaza, com todos os riscos a que se exporá lá. Uma “liquidação” sensacionalista é alternativa mais simples.


A razão psicológica também é clara: dá prazer. É verdade, sim, que “liquidações” – como o nome diz – fazem mais sentido no submundo, do que nas forças de segurança de um Estado. Mas “liquidar” é tarefa desafiante e complexa, como nos filmes sobre a Máfia, que dá muito prazer aos “liquidadores”. Ehud Barak, por exemplo, é liquidador desde o início de sua carreira militar. Quando a “liquidação” termina bem, os carrascos erguem as taças e brindam com Champagne.


Não se pode misturar sangue, Champagne e loucura: o coquetel embriaga e causa euforia instantânea. Mas é tóxico.


**Uri Avnery,85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).


* URI AVNERY, 17/2/2008, “Blood and Champagne”. Em Gush Shalom [“Grupo da Paz”], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1203196052/ .

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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