Um conto (quase) inédito de Machado e outras preciosidades

 Adelto Gonçalves (*)

I

Escrito por Machado de Assis (1839-1908) para a revista A Estação e publicado originalmente em seis folhetins (30 de julho, 15 e 30 de agosto, 15 e 30 de setembro e 15 de outubro de 1879), o conto “Um para o outro” foi dado como perdido por muitos especialistas. Sabia-se de sua existência, mas pesava contra a sua localização que não constasse do acervo de obras raras nem de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que seria o local natural onde deveria estar. Jamais incluído em qualquer antologia ou em edição de volume, foi preciso um trabalho de investigação que levou mais de seis anos para que o professor e pesquisador literário Mauro Rosso o localizasse depois de quase 130 anos de “desaparecimento”.

Foi no acervo pessoal de José Galante de Souza (1913-1986), professor, pesquisador e autor de obras fundamentais para a compreensão do pensamento machadiano, como Bibliografia de Machado de Assis e Fontes Para o Estudo de Machado de Assis, que Rosso encontrou o que procurava em meio a recortes, excertos, fragmentos e anotações variadas. Como pesquisador, Galante trabalhou para o Instituto Nacional do Livro e na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, o que explica por que seu acervo está lá, embora ainda em fase de organização.

Dessa maneira, “Um para o outro” encontra-se agora, finalmente, à disposição do público-leitor, ao lado de outros textos de Machado de Assis que dormiam o sono solto dos arquivos cariocas, inclusive o primeiro publicado pelo autor, “Três tesouros perdidos”, localizados e reunidos após exaustiva investigação em Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (Rio de Janeiro: PUC-Rio/São Paulo: Edições Loyola, 2008). Além do conto “desaparecido” e daquele que marca a estréia do autor, há mais dois de restrita ou esparsa publicação: “Uma partida”, nunca antes publicado na íntegra em coletâneas contemporâneas; e “Bagatela”, sobre o qual pairam dúvidas quanto a ser tradução de uma narrativa originalmente em francês ou criação machadiana.

As narrativas curtas de Machado de Assis, porém constituem apenas a primeira parte do livro, depois de uma alentada introdução de 20 páginas do organizador. O segundo bloco reúne informações detalhadas sobre todos os 226 contos escritos pelo autor, numa inédita reconstrução bibliográfica da obra machadiana em matrizes-raisonnés. Em outras palavras: para quem desconhece, é preciso que se diga que raisonné, como explica Rosso, é a listagem descritiva e anotada da bibliografia de um ou vários autores, podendo organizar-se por áreas temáticas.

Os contos estão listados em ordem alfabética de seus respectivos títulos, o que permite um retrato completo, peça por peça, dos veículos e datas de publicação original e das sucessivas antologias e coletâneas, seqüenciado pela catalogação em ordem cronológica (ano de publicação original), por periódico (jornal, revista ou almanaque), por coletâneas e – documentação inédita, porque completa – por pseudônimos e as várias assinaturas utilizadas à exaustão por Machado de Assis.

Se, como observou no prefácio Eliana Yunes, ensaísta, crítica e professora de literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a grande contribuição do livro está nessa reconstrução do histórico bibliográfico dos contos machadianos consubstanciado nas matrizes-raisonnés, não se pode deixar de ressaltar que Rosso desenvolveu um trabalho de fôlego e paciência que revela um pesquisador extremamente dedicado e atento. E oferece subsídios para novos estudos sobre a evolução literária machadiana e seu desenvolvimento como criador de narrativas curtas ao longo de quase cinco décadas, ao mesmo tempo em que mostra textos importantes na produção machadiana que ainda não haviam sido levados em conta até aqui por estudiosos e especialistas.

Sem contar que promove algumas correções, ao excluir, por exemplo, “O sermão do diabo” e “A cena do cemitério” do elenco de contos para defini-los como crônicas, além de advertir para a possibilidade de que “Madalena”, que sempre foi tido como conto, embora leve mais o jeito de novela, seja tradução de algum original em francês de autor não identificado. Já quanto a “Bagatela”, para o investigador, os indícios são de que tenha saído mesmo da pena do chamado bruxo do Cosme Velho, embora já tenha sido apontado como tradução.

II

É claro que a maior atenção recai sobre “Um para o outro”, publicado em 1879, ano do auge do auge da inflexão machadiana dentro de seu processo de evolução literária. É, porém, texto que se mantém no diapasão dos valores estético-literários do Romantismo, tanto em sua forma como em sua estrutura, embora antecipe uma visão de mundo que Machado de Assis desenvolveria na maioria de seus contos e romances da fase realista: “a do conformismo dos amores não-realizados e a aceitação/submissão dos protagonistas ao destino que lhes fora traçado”, como bem observa Rosso.

De assinalar é que a edição deste e dos demais contos vem acompanhada de notas de rodapé assinadas pelo compilador que são de extrema valia para a compreensão de alguns detalhes datados que ao leitor comum passariam despercebidos, tal a distância do tempo que nos separa dos acontecimentos subjacentes aos fatos narrados.

III

Para o segundo semestre de 2009, Rosso promete lançar pela Editora PUC-Rio/Edições Loyola Queda que as mulheres têm para os tolos: Machado de Assis, o subterfúgio, o feminino, a transcendência literária, em que sustenta ser uma criação original de Machado -- “inspirada” na obra De l´amour des femmes pour les sots, do belga Victor Henaux, ao contrário do que garante Ana Cláudia Suariani da Silva, que estabeleceu o texto na edição publicada em 2008 pela Editora da Unicamp.

É de notar que foi o pesquisador francês Jean Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis - 1839-1870 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971), tradução de Marco Aurélio de Moura Matos de sua tese de doutorado La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870): essai de bibliographie intellectuelle (Université de Poitiers, 1969), quem, ultimamente, sugeriu que Machado não era autor de Queda que as mulheres têm para os tolos, embora o livro publicado em 1861 pela Tipografia de F.Paula Brito, do Rio de Janeiro, deixasse claro na capa que se tratava de uma “traducção do snr. Machado de Assis”, sem se dignar a apontar o nome do autor.

Para Rosso, Machado extraiu dessa obra tema e enfoque, mas construiu sua própria escrita. “Mesmo convicto de ser uma criação de Machado, não desprezo a hipótese de se tratar de uma tradução, tanto que discorro sobre a atividade tradutória de Machado e o quanto ele foi antecipador, precursor inclusive de modernos conceitos de teoria literária”, adianta Rosso em mensagem a este articulista.

Para ele, que Queda que as mulheres têm para os tolos seja ou não tradução é o que menos importa. “O que vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir, o modelo de uma teoria amorosa exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872) e, finalmente, na opera-mater Dom Casmurro (1899)”, diz.

Afirma Rosso que Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representatividade especial e peculiar, pois serviu de inspiração a Machado para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. “Todos esses textos têm por modelo essa teoria amorosa -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ideologia da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui um dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana”, acrescenta.

Para Rosso, tenha sido tradução ou não — em ambos os casos, manifesto eloqüente de criatividade de Machado –, Queda que as mulheres têm para os tolos “ultrapassa os limites de seu próprio significado histórico, como obra debutante e reveladora para, estabelecendo elos e decorrências na atividade tradutória, na criação ficcional, na inspiração teatral, abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as possibilidades de análise, interpretação e reflexão, contextualizar-se na fértil e enorme seara da genialidade do autor como uma das expressões mais proeminentes de verdadeira transcendência literária”.

A propósito do livro preparado por Ana Claudia Suriani para a Editora da Unicamp, Rosso observa que, na verdade, não deveria ter levado aquele título, mas sim Do amor das mulheres para os tolos, pois é este o título original da obra do belga Victor Hénaux. “Ao dar à obra o título machadiano, Suriani tem em mira comprovar que teria sido efetivamente uma tradução de Machado: Queda que as mulheres têm para os tolos é uma coisa, Do amor das mulheres para os tolos é outra”, contesta.

IV

Mauro Rosso é professor e pesquisador de literatura brasileira, ensaísta, autor de Uma proposta para a prática pedagógica (2002); São Paulo, a cidade literária (2004); e Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar, edição comentada (2005). Colaborou na coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista crônicas, organizada por Gustavo Franco (Brasília, Senado Federal, 2007). Atualmente, está empenhado na publicação pelo Senado Federal do primeiro dos três volumes da antologia Machado de Assis e a política: crônicas, que reunirá no total 384 textos.

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CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: RELICÁRIOS E RAISONNÉS, de Mauro Rosso. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 224 págs., 2008, R$ 35. E-mail: [email protected] Site: www.loyola.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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