Camilo Pessanha: ‘Clepsidra’ em edição especial

Adelto Gonçalves (*)

                                           I

Depois de lançar, em 2005, A imagem e o verbo: fotobiografia de Camilo Pessanha (Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau e Instituto Português do Oriente, 299 págs.), o pesquisador literário Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal, acaba de colocar ao alcance do leitor Clepsidra e outros poemas, também de Camilo Pessanha. Não se trata, porém, de só mais uma edição de Clepsidra, livro de poemas tantas vezes reeditado depois de seu lançamento em 1920, mas de uma edição especial em papel couché, com um prefácio altamente esclarecedor de Daniel Pires, responsável também pela fixação do texto, acompanhado por belas ilustrações a cores do artista Rui Campos Matos.

Além das 30 composições da Clepsidra de 1920, que, de alguma forma, Pessanha avalizou, Pires juntou mais 26, que haviam sido excluídas pelo próprio poeta por considerá-las de menor valia, que eventualmente lhe traziam reminiscências familiares traumáticas, podendo, neste caso, estar, por exemplo, o paradigmático “Branco e Vermelho”, ou por não se enquadrarem na dinâmica daquela obra, caso concreto de “San Gabriel” e de “Porque o melhor enfim”, como se lê no prefácio.

Para tanto, Pires preferiu colocar os poemas que não constam da primeira edição de Clepsidra (Lisboa: Lusitânia, 1920) por ordem cronológica de composição ou, na impossibilidade desta, de publicação. Neste particular, diz o estudioso, foi fulcral a consulta da edição crítica do professor Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estabeleceu o texto e fez introdução crítica, notas e comentários para Clepsidra – poemas de Camilo Pessanha (Campinas: Unicamp, 1994; Lisboa, Relógio d´Água, 1995), obra que Pires considera, com justa razão, fonte obrigatória dos exegetas da obra lapidar do autor de “Inscrição”.

                                           II

Não há como descobrir a poesia de Camilo Pessanha sem analisar a obra do poeta como reflexo de sua vida e do contexto histórico em que viveu, como recomenda Massaud Moisés em Literatura: Mundo e Forma (São Paulo: Cultrix, 1982, p.26), ao lembrar que “a tônica recai sempre sobre o texto, mas se amplia o campo de perquirição quando se conhece as relações com o meio exterior em que foi gerado”.

Em seu prefácio, Pires observa que a permanente falta de saúde ajuda a compreender as razões por que Camilo Pessanha assina uma obra que se caracteriza por sua brevidade e por não ter sido planejada com rigor, gradualmente disseminada pela ação de amigos e admiradores. E que majoritariamente pertence aos seus verdes anos, de sua época de estudante em Coimbra.

Apesar disso, não há como deixar de reconhecer o fascínio que a arte poética de Pessanha exerceu sobre os poetas portugueses de seu tempo, especialmente aqueles ligados ao Modernismo. Um fascínio que se transformou logo em paixão sem reservas alimentada pelo mito do poeta distante, com o seu vício pelo ópio, a sua solidão, o seu gênio, perdido na longínqua Macau.

A vida de Camilo Pessanha foi sempre marcada por sua pouca adaptação ao meio social. Nascido de uma aventura de um estudante de Direito, aparentemente, o poeta nunca se conformou com a situação de ver a sua mãe sempre na condição de criada da casa de seu pai, um juiz que chegou à alta hierarquia do Supremo Tribunal de Lisboa. E essa dor da infância ele levou para poemas em que deixa claro o seu amor extremoso pela mãe.

Mas isso não o impediu de repetir a atitude do pai quando, já instalado em Macau como professor de ensino secundário, manteve uma relação de concubinato com uma chinesa, de quem teve um filho. Mais tarde, com a morte da amante, continuou a relação de concubinato com a filha da primeira mulher com outro homem.

Atitude semelhante teve o filho de Camilo Pessanha que, ao manter uma relação com uma senhora portuguesa, gerou uma filha, Maria Rosa. Segundo essa neta do poeta, seu pai não se casou com sua mãe a pedido do próprio Pessanha à nora “porque ele não prestava”, como se pode ler numa entrevista feita por Mário Viegas com Celina Maria Veiga de Oliveira, investigadora da vida do poeta, e publicada no Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa, nº 422, de 7 a 13 de agosto de 1990.

                                        III

Essa rápida digressão serve para mostrar um pouco da personalidade conflituosa do poeta que, nascido em 1867, em Coimbra, cedo tirou o curso de Direito e, logo, em 1894, partiu para um exílio voluntário em Macau, a minúscula colônia portuguesa do Oriente que ele chamava de “o chão antipático do exílio”. Ali viveu 30 anos exercendo as atividades de professor, advogado e juiz, com breves retornos a Portugal para tratamento de saúde.

Ali foi redator de dois jornais progressistas, publicando artigos de opinião e poemas. Dedicou-se também ao estudo metódico da língua e da cultura sínica. Retornou a Portugal em 1905, em condições de saúde precárias, e, em 1908, teve de se submeter a uma operação para extirpar um tumor no Hospital do Carmo, do Porto. Recuperado, pôde conviver em intensas tertúlias nos cafés de Lisboa com Fernando Pessoa, Carlos Amaro e outros intelectuais, como assinala Daniel Pires no prefácio desta edição de Clepsidra.

Seu regresso a Macau deu-se a 15 de janeiro de 1909, para reassumir o cargo de conservador do Registro Predial e lecionar no liceu local. Dessa época, é também a sua participação numa loja maçônica, onde chegou a “venerável”. De 1909 a 1915, diz Pires, Pessanha cultivou pouco a poesia. E, quando o fez, foi para traduzir as famosas Oito Elegias Chinesas, poemas da dinastia Ming, que foram publicadas em 1914 no jornal macaense O Progresso.

A 15 de setembro de 1915, Pessanha partiu pela última vez de Macau para Portugal, retomando, então, a vida boêmia pelos cafés de Lisboa, como assinala Pires no prefácio. Dessa época é o convívio intenso que teve com a escritora Ana de Castro Osório, recém-viúva. Como se sabe, a paixão nunca correspondida por Ana de Castro Osório teria sido a origem de seu exílio voluntário em Macau. Jamais, porém, Pessanha deixou de manter relações de amizade e correspondência com Ana, por cuja editora, a Lusitânia, saiu Clepsidra em 1920, seis anos antes de sua morte, por empenho também de João de Castro Osório, filho da escritora.

Personalidade estranha e apaixonada, figura esquálida, de saúde frágil e longas barbas negras, o exótico Pessanha tornou-se conhecido pela maneira apocalíptica como declamava seus poemas nos cafés da Baixa lisboeta, durante as suas estadas em Portugal. Alma dividida, sonhava com Portugal quando estava na colônia e com Macau quando estava em Lisboa.

                                        IV

Quem lê Clepsidra descobre logo que Camilo Pessanha não é um poeta de idéias, mas de imagens. Como poeta abstrato por excelência, cerebral, essencialmente intelectual, tem a obsessão pela musicalidade do verso, o que o coloca entre os maiores representantes do Simbolismo português.

Afinal, um dos principais objetos do Simbolismo é insinuar coisas, em vez de formulá-las ostensivamente, procurando produzir, com a poesia, efeitos semelhantes aos da música, na definição do crítico norte-americano Edmund Wilson em O castelo de Axel (São Paulo: Cultrix, 1985, p.22)

E Pessanha faz exatamente isso: lança mão das imagens como se estas fossem dotadas de um valor abstrato, como o de notas e acordes musicais. É o que se vê nos poemas de Clepsidra. Esses recursos sonoros – homofonias por meio de rimas, assonâncias, aliterações etc – são recursos tradicionais da poesia metrificada que, com o Simbolismo, “adquiriram renovada importância e sofreram um processo de intensificação, em virtude da busca de efeitos sinestésicos e de efeitos musicais”, como diz Antonio Candido em O estudo analítico do poema (São Paulo: Terceira Leitura, FFLCH/USP, 1987, p. 64). É o que poderá comprovar quem tiver a sorte de ter em mãos um exemplar desta edição feita com tanto esmero e capricho.

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CLEPSIDRA E OUTROS POEMAS, de Camilo Pessanha, com prefácio e fixação do texto por Daniel Pires e ilustrações de Rui Campos Matos. Lisboa: Livros Horizonte, 97 págs., 2006. Site: www.livroshorizonte.pt

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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