Pura Guerra em Teerã

Acabo de passar uma semana frenética em Teerã. Antes de partir, tomei uma decisão consciente: só um livro na mochila. Concentração máxima. Acabei por escolher Pure War,* na reedição da editora Semiotext(e), Los Angeles, do clássico de Paul Virilio, de 1983, que apanhara há alguns dias na [livraria] Foyles, em novo endereço, em Londres.

8/10/2014, Pepe Escobar, Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MID-01-081014.html

Para correspondente itinerante, ir ao Irã é sempre extraespecial. Conseguir aprovação no visto de imprensa quase sempre demora eras. Era minha sexta viagem - e não tinha o visto. Só um número, atado a um visto no aeroporto. Até o último minuto, achava que seria deportado do Aeroporto Internacional Imã Khomeini - de volta a Abu Dhabi, aquela que, hoje, finge que bombardeia O Califa. Então, um pequeno milagre: sala VIP, visto em 10 minutos e depois disso só me lembro de já estar zunindo por uma Teerã completamente deserta, ao raiar do sol de uma 6ª-feira, passando pela frente de uma estação espacial psicodélica pintada de verde que é o santuário do Imã Khomeini.

Por que Virilio? Porque foi o primeiro a conceitualizar a noção de que, com a explosão de uma guerra assimétrica, a Guerra Total tornou-se local - em escala global. Discorri sobre isso em meu livro de 2007, Globalistan e em meus escritos. Washington e Telavive ameaçam bombardear o Irã, há anos. Virilio foi o primeiro a dizer que a "paz" só faz estender a guerra por outros meios.

Maio de 1968 como teatro da mente - um teatro da imaginação. Quando a sociedade pôde ser uma obra de arte, uma performance, com as multidões na rua, como coro. A última reação criativa contra o consumismo. "Todo o poder à imaginação".

Bela manhã ensolarada, à frente do complexo do Ministério do Exterior. Uma exposição/instalação sobre a guerra Irã-Iraque - "imposta", como todos sabem. Um campo minado reconstruído; um mapa das nações que armavam Saddam; fotos de jovens combatentes/mártires que não teriam mais de 14 anos. Um teatro de rememoração dolorida. No final de 1978, Teerã também teve suas multidões nas ruas como coro - contra o xá. Khomeini foi reação contra o consumismo; mas foi "poder da imaginação"? E então, tudo foi engolido num teatro de crueldade - a tragédia da guerra "imposta".

Guerra no sentido jornalístico é uma delinquência nacional elevada à escala de conflito extremamente importante - É o equivalente dos "tumultos", como as antigas sociedades os chamavam. Já não se pode nem falar de guerras, são delinquências interestatais. É terrorismo de Estado.

Em Teerã, meus imensamente gentis anfitriões eram os organizadores de "Novo Horizonte: Conferência Internacional de Pensadores Independentes" [orig. New Horizon: the International Conference of Independent Thinkers]. Depois de muitas idas e vindas, o Ministério de Relações Exteriores acabou por também se envolver. A conferência distribuiu uma importante resolução, condenando o ISIS/ISIL/O Califa; o sionismo; a islamofobia, o sectarismo; e o apoio cego que Washington garante a qualquer tipo de ataque que Israel lance contra a Palestina: a delinquência nacional de Israel, ou terrorismo de Estado. A conferência também conclamou a uma maior cooperação e entendimento entre o Ocidente e o Islã: implica lutar contra as delinquências interestatais.

A melhor defesa é atacar; e para atacar você tem de ter ideias; no momento não há nenhuma ideia em circulação. A imaginação hoje está na imagem, e a imagem está no poder. Não há imaginação para nada, só para a imagem.

Tive de deixar um fabuloso jantar tradicional persa a céu aberto, para ir para os estúdios da Press TV para um debate com o notório conservador Daniel Pipes sobre ISIS/ISIL/Daesh. Surpreendentemente, concordamos mais do que eu esperaria. Bem, nem tão difícil, se se considera a 'estratégia' de nada-de-estratégia do governo Obama; uma imagem (bombas e Tomahawks), em luta contra outra imagem (o show de degola que O Califa editou cuidadosamente).

Enquanto isso, o discurso do presidente Hassan Rouhani na ONU continua a provocar ondas: "Extremistas ameaçam nossos vizinhos, recorrem à violência e derramam sangue". "Quem pode vencer é o povo da região", na luta contra O Califa. Rouhani não se referia exatamente aos jatos made in USA alegadamente usados pela coalizão dos sem noção/covardes do Conselho de Cooperação do Golfo; Casa de Saud, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e a Jordânia, membro-associado.

Em todas as conversas que tive, um consenso emerge; o vácuo de poder do pós-Choque e Pavor de 2003 e da ocupação levou à ascensão da al-Qaeda no Iraque e, dali, ao ISIS/ISIL/Daesh. Mas mesmo que Teerã e Washington possam ter flertado sobre movimento conjunto contra O Califa, Washington depois negou que quisesse ajuda e Teerã rejeitou tudo.

Ainda assim, o que Rouhani disse em New York continua ecoando todos os dias, por toda parte, em Teerã; armar o "novo" Exército Sírio Livre na Arábia Saudita, e logo lá, é como "treinar outro grupo de terroristas e enviá-los para lutar na Síria". E a "estratégia" de Washington está capacitando cada vez mais ditadores sunitas que fizeram carreira demonizando xiitas.

E então entrou em cena o outro Califa "não oficial", o neo-otomano Recep Tayyip Erdogan; nada de usar "território" ou "bases militares" da Turquia, para a "coalizão", se "os objetivos não incluírem a derrubada do regime de Bashar al-Assad." Quem precisa do Califa Erdogan para dar combate ao Califa Ibrahim? O major-general Qassem Suleimani, comandante da Força Iraniana Quds, pode fazê-lo; a fotografia dele, ao lado de guerrilheiros peshmergas curdos causou sensação em todo o Irã, quando exibida na Rede de Notícias da República Islâmica do Irã [orig. Islamic Republic of Iran News Network (IRINN)].

O cinema nos mostra o que é a nossa consciência. Nossa consciência é um efeito de montagem - é uma colagem. Só há colar, cortar e emendar. Assim se explica muito bem o que Jean-Francois Lyotard chama de desaparecimento das grandes narrativas. Sociedade sem classes, justiça social - ninguém mais acredita nelas. Estamos na era das micronarrativas, a arte do fragmento.

A alegria do parque Laleh - um parque persa riscado em todas as direções por gatos persas e exímios jogadores de voleibol e badminton e famílias empurrando carrinhos de bebê. É onde Arash Darya-Bandari, extraordinário medievalista, com muitos anos passados na Bay Area, dá-me curso intensivo sobre os detalhes de uma grande narrativa sobrevivente; o xiismo e o conceito de Khomeini de velayat-e-faqih. Em termos de Pura Não Guerra, tudo tem a ver, sempre, com justiça social. Por isso é ininteligível para o turbocapitalismo.

O parque como ágora; um jardim de delícias intelectuais. Praticamente todas as minhas principais conversas aconteceram em caminhadas por dentro ou à volta do parque Laleh. E então, uma noite, saí para uma caminhada solitária, e encontrei um filme/performance revolucionário, num palco improvisado, completado com uma trincheira e morteiros. Público de alguns homens solitários e algumas famílias espalhadas pela praça. O cinema, mantendo viva a consciência da guerra Irã-Iraque.

O fim da Contenção corresponde ao início da guerra de informação, conflito no qual a superioridade de informação é mais importante que a capacidade para infligir dano.

A Conferência "Novo Horizonte" só poderia ser sobre guerra de informação. O tema geral foi a luta contra o lobby sionista. Todos sabem o que significa o lobby e como opera, especialmente nos EUA. Mas, em minhas breves intervenções, no Ministério de Relações Exteriores e na Conferência, preferi focar o alcance financeiro/econômico global do lobby. É o único modo de furar a armadura aparentemente invencível do lobby.

Outra face da guerra de informação. Por todos os lugares por onde andei tive o prazer de ver que o livro de Gareth Porter - Manufactured Crisis: The Untold Story of the Iranian Nuclear Scare - foi recebido como uma bênção. O livro foi traduzido para o farsi pela Agência Fars de Notícias em apenas dois meses, com cuidado meticuloso, e lançado numa cerimônia simples.

O livro está destinado a tornar-se best seller - e demonstra conclusivamente, por exemplo, como o "complô" iraniano para equipar mísseis com ogivas nucleares foi integralmente fabricado pelo grupo terrorista Mujahedin-e Khalq (MEK) e na sequência passado para a Agência Internacional de Energia Atômica, pelo Mossad. Comparem-se o respeito com que Gareth é tratado em Teerã e a muralha de silêncio que cercou o lançamento do livro nos EUA - mais um reflexo da "selva de espelhos", que já dura 35 anos, que opõe Washington a Teerã.

Como se poderia prever, os imbecis analfabetos nos EUA disseram da Conferência que seria um "festim de ódio antissemita". Gareth foi descrito como "jornalista anti-Israel" e eu como "jornalista brasileiro anti-Israel". Obviamente o inferno dos imbecis não está familiarizado com o conceito de "política exterior".

O espaço já não está na geografia - está na eletrônica. A unidade está nos terminais. Está no tempo instantâneo dos postos de comando, quartéis-generais multinacionais, torres de controle, etc. A política acontece menos no espaço físico, que no sistema de tempo administrado por várias tecnologias. Há um movimento, da geo- para a crono-política: a distribuição do território torna-se a distribuição do tempo. A distribuição do território está ultrapassada, é mínima.

Hora de ir ao bazaar - a definitiva distribuição urbana de território. Na entrada principal, um grupo agita calculadoras e pedaços de papel, envolto numa gritaria incrível. A piada, com Roberto Quaglia - autor que desmontou completamente a saga do 11/9 -, é que a coisa parece mercado de escravos. Nada disso. É nada menos que um mercado de futuros, sobre o desempenho do rial. Com a moeda nacional flutuando muito por causa das sanções - perdeu ¾ do valor nos últimos poucos anos - a chance de ganhar uma bolada é irresistível.

Encontramos a bela Zahra - vende toalhas feitas à mão, mas é, mesmo, tremenda fotógrafa de moda. E, então, o ritual que amo desde sempre: andar à procura do tapete tribal perfeito. Nesse caso, um Zaghol dos anos 1930s, que não será jamais reproduzido, porque os nômades locais estão ficando sedentários e não há novos tecelãos. Um caso de distribuição de território que se vai convertendo em distribuição de tempo (perdido).

Os faraós, os romanos, os gregos eram agrimensores. Aquilo era geopolítica. Já não vivemos lá, estamos na cronopolítica. Organização, proibições, interrupções, ordens, poderes, estruturações, sujeições estão agora no reino da temporalidade. E é onde a resistência também deveria estar.

O que nos leva, mais uma vez, às sanções. Muito está rendendo o que Rouhani disse ao presidente da Áustria Hans Fisher na ONU - sobre o Irã estar pronto para entregar gás à União Europeia. Não vai acontecer amanhã; o último número que obtive, em Teerã, é que o país precisaria de pelo menos US$200 bilhões em investimentos para atualizar sua infraestrutura de energia. Rouhani foi obrigado a esclarecer o que dissera. E Teerã não vai vender-se a preço de liquidação à União Europeia.

O fim das sanções tem tudo a ver com a cronopolítica.

Entramos na era do terrorismo de larga escala. Assim como se fala de pequena delinquência e grande delinquência, acho que também se pode dizer pequeno terrorismo e grande terrorismo. (...) Os complexos militar-industrial e científico continuam a funcionar por autoimpulso e momentum. É uma máquina louca que não vai parar.

Teerã pensa sobre a máquina louca, sem parar. Fui mais ou menos "sequestrado" de uma reunião e acabei num pequeno think-tank, com um fabuloso mapa na parede, no qual se detalham os centros de comando dos EUA. Todos os estudantes só querem saber o que o Império está realmente querendo do Irã.

Uma visita ao "ninho de espiões" - a antiga embaixada dos EUA - é também inevitável. Uma apoteose de tecnologia dos anos 1970s - imaculadamente preservada como em nenhum outro lugar do mundo; equipamento de rádio, proto-computadores, telefones, telexes, uma "sala de falsificação", para produzir passaportes falsos. Não surpreende que Washington nunca se tenha recuperado da perda desse ponto privilegiadíssimo de escuta de todo o Oriente Médio. Esse prédio algum dia será uma embaixada "normal" dos EUA? Alguém poderia perguntar àquele Hamlet caipira que por pouco não virou o bombardeador maluco.

Por isso o aeroporto é hoje a nova cidade. As pessoas já não são cidadãos, são passageiros em trânsito. Não mais uma sociedade nômade, no sentido das grandes derivas nomádicas, mas só uma, concentrada no vetor do transporte. A nova capital é (...) uma cidade na intersecção das praticabilidades do tempo, em outras palavras, da velocidade.

O último dia tinha de guardar uma epifania. Esperei por ela todo o dia - entre entrevistas e um fabuloso almoço indiano no norte de Teerã com Gareth e o Dr. Marandi da Faculdade de Estudos Mundiais, da Universidade de Teerã; o banquete platônico ideal de convivialidade e intelecto. E então, à noite, uma corrida maluca até o santuário em Rey; bairro de operários, pedra fundacional de Teerã, um dos mais importantes locais de peregrinação no Irã, como Qom e Mashhad.

A iluminação estética sobrecarrega os sentidos, acrescenta-se ao impulso espiritual - com impulso extra, porque se pode dizer que o único ocidental ali, era eu. Dezenas de milhares de peregrinos homenageiam ali a morte do enteado do Imã Ali. Quem falou de morte das grandes narrativas? No Irã profundo, continuam vivas.

E depois, começa tudo outra vez, como num sonho de Coleridge; terei sonhado eu esse fugidio interlúdio persa, ou Teerã sonhou um pequeno sonho de mim? E logo estou de volta ao meu modo-padrão - passageiro-em-trânsito essencial; tapete nômade, mochila e bilhete de embarque. Próxima parada, uma cidade sem rosto, numa intersecção da velocidade. *****

 


* VIRILIO, Paul; LOTRINGER, Sylvester [1982], Guerra pura. A militarização do cotidiano. Trad. Elza Minet e Laymaert Garcia dos Santos, São Paulo: Brasiliense, 1984. Introd. Laymaert Garcia dos Santos [NTs].

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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