Perigos da estratégia sem coerência

Há hoje crescimento real do risco estratégico. Se se consideram a guerra civil na Ucrânia; possíveis ramificações da recente derrubada do avião civil malaio; ou a decisão dos EUA de 'punir' Putin por não ter obrigado militantes no Donbass a renderem-se a Poroshenko; ou, ainda, se se consideram o fenômeno do crescimento do Estado Islâmico do Iraque e Levante...

Há hoje crescimento real do risco estratégico. Se se consideram a guerra civil na Ucrânia; possíveis ramificações da recente derrubada do avião civil malaio; ou a decisão dos EUA de 'punir' Putin por não ter obrigado militantes no Donbass a renderem-se a Poroshenko; ou, ainda, se se consideram o fenômeno do crescimento do Estado Islâmico do Iraque e Levante [ing. ISIL] e o desmembramento de-facto do Iraque; ou se se considera o modo como são conduzidas as negociações do Irã, estruturadas em torno da mais total superficialidade da noção de 'breakout capacity'[1] como régua-padrão; ou se se consideram os $500 milhões extras que Washington gastará para armar 'moderadamente' insurgentes "moderados" na Síria; ou se se vê a ofensiva militar de Israel contra os palestinos - pode-se ver que qualquer dessas crises, sozinha, já tem capacidade explosiva para mudar a face da política do Oriente Médio (e global).

30/7/2014, Conflicts Forum, Comentário Semanal - http://goo.gl/X4E2SV  

Todas essas crises se interpenetram. E geram risco sistêmico. E todas essas crises parecem também ter em comum o fato de que expõem uma disfuncionalidade na política dos EUA, que parece impedir tentativas mais sérias para construir compreensão estratégica desses eventos e de seus riscos inter-relacionados. A questão é: por que esse risco sistêmico aparece acompanhado de tal torpor, tão disseminado em todo o sistema, de fato um torpor sistêmico?

De início, o rápido avanço do ISIL dentro do coração do território sunita do Iraque (como nos informam colegas em Washington) despertou debate animado em Washington sobre o potencial de uma cooperação com o Irã - para enfrentar o impacto potencialmente devastador daquele grupo na estabilidade da região. Surgiram até algumas esperanças (sobretudo entre funcionários da Casa Branca e do Departamento de Estado) de que aquela cooperação poderia vir a facilitar as negociações entre o Irã e o P5+1 sobre as atividades nucleares do Irã. (Essas expectativas iniciais levaram a incluir o vice-secretário de Estado William Burns na delegação norte-americana para as conversações nucleares do P5+1 com o Irã, quando foram reiniciadas em Viena dia 16 de junho - não só para reforçar a capacidade de negociação da questão nuclear, mas, também, para dar aos iranianos um interlocutor norte-americano qualificado, com o qual pudessem começar a falar sobre o Iraque).

Mas a receptividade de Washington, que se disporia a algum tipo de possível coordenação com Teerã sobre o Iraque, teve vida curta.   

O consenso que afinal emergiu desse debate nos círculos políticos nos EUA foi que as 'vitórias' do ISIL seriam essencialmente mais função do estilo sectário de governar de Maliki, que qualquer coisa mais substantiva (i.e. não passariam de mais uma modalidade de revolta de sunitas). Essa conclusão, por sua vez, fez aumentar o apoio dentro do governo Obama a favor de os EUA fazerem o que fosse preciso fazer no Iraque - 'coordenadamente' ou não com o Irã -, desde que Maliki saísse de lá. Nesse pano de fundo, os principais atores no governo Obama nunca conseguiram chegar a qualquer acordo sobre se, e como, seria possível organizar-se com o Irã, para a questão do Iraque. 

Apesar de a Casa Branca e o Departamento de Estado terem estado abertos, de início, à possibilidade de coordenar ações com Teerã -, do outro lado do debate dentro do governo o Departamento de Defesa opunha-se firmemente a qualquer coordenação com o Irã sobre o Iraque, em vasta medida porque entendia que tal coordenação faria aumentar a já substancial influência do Irã no Iraque. Essa preocupação aumentou com pressões que vinham dos lobbies pró-Israel e pró-sauditas in Washington. Esses lobbies entendiam que admitir que o governo Obama se interessasse por 'associar-se' com Teerã no caso do Iraque "enfraqueceria", em todos os casos, a postura dos EUA nas negociações nucleares do P5+1 com o Irã.

Além disso, a abordagem de Teerã, para lidar com a situação no Iraque era - desde o início - muito diferente da posição de Washington: o Irã não queria ver a crise tratada simplesmente como 'entrada' para minar o primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki (que acabava de obter a maioria de assentos com votos em eleições para o parlamento). Os líderes iranianos alertaram que, para obter um efeito benéfico, qualquer resposta que os EUA dessem à crise no Iraque deveria, sobretudo, reforçar a capacidade do governo do Iraque para combater militantes jihadistas

Mais especificamente, o presidente Rouhani disse que Washington teria de rever a sua própria [de Washington] contribuição a favor do extremismo jihadi na região - por exemplo, o apoio dos EUA aos jihadistas sírios armados -, e confrontar a Arábia Saudita e outros aliados regionais na questão do apoio que têm dado a jihadistas takfiri.

O Irã prefere fortemente (e ainda espera) conseguir evitar envolvimento militar aberto no Iraque, e vê a intervenção militar dos EUA - ataques aéreos, e, ainda mais, qualquer intervenção de soldados em campo - como inerentemente contraproducentes. Consequentemente, Teerã não tinha interesse algum em cooperar militarmente com Washington no que tenha a ver com o Iraque, mas gostaria de tratar conjuntamente das questões estratégicas.

Assim, no final, mostrou-se politicamente mais fácil para o governo simplesmente afastar-se do interesse inicial da Casa Branca e do Departamento de Estado na exploração de possibilidades para alguma cooperação quanto ao Iraque. Sobretudo, cresceu e tornou-se dominante uma resistência profundamente enraizada em Washington, contra acomodarem-se interesses regionais iranianos - o que limitou ainda mais o já estreito espaço político para explorar possibilidades para cooperar com Teerã (como nossos colegas nos EUA confirmaram).

Em resumo, o governo dos EUA - ante ameaça mais grave, pelo extremismo radical sunita, que a que emergiu nos anos 1980s da guerra afegã - está despreocupadamente satisfeito com deixar que "eles que deem conta dos problemas deles".[2]

Talvez ainda mais pertinente aqui, é que essa avaliação (de que o jihadismo radical seria culpa exclusivamente de Assad e de Maliki) serve para distrair a atenção e afastar qualquer ideia de que a responsabilidade pela emergência do ISIL caiba aos EUA, que aceitam tacitamente que a Arábia Saudita use forças desse tipo (incluindo o ISIL) para promover a própria agenda sectária e os objetivos geopolíticos dos sauditas. Também pressupõe um grau de confiança no que diz o Golfo (que o Golfo 'dará conta' do ISIL - tão logo o específico papel do ISIL tenha sido cumprido -, o que é, quase com certeza total, pensamento fantástico-delirante).

O ponto aqui é que nas águas encapeladas da política de Washington - e com fortes correntes enviesadas -, era simplesmente 'mais fácil' não pensar atentamente sobre o significado de riscos estratégicos associados com essa nova eclosão do islamismo sunita radical (30 anos depois da primeira eclosão, que nos rendeu décadas de "Guerra ao Terror").

Na Palestina, vê-se coisa bastante semelhante: Israel usou o pretexto de que estaria procurando por três jovens colonos sequestrados e 'supostos vivos' (embora o governo israelense já soubesse que haviam sido mortos e que os assassinos não eram do Hamás), para degradar institucionalmente o Hamás na Cisjordânia, assim como em Gaza -, com o primeiro-ministro Netanyahu dizendo (em hebraico):[3] "Acho que o povo israelense entende agora o que sempre digo: que não pode haver situação, não importa sob qual acordo, na qual rebaixemos o controle de segurança do território da margem ocidental do rio Jordão". - Ou, em outras palavras: 'nada de solução dois-estados'; e sim: a ocupação será eterna.

Netanyahu usou os assassinatos para nutrir o ódio popular contra o Hamás, que o primeiro-ministro repetiu várias vezes que seria responsável pelo assassinato, mas não é; e Netanyahu sabia disso). Paixões inversas e complementares foram também incendiadas entre os palestinos, na sequência do assassinato de um palestino de 16 anos que foi queimado vivo. O objetivo de Netanyahu nessa farsa política foi usar a crise, primeiro, para degradar o Hamás na Cisjordânia; e, segundo, para tentar reimpor o status quo ante em Gaza (a volta da Autoridade Palestina ao governo de Gaza).

O acordo de cessar-fogo de dezembro de 2012, [4] negociado com o Hamás - e que Israel diz que o Hamás teria rompido agora com fogo de foguetes de retaliação - de fato teria permitido algum alívio no cerco e sítio montados contra o povo de Gaza -, mas Israel jamais implantou os 'alívios' que foram acordados. [5]

Netanyahu quer agora reimpor o sítio 'sem os alívios' (quer dizer, fazer retornar a situação ao status quo de antes) sob o disfarce de um novo acordo de cessar-fogo; [6] e o Hamás quer desfazer, de vez, um acordo que jamais houve.

O Hamás planeja fazer isso usando a tática [7] que o Hizbollah usou no Líbano na guerra de 2006: o comando do Hizbollah instalou-se em subterrâneos profundos; com isso, os ataques iniciais de bombardeamento intenso praticamente não atingiram as forças militares da resistência; e os combatentes do Hizbullah continuaram a bombardear Israel com foguetes. O objetivo dos foguetes jamais foi impor derrota militar a Israel; os foguetes visaram a obrigar Israel a pôr 'coturnos no solo' no sul do Líbano (país ideal para guerrilhas), onde os israelenses conheceram graves padecimentos. De fato, a única resposta aos foguetes, cujos operadores podem 'atirar e sumir' do local em menos de 60 segundos - muito antes de o exército de Israel localizar o ponto de fogo - só pode ser 'coturnos em solo'.

Ainda não se sabe se as táticas do Hamás funcionarão (Gaza é terreno plano e desértico - diferente do sul do Líbano - o que põe o Hamás em clara desvantagem). Mas não há dúvidas de que o braço militar do Hamás, que está hoje mandando, [8] não quer saber de cessar-fogo nesse momento, especialmente "um cessar-fogo fraudulento". "Minha fonte israelense" - escreve o comentarista Richard Silverstein, [9] - "que foi consultada como parte das negociações, disse-me que não se trata, de fato, de proposta do Egito. Foi proposta de Israel, disfarçada como se viesse do Egito. Quem redigiu o protocolo do cessar-fogo foi Israel. Um lado preparou o cessar-fogo, apresentou a proposta, de fato, a si mesmo; e aceitou a proposta. O outro lado não foi sequer consultado". Tony Blair, enviado do Quarteto, também facilitou o 'cessar-fogo'.

O Hamás quer forçar Netanyahu a confronto em solo (e parece ter sido bem-sucedido na empreitada). E Netanyahu e o presidente Sisi querem usar qualquer acordo de 'cessar-fogo' para devolver Gaza à situação de antes - e encenar a substituição do Hamás como fonte de governança e autoridade, pela Autoridade Palestina (em outras palavras, Israel está tentando fazer um 'golpe soft', em Gaza, como em 2007).

Mas o ponto focal disso tudo é precisamente que não há ponto focal algum, nada, de nenhum tipo.

Oficiais da segurança israelense dizem abertamente que 'aparar a grama' [10] (expressão que significa "matar gazenses em grandes números, para deter a agressão - até a próxima rodada do conflito") não leva a coisa alguma. É ação estritamente tática e de curto prazo e Israel nada ganha em termos estratégicos. Israel só consegue continuar a 'aparar a grama'.

A questão palestina (embora tenha saído do centro da atenção regional nos anos recentes), ainda assim continua a ser questão nevrálgica e icônica para muitos muçulmanos. Ainda é o fulcro em torno do qual diferenças regionais podem ser enterradas. É questão que pode ter e tem capacidade para desestabilizar políticas (líderes árabes ainda temem noticiário nos horários nobres, de eventos de guerra em Gaza) - embora não tanto quanto há algumas décadas. É absolutamente claro que a situação em Gaza está criticamente instável e que não pode continuar indefinidamente no ponto em que está; o projeto dos Dois Estados morreu há alguns anos (Martin Indyk confirmou recentemente [11] o falecimento), e europeus [12] e norte-americanos parecem paralisados na capacidade para decidir: simplesmente acham mais fácil - dadas as turbulentas correntes políticas que se cruzam - deixar 'rolar' os eventos, na esperança de que as coisas 'deem conta delas mesmas'.

Talvez a única área para a qual há uma política norte-americana clara seja a Ucrânia, onde o elemento neoconservador que há dentro do governo dos EUA conseguiu convencer os europeus a implantar sanções mais duras contra a Rússia (embora Washington nunca explique a eles - como alguns políticos europeus já começam a reclamar em voz alta -, por que as sanções seriam tão necessárias; ou por que fariam algum sentido estratégico, quer dizer: que sentido estratégico haveria em sanções que, possivelmente, causarão dano maior aos negócios da União Europeia, que aos negócios da Rússia?).

Mas a verdade é que os efeitos desse específico ativismo não foram menos disfuncionais que nos casos em que o governo dos EUA optou pela passividade (ou sucumbiu à paralisia interna).

Os esforços do governo Obama para minar os esforços de Angela Merkel para trabalhar com Putin na direção de uma solução diplomática para a Ucrânia (os EUA 'exigiram' que Poroshenko agisse ainda mais, em termos militares!); a queda-de-braço/chantagem sobre as sanções; e a pouca atenção que os EUA deram às preocupações alemãs com a espionagem norte-americana puseram, sim, uma aliança com a Alemanha, que é aliança chave para os EUA, sob grave risco real. E forçaram um racha também na União Europeia: com Alemanha, Áustria, Bulgária, Chipre, França, Grécia, Itália, Luxemburgo e Eslovênia a favor de reconciliação com a Rússia, outro 'campo' que acompanha a linha alemã. E um pequeno bloco de opositores da Rússia (a Polônia e os três estados do Báltico em particular), que adotam a linha norte-americana.

Aqui também encontramos um paradoxo: o meme prevalente no ocidente reza que enquanto as sanções diplomáticas ocidentais contra a Rússia foram tratadas com pouco caso, a única coisa que agredirá severamente a economia russa é os EUA aplicarem sansão unilateral de embargo de mercado de capitais (que foi imposta a alguns negócios russos): empresas russas têm de pagar dívidas de $115 bilhões ao longo dos próximos 12 meses, e nenhum eurobond russo [13] lançado foi bem-sucedido desde a Crimeia. Mas, como Bloomberg [14] noticia, a expectativa de que grandes empresas russas serão 'incapacitadas' pode não passar de fantasia:

"Empresas russas, que terão de pagar dívidas de $115 bilhões nos próximos 12 meses, terão os fundos necessários, ainda que os mercados de títulos fechem por causa da crise ucraniana, segundo Moody's Investors Service and Fitch Ratings. Empresas terão cerca de $100 bilhões em dinheiro e valores à disposição delas durante os próximos 18 meses, disse Moody's, em análise de 47 empresas. Quase todas as 55 empresas examinadas por Fitch estão "bem posicionadas" para resistir contra mercado fechado para refinanciamento até o final de 2014, disse Moody's em nota de 16 de abril. Os bancos têm mais de $20 bilhões em moeda estrangeira para emprestar, se as tensões levarem os consumidores a converter as poupanças que hoje estão rublos" - disse o ZAO Raiffeisenbank.

"A quantidade de dinheiro que se vê nos balanços de empresas russas, linhas de crédito de bancos e fluxos de caixas que terão é suficiente para que as empresas atendam confortavelmente aos seus compromissos" - disse por telefone, de Moscou, um analista da Moody's".


Difícil não concluir que a escalada dos EUA contra a Rússia (contra Putin pessoalmente) tem mais a ver com táticas da política doméstica - e falta de interesse ou desejo de compreender os riscos estratégicos inerentes se se deixar que a incoerência domine todo um vasto quadro de situações voláteis. Só para ser claro: não se trata de sugerir que os EUA ou a Europa devam atuar mais. Não devem atuar mais. Mas, se supõem que seja 'mais fácil' deixar que 'os eventos que deem conta deles mesmos', sem que ninguém tenha de dedicar-se a compreender melhor os eventos, então que ninguém estranhe se os eventos os ultrapassarem e surpreenderem. O que falta é compreensão, entendimento mais profundo, do que se passa.

Essa omissão define a qualidade do risco geopolítico que hoje enfrentamos.

E por que as coisas chegaram a esse ponto?

Por que tantas questões tão altamente perigosas - o repetido reaquecimento do islamismo sunita radical; a guerra por procuração na Ucrânia; os conflitos na Síria e no Iraque e a aproximação do fim das negociações sobre o Irã; e a repressão violenta em Gaza - estão sendo, elas todas, abordadas por uma mesma estratégia sem coerência alguma? Não é que os altos funcionários 'não entendam'. Muitos deles entendem perfeitamente: mesmo assim parecem fechados numa redoma intelectual e política, que os torna incapazes de tomar decisões ou de se contrapor a velhos e gastos refrãos políticos.

Já escrevemos sobre o 'vazio' que se abriu na política ocidental, [15] surgido do desengajamento e do desencantamento do 'povo' de/com os partidos políticos - e como, concomitantemente, políticos centristas, dos anos 1980s em diante, foram deliberadamente se autoretirando da política (desdenhando até, de fato, dos seus próprios partidos) - e posicionando-se como se de algum modo levitassem 'acima da ideologia', 'acima da ética'; e que exultam por ter, sabe-se lá como, 'despolitizado' a tomada de decisões políticas, tornando-se mais tecnocráticos e confiando cada dia mais no aconselhamento de 'técnicos especializados' como banqueiros, grandes empresários e tecnocratas, que tenham 'expertise', do que no aconselhamento do próprio gabinete ou do próprio partido. Esse é o processo que permite que Tony Blair, por exemplo, diga que, de fato, jamais fez política.

Consequência disso foi um vácuo na política. Os eleitores brincaram com a evidência de que não lhes restara poder algum, até que o próprio poder-zero afetou-os pessoalmente; com o advento da 'austeridade', a tolerância popular diminuiu. As pessoas sentem que estão pagando o preço mais alto pelos fracassos dos sistemas financeiros. Para Claudio Gallo, a raiz dessa deriva está na despolitização, na emergência do neoliberalismo que brotou de raízes do liberalismo europeu [16] - embora o segundo, como ele enfatiza, permaneça diferente do primeiro. (Mas a análise de Gallo não considera a influência do trotskyismo no neoliberalismo, particularmente nos EUA). Outros documentaram muito bem o modo como o zeitgeist [al. no orig., "o espírito do tempo"] neoliberal foi adotado por 'partidos de centro' [17] europeus, como o Labour Party, os quais, simplesmente e pragmaticamente concluíram que a ideologia de Wall Street ou da City de Londres não poderia ser contraditada - e que, para que o partido fosse politicamente bem-sucedido (quer dizer: os candidatos recebessem votos), o neoliberalismo financeiro tinha de ser assimilado.

Esse foi o coração da 'revolução' do New Labour ['neotrabalhismo britânico]. Gallo argumenta que o liberalismo, desde a origem, tendeu a se apresentar como 'acima da moral'. Observa que, mesmo antes de publicar A Riqueza das Nações (publicado em 1776), Adam Smith já se dedicava a estudar os sentimentos morais; e que a ação econômica em Adam Smith é "atropelar a moralidade sem chamar (sic) a atenção".

O neoliberalismo, como o neotrabalhismo e os Democratas de Clinton apresentaram-se eles próprios sob a ideologia da neutralidade: a ideologia do fim da ideologia. Não um sistema político dentre outros, historicamente e socialmente determinado, mas um fato natural imemorial. O mercado autorregulador torna-se ideologicamente uma espécie de categoria universal eternamente presente na história humana desde o início.

A questão aqui é que na sociedade neoliberal, não há ninguém que realmente administre o poder político. A economia se autorregula (mediante indivíduos que maximizam o próprio interesse material; todos esses interesses materiais individuais, no agregado, cresceriam juntos e maximizariam o bem-estar da sociedade como um todo). Os neoliberais sempre buscam deixar que essas forças invisíveis do mercado trabalhem sem impedimento, para que possam emitir 'o veredicto do mercado'.

O que estamos vendo é que os mesmos princípios 'tecnocráticos' estão sendo aplicados à política exterior. Na política exterior, as dinâmicas do poder são hoje vistas como capazes de gerar o seu próprio 'veredicto do mercado' - com os jogos do poder deixados entregues às próprias dinâmicas (e eles 'que deem conta deles mesmos').

O 'mercado' internacional do poder, por extensão, deve ser deixado agir ou atuar também o mais desimpedidamente possível. Os governos são organizados por técnicos racionais que simplesmente permitem que o mercado funcione efetivamente e adaptam-se ao veredicto do mercado. Assim, afinal, os políticos podem dizer que vivem 'acima da ideologia' e acima de qualquer ética. Evidentemente, trata-se de uma máscara ideológica, uma fachada ideológica. E manter essa fachada, levar as pessoas a crerem que isso seria 'a realidade', tem sido uma das grandes forças que influenciam a modelagem pela mídia e pela cultura contemporânea.

Será que se encontra aí pelo menos alguma resposta parcial ao problema da acumulação de tanta estratégia sem coerência, ao longo da última década? Claro, o 'vácuo' que se abriu - quando governantes e governados afastam-se da política - e as tentativas para gerenciar o vácuo - quando um novo populismo, tanto à esquerda quanto à direita, empurra na direção do espaço esvaziado -, sem dúvida também explica boa parte da paralisia na tomada de decisão em política exterior. Tempos de perigos. *****


[1] Pela definição da CIA: "Breakout capacity" [aprox. "capacidade básica para conversão" (NTs)]. "Conhecimento, infraestrutura e material que comumente permanecem abaixo do nível de tornarem-se suspeitos, mas que podem ser rapidamente adaptados ou reorganizados para permitir que o mesmo processo seja usado para produzir armas. Essa capacidade exige recursos previamente organizados e frequentemente se serve de tecnologia, equipamento ou conhecimento de duplo uso" (de CIA Glossary, em https://www.cia.gov/library/reports/general-reports-1/iraq_wmd_2004/glossary.html [NTs]).

[2] http://theswoop.net/sys/index.php

[3] http://www.timesofisrael.com/netanyahu-finally-speaks-his-mind/

[4] http://goo.gl/jc0eZZ

[5] http://imeu.org/article/faq-on-failed-effort-to-arrange-ceasefire-between-israel-and-hamas

[6] http://972mag.com/what-does-israeli-acceptance-of-ceasefire-really-mean/93642/

[7] http://english.al-akhbar.com/content/gaza-exclusive-look-roles-al-qassam-brigades-and-islamic-jihad

[8] http://english.al-akhbar.com/content/can-palestinian-national-movement-re-emerge-hamas-and-fatah-lose-ground

[9] http://www.richardsilverstein.com/2014/07/16/gaza-war-day-9-202-palestinian-dead/

[10] http://besacenter.org/mideast-security-and-policy-studies/mowing-grass-israels-strategy-protracted-intractable-conflict/

[11] http://thecable.foreignpolicy.com/posts/2014/07/02/indyk_admits_mideast_peace_process_is_dead

[12] http://carnegieeurope.eu/strategiceurope/?fa=56134

[13] Russian eurobond. "Tipicamente, o eurobond é um título/ação lançado por empresa não europeia para ser comerciado na Europa. Os eurobonds russos são títulos/ações lançadas por empresa russa no mercado europeu, que paga juros e principal em dólares norte-americanos" (Webster's New World Finance and Investment Dictionary, em http://www.yourdictionary.com/eurobond [aqui traduzido] [NTs]).

[14] http://www.bloomberg.com/news/2014-04-21/why-putin-isn-t-scared-by-115-billion-of-debt-russia-credit.html

[15] http://www.conflictsforum.org/2014/conflicts-forums-weekly-comment-23-30-may-2/

[16] 16/7/2014, "Totalitarismo Global: Não que seja proibido mudar - é IMPOSSÍVEL", RT, Moscou, traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/07/totalitarismo-global-nao-que-seja.html

[17] http://www.amazon.com/Labour-Pocket-Essential-Robin-Ramsay/dp/1903047838

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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