Síria, Irã...

O que interessa é que, seja como for, alguma 'transição' já está em andamento na Síria. Se se considera o exemplo iraniano, a transição não aconteceu pela remoção e substituição do principal líder político ['mudança de regime']. Também na Síria, a mudança aconteceu quando a liderança política instalada em Damasco fez funcionar o próprio sistema político sírio existente. No Irã, o ímpeto para uma grande deriva no sentimento e no estado de espírito da população aprofundou uma grande transição, baseada no consenso em torno de uma abertura nacional, em vez de insistir-se numa entente focada exclusivamente em planos dos EUA.
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Parecia irremediável: se se olha atrás, para 2008 e 2009, uma pequena, mas significativa parte da política iraniana parecia ter-se destacado e dirigia-se na direção de vir a constituir dissidência importante.

Alguns comentaristas previram que aquela tendência 'verde' cresceria e engolfaria toda a nação numa polarização amarga (embora, sim, outros tenham alertado que aquela dissidência, localizada principalmente na região norte de Teerã, não tinha base real na população em geral). As divisões pareceram, a alguns observadores, estar selando o futuro do Irã, condenando o país a conflito interno cada vez mais difícil.

Pois afinal, como se viu, nada daquilo aconteceu. O Irã manteve-se consistente. Seu complexo sistema político funcionou. Uma eleição presidencial garantiu autoridade legítima e clara, e um impulso na direção da transição. Um novo governo emergiu para avançar nessa nova direção, e - diferente do que diziam as previsões externas -, os dissidentes organizaram-se de volta nas grandes correntes políticas, em vez de cavar cismas mais profundos. Obteve-se um acordo. O Irã cederia na autodefesa sempre agressiva ante o mundo exterior, e retomaria o rumo interno, de constituir-se como grande potência regional - mas não, basicamente, mediante qualquer entendimento com os EUA, como os Reformistas haviam tentado antes; em vez disso, o Irã optou por uma 'abertura global', que os Principistas também pudessem aceitar. E isso levaria o Irã a reassumir seu lugar como importante potência regional e econômica - sem qualquer necessidade de os EUA aquiescerem. Até aqui, essa transição está sendo um sucesso. 

De fato, já há alguns, na região, que já entendem que nem um fracasso total das conversações do P5+1 levará, ou possa levar, a um retorno à situação anterior. O molde quebrou e foi descartado.

Algo semelhante a isso está novamente acontecendo - nem tanto no Irã, mas na região como um todo e também no micronível.

Uma visita à Síria sugere que a Síria já iniciou, precisamente, uma 'transição' similar, embora não idêntica, à do Irã.

O 'clima' emocional em Damasco é, em geral, de otimismo. Os cidadãos comuns não falam sobre o 'processo' de Genebra - de fato, o tema não é sequer mencionado, ou só muito raramente mencionado internamente. Os pensamentos, em vez disso, estão concentrados no 'processo de reconciliação',[1] que vai ganhando velocidade em todo o país. É fonte de muito otimismo, embora, é claro, ainda esteja em estágio inicial - e ainda vulnerável à furiosa hostilidade dos rejeicionistas.[2]

Em vários locais, vilas e cidades, ex-insurgentes de oposição já negociam acordos locais com o exército sírio. Sob os termos dos vários acordos, os ex-insurgentes mantêm as armas (leves) e mantêm também o próprio status e o orgulho como combatentes, e vão-se integrando formalmente como parte do Exército Sírio - em unidades locais específicas (a Força Nacional de Defesa). Em resumo, integram-se à infraestrutura de segurança - protegendo suas vilas e o Estado, contra o ataque dos takfiri - os jihadistas takfiri, evidentemente, opõem-se a todas as iniciativas de reconciliação.

Claro que esse processo não é sempre sem obstáculos. Muita gente, em toda a Síria, perdeu familiares e amigos e muito se ressente[3] de que aqueles "bandidos" sejam reabsorvidos na sociedade, sem qualquer punição ou com alguma espécie de 'arranjo' com os que eles feriram tão profundamente. Mas esse é o custo conhecido de todos os processos de reconciliação. E essa reconciliação não está acontecendo num vácuo; está andando passo a passo, paralela e ligada ao processo dos diálogos nacionais, com consultas a pessoas de todos os níveis sobre como o estado deve ser modificado para o futuro. Assim como com os aliados da Síria - Rússia e Irã - há forte sentimento dentro da Síria, de que as coisas não podem voltar e não voltarão ao modo como foram. Inevitavelmente, depois de conflito político e social tão profundo, haverá transição significativa.

No "Comentário semanal" da semana passada,[4] vimos como a formação do novo governo libanês produziu uma fórmula pela qual o Movimento Futuro (sunita) e seus aliados ocupam agora os postos chaves da Segurança e das Comunicações (o que afasta qualquer possível reserva ou hesitação que o ocidente tivesse contra manter contatos com agências que mantivessem laços com o Hizbullah). Esse novo governo libanês passa para o 'establishment' sunita a responsabilidade por proteger o Líbano contra o extremismo sunita.[5] É, como se viu, caso de pôr-se a raposa a vigiar outras raposas, dado que se sabem dos laços opacos e ambíguos, além de antigos, que ligam o Movimento 14 de Março àqueles grupos. No Comentário da semana passada, sugerimos que a formação do governo, como foi feita, representava um 'piloto' para a região como um todo - e para a Síria em particular.

O Hizbullah (e implicitamente o Irã), nessa iniciativa libanesa, reconheceram efetivamente os medos e a sensação de vulnerabilidade dos sunitas (e sauditas). E, para equacionar também isso, ofereceram uma concessão 'piloto', e teste. 

A infraestrutura da região está sendo reorientada para testes que verificarão se os sunitas, que podem ter usado jihadistas para suas próprias finalidades, podem agora confrontá-los, e se os confrontarão. Em certo sentido, é teste para verificar se 'acordo' regional mais amplo, nessa linha, é possível.

A Síria também já anda pelo mesmo caminho: está entregando a segurança local a ex-insurgentes armados (na verdade, a segurança nacional na Síria sempre incluiu grande porcentagem de sunitas).  Se a tentativa der certo, talvez vejamos o Irã, a Síria e seus aliados dispostos a tentar acomodar também as ansiedades sunitas e sauditas, em troca de provas de que estão dispostos a derrotar o extremismo sunita que eles mesmos, antes, incendiaram, mas que agora já se converteu em conflagração que ameaça consumir também os sunitas moderados.

Haverá quem diga que essa não é a 'transição' que se exige do governo sírio. O ocidente enquadrou a transição na Síria nos estreitos limites de 'mudança' na própria chefia do Estado - e nada exige dos insurgentes, além de maior unidade. O ocidente manteve essa 'exigência', sem considerar suas consequências - esquecendo todos os riscos muito visíveis de que o conflito civil se aprofundasse a ponto de gerar anarquia.

Mas o que interessa é que seja como for essa 'transição' está em andamento na Síria. Se se considera o exemplo iraniano, a transição não aconteceu pela remoção e substituição do principal líder político. Também na Síria, a mudança aconteceu quando a liderança política instalada em Damasco fez funcionar o próprio sistema político sírio existente. No Irã, o ímpeto para uma grande deriva no sentimento e no estado de espírito da população aprofundou uma grande transição, baseada no consenso em torno de uma abertura nacional, em vez de insistir-se numa entente focada exclusivamente em planos dos EUA.

Pode ser que essa forma de 'transição' venha também a emergir plenamene na Síria (e talvez no Iraque e no Líbano): uma ampla acomodação das ansiedades sunitas (e da sensação de serem as vítimas), trará, como retorno, uma real mudança na atitude dos sunitas ante os jihadistas takfiri. Pode não ser o que desejam alguns no ocidente, mas pode ser o máximo que conseguirão - se se provarem positivos os vários testes que estão em curso, na região, nessa direção.

A questão é: o establishment da política externa dos EUA e seus agitadores profissionais tolerarão essas 'transições' geradas e administradas regionalmente? Talvez consigam tolerar. É do interesse dos EUA enfrentar os jihadistas takfiri, ainda que isso implique fazer surgir o Irã e a Síria como potências regionais mais fortes. **** 

 


[1] http://english.al-akhbar.com/content/syria-local-rebels-willing-compromise-are-ready-all-scenarios

[2] http://www.al-monitor.com/pulse/security/2014/02/syria-local-truces-army-opposition-damascus-countryside.html#

[3] http://english.al-akhbar.com/content/local-reconciliations-syria-supporters-and-opponents

[4] Traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/conflicts-forum-comentario-semanal-de.html [NTs].

[5] http://english.al-akhbar.com/node/18753

 

 

Conflicts Forum
7/3/2014, Comentários - semana 21-28/2/2014
http://www.conflictsforum.org/2014/conflicts-forums-weekly-comment-21-%E2%80%93-28-february-2014/

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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