"As garras das transnacionais sobre o sistema alimentar são a causa profunda da crise"

Pesquisadora aponta fatores comuns entre a crise alimentar de 2007 e a atual

Sílvia Alvarez

da Cidade do México (México)

No início do mês passado a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) divulgou relatório que aponta a permanência da alta dos preços dos alimentos no mundo até 2012. O documento citou o aumento da demanda da carne e fatores climáticos como algumas das causas dessa instabilidade dos preços. A pesquisadora Silvia Ribeiro, do grupo ETC, considera que esses elementos interferem sim na crise alimentar, mas que há um modelo de concentração corporativa no setor alimentício que é a raiz do problema.

Ainda de acordo com a FAO, os preços internacionais dos alimentos subiram no início do ano até alcançarem os índices da última crise, em 2007-2008. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Silvia Ribeiro nos ajuda a entender os elementos estruturais que perpassam as duas crises.

Brasil de Fato - Qual a relação entra a crise alimentar de agora e a de 2007-2008?

Silvia Ribeiro - O que culminou na crise de 2007 foram fatores como a crise do petróleo, os fundos de especulação, os fatores climáticos e os agrocombustíveis - juntos a um modelo estrutural contra a soberania alimentar, onde os mais afetados são os países mais pobres. Agora te explico essa relação. A maior diferença da crise de 2007-2008 com agora é que naquele momento coincidiu com os altíssimos preços do petróleo. O petróleo estava muito mais alto que agora, por todas as crises que se estavam vivendo ao redor dele. E o que acontece é que estamos falando de uma agricultura que está totalmente petrolizada. A agricultura industrial é uma máquina de petróleo. Todos os insumos que se usam têm petróleo, por exemplo, os agrotóxicos são derivados de petróleo, todos os transportes que utilizam a agricultura. Então, claro, imediatamente isso também aumentou de preço.

Neste contexto, como fica os agrocombustíveis?

A crise de 2007 nasce de uma conjunção de elementos que também eram parte da destinação dos grãos para a produção de agrocombustíveis. Segundo o Banco Mundial, num informe que foi ocultado e depois veio a público em 2008, 75% do aumento do preço dos alimentos estava relacionado com o desvio de grãos para agrocombustível. Isso segue sendo assim. O tema dos agrocombustíveis é muito simples. Começam a subsidiar de maneira enorme, sobretudo nos EUA que tem subsídios milionários, a produção de agrocombustíveis. Então, o que acontece? Atualmente, os EUA, que são o maior produtor de milho no mundo, destinam 40% de sua produção para o etanol. O mesmo está passando com outros alimentos, já que os agrocombustíveis também se originam da soja, da cana-de-açúcar, do pinhão, da mamona. Aí existem dois fenômenos: as pessoas deixam de plantar o que plantavam para plantar para agrocombustíveis; e, além disso, ocupam terra, água, nutrientes, e fertilizantes - que não são um detalhe menor. Por exemplo, o preço dos fertilizantes que não são derivados do petróleo, são de extração mineira, subiu muitíssimo, porque se supõe que tem muito pouco potássio, fósforo e sódio. Isso também aumenta o preço dos alimentos.

Os fundos especulativos têm relação com essa questão dos alimentos?

É outro fator que começou em 2007, que disparou e foi terrível, foram os fundos de investimento, que são especulativos por natureza, porque estão em busca de dinheiro. Todos os fundos que estavam na indústria imobiliária dos EUA, entram em crise e geram crise financeira. Então, todos esses fundos que estavam aí buscam outros lugares e encontram a comida. Comida nunca tinha sido um fundo especulativo. E como a comida é um fundo especulativo? Porque se compra a futuro. Então claro que sobe o preço! E como sobe o preço tem outros que também querem comprar. É como um jogo de futuros. Isso é terrível. Isso acontece com o trigo, com a soja, com o milho - que tem uma entrada enorme em fundos especulativos. Também acontece com outros, mas esses são os mais afetados. Em 2007, esses fundos de risco se lançam a comprar e mudam os preços artificialmente, mas logo voltam a vendê-los e agora, de novo, há novos investimentos. É como uma recuperação.

Há um aumento da demanda de carne, principalmente pela da China?

Sim, é verdade que há maior demanda de carne no mundo, é parte da crise alimentar. Porque nesse momento, a cifra mais conservadora diz que 40% de todos os cereais, de qualquer tipo que se produz no mundo, é destinado para a alimentação do gado. Isso é terrível porque, com o que se alimenta o gado, se alimenta muito mais gente e se come cereal diretamente, não passando pela carne. Porque a carne, definitivamente, é um processo que ecologicamente, digamos assim, não é eficiente. Além disso, tira território. Ou seja, aumenta o território que se usa para coisas que não são alimentos e aumenta a demanda de agrotóxicos, fertilizantes, e, de novo, sobem os preços. O que não é verdade é que dizem que a maior demanda é da China, isso é um mito que se lançou. No México tem um investigador, que se chama Alejandro Nadal, que mostrou que a China ainda está em uma transição e tem uma economia de grandes reservas internas. China, por exemplo, salvo a soja - que afeta muito o Brasil - em todos os outros grãos não é um grande importador. Tem sua própria produção.

E como se organiza esse modelo estrutural que atua contra a soberania alimentar?

O que sim está por trás de tudo isso é a concentração corporativa. Quais são as grandes corporações que dominam desde a semente até o supermercado? É muito curioso que em todas as etapas da crise alimentar, todos os agronegócios - sobretudo das sementes, dos distribuidores, processadores - não perderam, senão que ganharam muito. Os que menos ganharam, ganharam 20% mais que nos anos anteriores, alguns ganharam mais que 100% e uma empresa de fertilizantes, a Mosaic, a 2ª maior do mundo, fez mil por cento mais de lucro. Nos anos de 1960, a FAO mostra que, no total, todos os países do sul tinham um superávit de mais de 7 bilhões de dólares em produção interna de alimentos, doméstica. É interessante ver dessa perspectiva: há 50, 40 anos não havia nenhuma empresa que tivesse nem 1% do mercado, nem de semente, nem de distribuição, nem nada. Hoje, temos 4 distribuidoras de cereais que tem mais de 80% do mercado mundial: Cargill, ADM, Bunge e Louis Dreyfus. Além disso, ADM, por exemplo, tem 30% do mercado de etanol, nos EUA. Cargill também tem enormes investimentos em etanol. Essas empresas, quando está crescendo o milho, não sabem para quem vão vender. Venderão a quem pague mais no momento que se venda. Então, isso faz com que seja imprevisível e aumenta a instabilidade dos preços. As garras das transnacionais sobre o sistema alimentar são a causa profunda da crise. Porque não há nenhuma política pública que possa controlar o preço dos alimentos quando a produção agrícola está em mãos de agentes que só se preocupam com o lucro e nada mais. Então, claro que não vão vender a quem necessite, e sim a quem pague mais.

Mas essa questão da carne é grave. A que se deve essa situação?

O problema da carne é gravíssimo, mas também é gravíssimo porque há uma concentração. No Brasil, por exemplo, está a maior concentração de frango e o México será uma das maiores concentrações de carne. E a carne que se produz não é muito mais que antes, somente está em muito menos mãos. Ou seja, são empresas muito maiores e o que têm feito é deslocar a produção pequena de carne, que é o mesmo que acontece com outras coisas. Aqui no México, por exemplo, metade da produção de porco passou a estar nas mãos de 7 empresas. Essas são também os que controlam a demanda de milho no México. Aqui, as transnacionais dizem que o governo mexicano deve importar milho, porque não alcança a demanda. E isso é mentira! O México produz nesse momento mais milho do que nunca. E não há transgênicos aqui plantados comercialmente. No México se necessita, por média, uns 18 a 20 milhões de toneladas de milho para a população e aqui se produz 24 milhões, Porém, importamos 10 milhões de toneladas. Pra onde vai todo esse milho que se importa dos EUA? Vai para a produção de tortillas industriais, uma parte; e uma maior parte vai para alimentar porcos e frangos que são de empresas transnacionais. Então, é totalmente artificial que no México falta milho. Aqui não falta milho, inclusive nas atuais condições de produção.

E como está os dados da concentração corporativa?

Dados novos sobre a concentração até o inicio de 2010 apontam que as 10 maiores empresas de sementes do mundo controlam 70% do mercado mundial. É brutal. Não é o mesmo ter o mercado de rádios e televisão concentrado do que ter o mercado de sementes - que são a chave de toda a rede alimentar.  Em agrotóxicos temos 10 empresas que controlam 90% do mercado mundial. E são as mesmas em qualquer parte do mundo, por exemplo a Bayer, Monsanto, Syngenta, Dupont. Às vezes usam outros nomes, mas são as mesmas. Agroceres, por exemplo, é Monsanto. Na distribuição, as que seguem são outras, mas há como uma espécie de acordo formal, às vezes, e de colaboração, entre Bunge e Dupont, no Brasil é muito claro - e aqui também. Entre ADM e Syngenta, e entre Cargill e Monsanto. Claro que a Monsanto também vende a outros, mas com quem mais trabalha é Cargill, o mesmo acontece com as outras. Ou seja, na verdade, tem um monopólio muito mais extenso... estamos falando de umas 20 transnacionais no mundo que se juntam para controlar esses fatores que aumentam o preço dos alimentos para poder controlar seus lucros.

QUEM É

A uruguaia Silvia Ribeiro é jornalista e diretora para América latina do grupo ETC. Residente no México, é colunista do jornal mexicano La Jornada e membro do conselho editorial da revista "Biodiversidad, sustento e culturas", publicada em sete países latino-americanos. O grupo ETC foi a primeira organização da sociedade civil que chamou a atenção, internacionalmente, sobre os fatores socioeconômicos e científicos relacionados com a conservação e uso de recursos genéticos de plantas, com a propriedade intelectual e a biotecnologia.

 

 

Pátria Latina

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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