É possível avaliar de forma justa?

"O professor sofre mais ao dar uma nota baixa do que o aluno ao receber!"

Nos meus primeiros anos na graduação em Ciências Sociais na UNESP, uma grande professora costumava dizer isso, brincando em relação à preocupação dos alunos em tirar notas baixas. Naturalmente todos achamos aquilo uma grande bobagem, parecia apenas uma piada sem graça. Agora que eu sou professor acho menos graça ainda... Descobri que era a mais pura verdade!

De um modo geral há três tipos de alunos que tiram notas baixas: os relapsos, os obtusos e os incompreendidos. Em todos os casos, o professor iniciante que tenha o mínimo de empatia pelo ser humano sofre igualmente. Com o tempo, aprendemos uma das lições mais difíceis, que é atribuir notas sem emoção.

No caso dos alunos relapsos as notas baixas deixam de ser sofridas mais rapidamente. O professor novato logo descobre que não faz sentido perder o sono por causa de pessoas que não cumprem suas obrigações e na maioria dos casos nem se importam com isso. O problema aqui é evitar a tentação de atribuir injustamente uma nota menor que a devida, em função da baixa empatia. Pela minha experiência, este é um grupo relativamente numeroso numa sala típica, e tende a responder as avaliações com erros de grafia e respostas muito curtas. Eles não têm medo de escrever absurdos e de um modo geral, as respostas têm pouca ou nenhuma relação com as perguntas. A explicação para isso é óbvia: independente do nível de inteligência deste aluno, se ele não assistiu as aulas ou não prestou atenção e nem leu os textos, ele seguramente não tem ideia do que deveria responder.

Os alunos obtusos são aqueles que não conseguem tirar notas boas, mesmo estudando e estando sempre presentes às aulas. São pessoas que têm dificuldade em compreender o que realmente importa em qualquer texto, ou que simplesmente desperdiçam muito esforço numa tentativa de adivinhar o que o professor espera ler ou ouvir, e desse modo, acabam não absorvendo de verdade o conteúdo das matérias. Os obtusos não são numerosos, e se sua redação pode variar em termos de qualidade, ela é geralmente extensa e invariavelmente pouco coerente. Eles costumam dominar o conteúdo necessário para a resposta, mas perdem-se completamente na hora de expressar este conhecimento de forma textual e ao colocar em prática as tarefas mais triviais. Estas pessoas normalmente criam uma super expectativa sobre si mesmos e acabam falhando.

Os incompreendidos estão divididos em dois grupos, o primeiro é composto por aqueles que se recusam a oferecer o que o professor pede expressamente, e muitas vezes mesmo antes de entender o básico, inventam uma "verdade" própria para convencer o professor a adotar seu ponto de vista. É comum que este tipo de pessoa tenha visto uma reportagem ou ouvido alguém falar sobre algum assunto e queira a todo custo inserir elementos disto numa explicação que não tem remota relação com o tema que está em pauta na questão da prova. Estes são os que acreditam serem incompreendidos, eles se recusa deliberadamente ou não são capazes de entender que a resposta que propuseram ou o tema que trouxeram para o debate não é coerente com a matéria em questão. Os incompreendidos de fato são aqueles que possuem um modo genuinamente diferente de pensar, e que não podem ser adestrados para se encaixar nos modelos tradicionais de aprendizado e avaliação. Muitas vezes um professor tem a mente fechada para novos desafios e novas propostas, não sendo capaz de relacionar e absorver inovações trazidas por seus alunos. Os pseudo incompreendidos são raros, nem todas as turmas têm este tipo de aluno, e dificilmente haverá mais do que um ou dois numa sala. Os incompreendidos de fato são raríssimos.

No que se refere a notas, os alunos restantes são aqueles que estão na média ou acima dela, são aqueles capazes de aprender como funciona o sistema de avaliação de forma intuitiva, e não precisam se esforçar muito para simplesmente responder a questões nas quais o resultado pretendido é a mera exposição coerente e minimamente ordenada de ideias que a eles foram apresentadas anteriormente.

Sobre as avaliações, o que todos os estudantes têm em comum é a expectativa de que as notas sejam uma expressão da justiça. Este é um fato curioso, visto que se há uma coisa que as notas não representam e jamais representarão é justamente isso: justiça. Pelo menos não em seu sentido puro e ideal. Justiça subjetiva, justiça como expressão da verdade e representando um julgamento da resposta, das condições concretas pessoais e íntimas de cada pessoa sendo avaliada.  Esta relação é tão remota quanto a que existe entre sistema judiciário e justiça. Tão remota quanto aquela que existe entre o sentido dos feriados de carnaval e Natal em relação a Jesus Cristo.

Do ponto de vista de alguém que acaba de perder a mãe, assassinada brutalmente por um maníaco, a condenação do assassino a quatro anos de cadeia é justiça? Mesmo que fossem quinhentos anos de condenação, isso poderia reverter a morte? Uma sentença nem sempre pode reparar o mal causado, ela serve como uma punição exemplar, para evitar a repetição do ato lesivo por parte do réu e incentiva a todos aqueles que tomaram conhecimento da punição a não cometerem atos que levem ao mesmo destino. Uma sentença pode evidentemente tentar servir ao propósito de reparar atos injustos cometidos, mas claramente existem limites práticos: uma quantia em dinheiro pode ser devolvida a seu dono legítimo, mas uma pessoa assassinada ou morta em função de negligência não pode ser revivida. Estupros não podem ser desfeitos, objetos únicos muitas vezes não podem ser restituídos, danos morais podem ser ressarcidos em dinheiro, porém a humilhação causada e traumas psicológicos não são superados por ordem judicial. O que o judiciário faz é aplicar leis e estabelecer condenações dentro de parâmetros estabelecidos pela sociedade, através de seus representantes legislativos. Se esta aplicação é feita de maneira legítima, sem preconceitos para com a vítima ou o agressor, se a sentença não ferir o ordenamento jurídico em função dos interesses pessoais do juiz, se ela não se omitir diante de eventuais vícios ou abusos de poder por parte das autoridades que fizeram o processo chegar até a esfera do julgamento, ela pode ser considerada justa. Isso significa que do ponto de vista prático, o que chamamos de justiça seria o ato de seguir um procedimento da forma mais isenta possível. A avaliação de um professor tem um sentido parecido.

Na visão dos estudantes, justiça seria uma espécie de correlação cósmica entre esforço, dedicação, senso de valor pessoal, participação em sala, "bom mocismo", horas de estudo e por último, o desempenho na avaliação propriamente dita. O problema é que além de ser impossível acompanhar de forma apropriada toda uma sala em relação a estes pormenores, eu desconheço a existência de uma régua capaz de medir tais parâmetros.

Quando eu corrijo provas e atribuo notas, a única coisa que posso considerar como a minha régua são os parâmetros que eu estabeleci para a confecção das questões e sua correção. Eu crio provas com base nos temas e assuntos que acredito ter apresentado e discutido de forma suficiente em sala, e a correção é baseada num critério que inclui um conjunto de argumentos mínimos para que as questões sejam consideradas satisfatoriamente respondidas. A única "justiça" que eu posso oferecer é corrigir todas as provas e trabalhos mantendo-me fiel esses critérios, usando sempre o mesmo parâmetro para todos.

A humanidade dos professores impede a aplicação puramente racional destes critérios, e se "justiça" seria sua correta aplicação, isso significa que muitas injustiças são cometidas a cada correção. A maioria das pessoas que não estão familiarizadas com a docência provavelmente imagina que os erros, falhas e injustiças são aqueles que castigam os alunos pelo rigor excessivo. Injustiça seria a perseguição baseada na falta de empatia ou pelo sadismo puro e simples, causando a atribuição de notas baixas. Não posso usar a minha experiência pessoal como medida para o universo docente, mas posso afirmar que é muito mais fácil errar uma nota para cima do que para baixo.

As razões para tal são simples: em primeiro lugar, somente notas baixas são questionadas, ninguém reclama por receber nota maior que o esperado. Eu posso manipular a correção nos dois sentidos, mas somente as notas injustamente baixas podem me causar problemas com a instituição de ensino que me emprega, as notas injustamente altas não. Em segundo lugar, um compasso moral impede as pessoas que não possuem falhas graves de caráter de cometer atos que deliberadamente prejudiquem outras pessoas. Se eu cometo uma injustiça e rebaixo propositalmente uma nota, isso pode afetar uma pessoa em vários sentidos, causando prejuízos financeiros (uma reprovação implica custo financeiro para alunos de instituições privadas, e muitas vezes eles podem não ser capazes de arcar com tais custos, sendo obrigados a desistir dos estudos) e desgastes físicos e emocionais.

Uma injustiça que aumente uma nota causará a meu ver prejuízos maiores no longo prazo, mas a consequência imediata tende a ser encarada como um alívio.

Eu cometo seguidas injustiças, atribuindo a alunos notas acima do desempenho obtido na avaliação. É um ato que infelizmente pode trazer consequências bastante negativas.

Muitas vezes uma aprovação indevida desmotiva o aluno na busca por reverter suas próprias debilidades, ou pior, omite a existência de tais debilidades. É comum que alunos "beneficiados", ao saber que podem contar com essa "ajuda", simplesmente tornem-se acomodados e abandonem a busca pelo auto aprimoramento. Também é comum que alunos que desconhecem o fato de terem sido "beneficiados" com notas irreais, tenham surpresas desagradáveis na avaliação seguinte, pois desconheciam o fato de que precisavam melhorar.

A visão dos alunos sobre o que seria justiça na atribuição das notas ignora quase completamente todos estes pontos. A pretensão de "justiça" dos alunos enfatiza especialmente o senso de valor pessoal. A grande maioria das queixas em relação a notas baseia-se essencialmente neste quesito. Notavelmente, muitas vezes a atitude é preventiva: "Preciso tirar nota X!" Este aviso pode ser verbal ou anotado na própria prova. Raramente um estudante procura o professor para buscar saber onde precisa melhorar, ou o que pode ser feito para reforçar o aprendizado. O fato de que o aluno simplesmente não domina um conhecimento que será essencial durante sua carreira profissional é usualmente quase irrelevante, este é um problema ignorado, substituído pelo: "Eu mereço", "Eu quero", "Eu preciso".

Outras tantas vezes a pergunta é: "EU (assim mesmo: grifado em negrito e com letras maiúsculas, soa quase como um grito...) tirei essa nota? Depois de ter estudado tanto? Eu assisto todas as suas aulas, participo tanto, e você me dá essa nota?" Esta seria a tão subjetiva questão da participação em sala. Esta é a reação típica dos alunos obtusos e também daqueles que acreditam ser possível comprar a boa vontade do professor com breves conversas no corredor e nos intervalos.

Muitas pessoas não são eficientes e gastam horas para obter resultados que outros conseguem em minutos. Mais do que qualquer outra coisa, o que todo aluno deveria saber é que é perfeitamente comum na vida real não conseguir os resultados esperados, mesmo após grandes esforços. A vida não é "justa" em relação a isso, as avaliações também não. Aos relapsos (que obviamente nem se deram ao trabalho de ler este texto ou pararam no primeiro parágrafo...), seria interessante parar para pensar no seguinte: se para um professor o custo para atribuir uma nota alta em tese é zero, e mesmo assim eles não recebem estas notas (apesar de acharem que merecem, apesar de quererem e precisarem), imaginem a probabilidade de um chefe ou patrão oferecer cargos e salários para pessoas com este tipo de atitude.

A vida é muito mais dura que uma sala de aula.

 

Rodrigo Alves Correia

Cientista político e professor universitário (Rede REGES), Doutor em Ciências Sociais pela UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília. Proprietário da VOC - Vilhena Opinião e Consultoria.

[email protected]

 

 

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