Lembrem-se da Rumélia Oriental*

Em 1878, a guerra russo-turca estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro do music-hall, cantarolava seu número[1] que deu à língua inglesa [e outras[2]] a palavra jingoism, "jingoísmo". Como McDermott cantava, "Já combatemos esse Urso antes" e "Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro".

Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante.

Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita e Svoboda [Liberdade]. A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como 'o governo da Ucrânia', seu ministro de Relações Exteriores é festejado no Europolo.

A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russo e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.

Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país.

Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo 'governo' em Kiev e por euro-líderes.

A reunião da União Europeia na 5ª-feira sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Ali, nenhuma surpresa.

Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA.

Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula EU-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.

Sem meios para projetar força, a EU pode pelo menos indulgir nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa.

Sevastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no 'quintal dos EUA', que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos.

A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy violou soberania na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, pelo menos, muito diferente nisso, de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.

Com a displicente falta de perspectiva história que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na tevê, essa semana, que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais.

No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (chamados, meio incongruentemente, de "os doentes da Europa"), querelas na Crimeia, o 'Grande Jogo' no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em  1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao 'Urso' um habitat na Europa continental. Em Berlin, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da "Rumélia Oriental" no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo[3] eslavo. Durou sete anos inteiros.

O que quer o jogo em que se meteram EUA-UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da EU no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem patrocinado com tããããããão notável sucesso nos últimos anos?

Como a Spectator disse uns poucos anos depois de Berlim: "o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da Rumélia Oriental é desastroso fracasso." ***

 


* Sobre a Rumélia Oriental, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Rum%C3%A9lia_Oriental [NTs]

[1] Leem-se os versos (ing.) em http://monologues.co.uk/musichall/Songs-W/We-Dont-Want-To-Fight.htm  Não queremos lutar... ("McDermott's War Song - a.k.a. The Jingo Song" [O canto de guerra de McDermott, também chamada "A canção do Jingo"]) [excerto]:


[coro]
"Não queremos lutar, mas, por Jingo!, se lutarmos,
Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro
Já combatemos esse Urso antes, e se somos verdadeiros britânicos,
Os russos não terão Constantinopla!"

(Escrita e composta por G.W.Hunt, 1877
Apresentada por G.H. McDermott (1845-1901) [NTs]).

[2] Em port., o Dicionário Houaiss registra: jingo. 1 hist pol. Alcunha que recebeu na Inglaterra, em 1878, todo aquele que era a favor de uma guerra imediata contra a Rússia. 2 Patriota fanático" [NTs].

[3] Irredentismo.  1 hist.pol movimento dos irredentistas, patriotas italianos que, do último quartel do séc. 19 ao início do séc. 20, se empenharam em obter a incorporação à Itália de territórios sob domínio estrangeiro [A Italia irredenta - Itália não resgatada - compreendia as seguintes localidades: Trentino, Gorízia, Ístria, Trieste, Ticino, Nice, Córsega e Malta, regiões ligadas à Itália e aos italianos pela língua e pelos costumes.] 1.1 p. ext. pol. política ou doutrina política por meio da qual uma nação advoga a recuperação de terras que lhe tenham sido tomadas ou a incorporação de um território cultural e historicamente ligado a ela mas que se acha sob domínio estrangeiro (Dicionário Houaiss) [NTs].

 

8/3/2014, Glen Newey, London Review of Books (Blog)
http://www.lrb.co.uk/blog/2014/03/08/glen-newey/remember-eastern-rumelia/

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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