O estado da humanidade, contado por um senhor preso há 12 anos e meio

Chamo-me Paulo Marques e sou um dos muitos presos nos campos de extermínio, a que um dia o governo deu o nome pomposo de estabelecimentos prisionais.

Estou preso há 12 anos e 6 meses ininterruptamente e ao longo desses anos fui confrontado com situações bizarras, falta de aptidão e competência, num sistema ineficaz, caduco e burocrático que dá emprego a milhares de funcionários públicos, que não acreditam no que estão a fazer.

Lembro que o decreto lei 265/79 é caduco, não funciona nem nunca funcionou. As prisões encontram-se falidas em contabilidade e em meios humanos, com enormes degradações em questão de espaço de habitação e saneamento, proporcionam que doenças contagiosas como hepatites, HIV, tuberculoses, aumentem, pois estão reunidas todas as condições para que isso aconteça.

A inexistência de atendimento médico é outro dos problemas que continuam a existir com os concursos públicos para que sejam empresas privadas a explorar o sector da saúde, piorou. Essas empresas apenas se interessam pela exploração económica do ministério da justiça, coisa inconcebível, pois deveriam estar sob a alçado do ministério da saúde.

O sector de alimentação é caótico, com firmas privadas a fornecer alimentação a reclusos, com comida de péssima qualidade e quantidade. Refiro os EP de Vake de Judeus, Pinheiro da Cruz, prisões onde tenho estado a cumprir pena neste último ano.

Assim é que existem queixas colectivas com abaixo assinado e que a direcção geral prefere fechar os olhos, porque as dívidas a essas empresas ultrapassam milhares de euros.

As prisões estão sempre à espera que o orçamento de estado lhes dê umas migalhas para colmatar alguns buracos financeiros, que alguns directores de EP´s deixam por causa de uma política de má gestão.

Veja-se como está a ser feita a gestão da mão-de-obra prisional, quando os presos poderiam fazer trabalho útil, mas continuam a passar os dias em estado vegetativo, podendo entretanto amealhar um pecúlio para para a saída em liberdade, só que não é essa a política da reinserção social. Preferem deixar os presos sair das prisões sem um cêntimo no bolso, muitas vezes sem dinheiro para as viagens para casa, nos casos daqueles que ainda não perderam os laços familiares.

Só que o governo português prefere manter presos, como stock de objectos de material contaminado em armazéns em ruptura de espaço, transferindo de prisão em prisão, nunca tendo em conta que o recluso sempre que é possível, deve estar numa prisão na área geográfica da residência, para que não perca os laços afectivos e familiares.

Todos os directores gerais que têm passado por esse cargo vem sempre com discursos muito louváveis, mas depois são impotentes perante um sistema pesado, em que a máquina emperra por existirem muitas lacunas nas prisões.

Seja muito bem vindo, Doutor Luís Miranda Pereira e que traga soluções realmente viáveis e que, já agora, cuidado com as traições e com as “políticas palacianas” em que muitas das prisões portuguesas vivem, autênticos reinos feudais.

Também quero deixar um reparo ao presidente do sindicato dos guardas prisionais, que ultimamente tem contestado imenso. Dizem eles que é uma profissão demasiado arriscada, que querem subsídio de risco, mais guardas, etc, etc.... enfim mais dinheiro e menos que fazer.

Gostaria que publicassem a lista de guardas prisionais que morreram em serviço nas prisões portuguesas. Nós, presos, morremos numa escala elevadíssima.

Portugal foi dos primeiros países a abolir a pena de morte e a prisão perpétua. So que, na verdade, somos nós que morremos. Já não vou referir os suicídios e as mortes violentas, mas as outras que não são noticiadas nos órgãos de comunicação social. Essas não costumam ser contabilizadas. Se um recluso passa mal, após as 20 horas da noite, numa cela de habitação, e se for grave, podem ter a certeza que é mais uma morte.

Os serviços de apoio ao preso, tal como o instituto de reinserção social ou serviços de educação, continuam a reboque de leis orgânicas que ninguém entende e a completa falta de coordenação com os tribunais de execução de penas, daí sermos o país que mais pena de prisão cumpre efectivamente.

Digamos que são penas perpétuas encapuçadas, entre a pena que foi aplicada e a que se cumpre. Eu sei do que estou a falar, srª ministra.

Relembro que o ex-director geral e o actual desempenharam altos cargos no instituto de reinserção social.

Claro que existem demasiadas fragilidades neste sistema prisional. Mas também existem soluções. Eu tenho inúmeras, que são inteiramente possíveis e viáveis.

Nós, senhores deputados, queremos que se faça um inquérito a nível parlamentar para que se comecem a assumir responsabilidades, em vez de continuarmos a morrer por enforcamento ou por injecções massivas de doenças contagiosas e mortais.

Para quando a política de reinserção social e a nova reforma prisional, que a srª ministra da justiça tanto falou em finais de Junho? Será que nós, que não pertencemos às universidades e aos clubes de futebol não merecemos uma política condigna de reinserção?

Já assisti a situações demasiado enojantes ao longo destes doze anos e seis meses de prisão já cumpridos e dá-me direito de ser crítico nas palavras que escrevo.

Como poderão imaginar, tenho imenso que relatar. Deixo para outra altura, porque faltam-me as forças ao fim de 20 dias de greve de fome e 6 dias de greve de sede, tudo porque não me deixam ir para uma prisão da área geográfica a que pertenço, que é o EP de Coimbra, bem como o massacre de que tenho sido alvo pela direcção geral que insiste em transferir-me de cadeia em cadeia, em vez de me ouvir e entender os meus protestos de indignação.

Daí a minha greve de fome, contra uma política demagógica.

Paulo Marques Hospital Prisional de Caxias, 17 de Novembro de 2002-11-28

PS: Se possível, gostaria que estas minhas palavras fossem divulgadas nos meios de comunicação social, jornais, TVs, rádios. Caso contrário, eles, enquanto instituição prisional, deixam-me morrer aqui dentro deste hospital. Não tenho apoio de lado nenhum. Já escrevi à ministra da justiça, direcção geral, ordem dos advogados, só que até hoje não recebi qualquer resposta. Daí a minha obrigatoriedade de efectuar esta greve de fome. Já emagreci 15 kilos e tenho o valor de açúcar no sangue de 58 de glicémia e estou bastante debilitado e desidratado.

Com certeza, Senhor Paulo Marques

Fonte: ACED http://planeta.clix.pt/aced

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