Releitura necessária da história

O Brasil e os demais Estados latino-americanos, que nasceram da decomposição dos velhos impérios ibéricos, se mantiveram durante o século 19 na condição de periferia independente dentro do sistema mundial dominado pelos europeus.

Uma exceção notável, no momento em que os novos impérios europeus optaram pela ocupação colonial de seus domínios africanos e asiáticos. Do ponto de vista geopolítico, a América Latina ficou completamente à margem do dinamismo produzido pela competição das Grandes Potencias. Do ponto de vista econômico, o continente foi transformado, neste período, num laboratório de experimentação do “imperialismo de livre-comércio”, concebido teoricamente pelos pais da Economia Política Clássica e liderado ou imposto, na prática, pela Inglaterra. Neste contexto se formou o Estado brasileiro e definiu-se seu lugar dentro do sistema mundial, articulado pelo Império Britânico.

Não era um dominium anglo-saxão, mas estava completamente submetido ao sistema monetário e financeiro da Inglaterra e espelhava-se cada vez mais no modelo político e na legislação norte-americana. Mesmo depois da proclamação da República, o Estado brasileiro seguiu sendo uma organização nacional frágil, com baixa capacidade de incorporação social e mobilização política interna, e sem vontade nem pretensões expansivas. Do ponto de vista estritamente econômico, foi uma economia primária-exportadora até a crise mundial de 1930, seguindo uma trajetória de crescimento e modernização restrita à suas atividades ligadas à exportação e submetendo-se inteiramente às regras e políticas liberais impostas pelo padrão-ouro.

Essa forma de inserção econômica internacional permitiu que o Brasil crescesse até os anos 30, graças à complementaridade entre a sua economia e a economia mundial e graças, sobretudo, à integração do país com as finanças inglesas que permitiram que o país obtivesse, nas fases recessivas do ciclo, o financiamento externo indispensável para evitar crises mais agudas no balanço de pagamentos, como a que levou o país à moratória em 1897. Mesmo assim, esta primeira experiência liberal de desenvolvimento demonstrou ter um limite crônico de ‘restrição externa’, posto pelos seus problemas de balanço de pagamentos e pela fragilidade da sua moeda.

Entre a crise de 30 e o início da Segunda Guerra, o Brasil foi obrigado a uma resposta política interna que resultou na reforma e fortalecimento do estado central e explorou, no campo externo, o espaço aberto pela luta entre as Grandes Potências pela supremacia mundial. Sua margem de autonomia, entretanto, foi pequena e curta, e em 1938 o Brasil se alinhou uma vez mais ao lado da liderança anglo-americana. Do ponto de vista econômico, contudo, a resposta à crise dos anos 30 obrigou o Brasil a um processo quase espontâneo de ‘substituição de importações’ e a um protecionismo pragmático, visando enfrentar o problema da escassez de divisas. Este processo impulsionou a industrialização, mas a substituição de importações espontânea enfrentou limites claros e imediatos, e a continuidade do desenvolvimento só foi possível quando a restrição externa deu origem, a partir de 1937/38, a um projeto de industrialização liderado pelo Estado e voltado para o mercado interno.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o lugar do Brasil dentro da competição geopolítica entre EUA e URSS teve um papel decisivo na definição dos caminhos do seu desenvolvimento. O Brasil não teve posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas foi colocado na condição de principal sócio econômico dos Estados Unidos dentro da periferia sul-americana. Não houve Plano Marshall para a América Latina, nem um projeto regional sustentado pelo acesso privilegiado aos mercados norte-americanos. Mesmo assim, o Brasil contou com o apoio americano, tanto no período democrático como no autoritário, e acabou se transformando numa experiência original de desenvolvimento “excludente” que contou com o apoio dos organismos multilaterais e com a complementaridade, entre os investimentos estatais e o investimento direto do capital privado, de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista. Durante todo o “período desenvolvimentista”, o Brasil manteve uma das mais elevadas taxas médias de crescimento mundial. Mas o crescimento não foi acompanhado de igualdade social, e a forte presença econômica do Estado não implicou na existência de um Estado forte, com um projeto claro de poder nacional.

Na década de 70, este quadro sofre uma modificação importante graças à “crise da hegemonia norte-americana” e à grande disponibilidade de liquidez internacional, que permitiu o afrouxamento da restrição externa. O fim do padrão dólar se somou à derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnam, abrindo espaço para uma nova tentativa brasileira de autonomização de sua política externa, com o projeto frustrado, do governo Geisel, de promoção do Brasil à condição de “potência intermediária” dentro Sistema Mundial. A abundância de crédito privado para os países em desenvolvimento permitiu uma aceleração das taxas de crescimento – e, no caso do Brasil, permitiu que o pais avançasse no processo de industrialização iniciado nos anos 50/60, complementando sua matriz industrial com a produção de bens de capital e dos insumos necessários ao funcionamento da economia.

A contrapartida deste processo foi um endividamento externo que foi além das possibilidades do balanço de pagamentos, sendo responsável em grande medida pelo estrangulamento do crescimento, no momento em que a economia brasileira foi submetida – no final dos anos 70 e início dos 80 – a quatro choques fatais: elevação das taxas de juros internacionais, recessão na economia mundial, deterioração dos termos de troca e interrupção do financiamento externo depois da moratória mexicana. Foram estes os principais fatores que submeteram a economia brasileira a uma severa crise do balanço de pagamentos e que obrigaram os governos da década de 80 a fazer uma política de promoção ativa das exportações e de controle das importações, para dar conta do serviço da dívida externa. Como conseqüência, o país viveu uma recessão seguida de uma redução de sua taxa média de crescimento, ao que se somaram várias desvalorizações cambiais e uma aceleração da inflação.

No início dos anos 90, a vitória americana na Guerra Fria, a nova utopia da globalização e mais uma onda de liquidez internacional criaram as bases materiais e ideológicas da nova virada liberal das elites e do estado brasileiro. Do ponto de vista geopolítico – em particular no período FHC –, o governo brasileiro apostou no nascimento de uma nova sociedade civil e política internacional ou global. Na prática, o que ocorreu foi um aumento da internacionalização dos centros de decisão brasileiros e uma fragilização do Estado, cada vez mais dependente do apoio norte-americano nas situações de crise.

Do ponto de vista econômico, a disponibilidade de capitais internacionais financiou o abandono da estratégia desenvolvimentista e a volta ao livre-cambismo da Republica Velha. Hoje está cada vez mais claro que a onda expansiva dos investimentos externos, na década de 90, não teve o mesmo efeito dinamizador do período desenvolvimentista. Como conseqüência, no início da nova década a economia brasileira foi devolvida à sua velha e permanente “restrição externa”, uma espécie de sinal indelével do lugar periférico do Brasil dentro dos Impérios Britânico e Norte-Americano.

Olhando para trás, destacam-se, nesta história, algumas“recorrências” importantes para o futuro: a) todas as grandes mudanças de rumo estratégico do país ocorreram em momentos de crises ou transformações mundiais; b) a posição e o apoio dos capitais e governos anglo-americanos teve papel decisivo nas escolhas brasileiras; c) em todos os casos, a “restrição externa” econômica e a fragilidade monetária pesaram contra a autonomia brasileira e a favor de um estado fraco; d) as elites brasileiras nunca precisaram da incorporação popular para garantir a reprodução e acumulação de sua riqueza patrimonial ou mercantil nos circuitos financeiros internacionais e com o apoio do seu próprio estado.

Em 2002, a vitória eleitoral de Lula, com seu novo projeto estratégico para o Brasil, ocorreu, também, num momento de mudança internacional. O mito da globalização foi para o balaio, e a guerra voltou ao epicentro do sistema mundial, onde os Estados Unidos acumulam um poder financeiro e militar inquestionável. O eixo geopolítico do sistema se deslocou para longe da América Latina e a economia mundial balança na beira do precipício da deflação que, se ocorrer, poderá globalizar a paralisia japonesa. A moeda brasileira segue fraca como sempre foi e a restrição externa voltou a bater com força na porta da frente. Depois de oito anos de reformas liberais, o Estado aparece, uma vez mais, fraco, desarticulado e com baixa capacidade de iniciativa estratégica.

Neste contexto, a grande novidade é a vitória de um partido de esquerda com um projeto popular e nacional de democratização do desenvolvimento, uma inovação histórica em todos os sentido. A viabilidade do projeto dependerá da sua capacidade de mobilizar o povo e construir uma vontade nacional, obrigando as elites a se voltarem para sua própria terra e sua gente. Se isto ocorrer, o Brasil passará a ter uma posição e um poder externo completamente diferentes, independente do contexto mundial conservador e recessivo, até porque o mundo precisa, urgente, de um modelo substituto na hora da morte da utopia da globalização. José Luís Fiori é cientista político

Publicado no site da Agência Carta Maior José Luis Fiori

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