O que ninguém pergunta

Vocês vão me desculpar, mas eu não posso acreditar que a maior parte dos responsáveis pelas editorias de Internacional utilize o cérebro que eu suponho que tenham. Como é possível que todos - repito: todos - os jornais, tevês, rádios e sites reproduzam a exigência da Casa Branca, com apoio do francês Jacques Chirac, para que a Síria retire suas tropas do Líbano sem lembrar que centenas de países possuem tropas francesas e, destacadamente, norte-americanas? Como?

Pegue o exemplo elementar do Iraque. O secretário de defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, repete para quem quiser ouvir - e os meios repercutem - que seu país só sairá do país quando os conflitos tiverem fim. Como até as pedras sabem que o conflito é causado em grande parte exatamente pela presença norte-americana, é fácil deduzir que a intervenção simplesmente não terá fim. É uma questão simples e transparente.

Lembre-se que este governo exige que a Síria retire 14 mil soldados do Líbano, mesmo que mantenha 120 mil soldados no Iraque, sem intenções de mudar esta realidade. É proibido falar em quantos soldados estão no Iraque - 120 mil, como eu já falei - principalmente quando você faz tal exigência à Síria. Podemos falar na semana que vem, quando o noticiário for diferente, mas não hoje.

Os usos da ONU

Outra coisa interessante, amplamente divulgada nesta segunda. Bush e Chirac cobraram o “cumprimento imediato e completo da resolução 1559 da ONU em todos os seus aspectos, incluindo seu apelo por um Líbano soberano, independente e democrático” e também pela “consolidação da segurança sob a autoridade de um governo libanês livre da dominação estrangeira”, disseram os dois presidentes, em comunicado divulgado pela Casa Branca.

Nenhum editor que realmente influencia muitas pessoas gosta de lembrar que, com ajuda explícita dos EUA, Israel invadiu o Líbano em 1982 e realizou um dos piores massacres da década de 80. Assassinou 20 mil pessoas pelo menos. Ninguém exigiu o cumprimento imediato das resoluções da ONU. Pelo contrário. Os EUA utilizaram seu poder de veto no Conselho de Segurança por diversas vezes. Por sua importância histórica - e a lógica continua a mesma -, este fato mereceria pelo menos duas linhas.

Talvez pudessem citar que só há uma nação no mundo que já foi condenada por práticas de terrorismo internacional. Foi no Tribunal de Justiça Internacional, na década de 80. A Nicarágua entrou com um recurso e conseguiu condenar os Estados Unidos pelos ataques. Honduras, El Salvador e Guatemala também sofreram o peso das atrocidades, mas de forma indireta.

A Nicarágua, no entanto, tinha sido o alvo de outra nação, e isso foi provado à época. O governo da Nicarágua e os grupos de defesa de Direitos Humanos possuem larga documentação sobre o assunto, fazendo - repito - com que haja uma única nação que foi oficialmente condenada por terrorismo internacional. Coincidentemente, é a mesma que lidera a “Guerra ao Terror” hoje.

Ela vai ser liderada, como indicou recentemente a Casa Branca, por John Negroponte, que por acaso era embaixador dos EUA em Honduras e foi o responsável por ignorar o veto à guerra do Iraque em 2003, como representante de seu país na ONU.

O que nós fazemos é o correto

Você fica sabendo disso, mas ouve nos grandes telejornais que “este será o mandato da diplomacia”. Jorge Bush foi à Europa comunicar que “perdoa” os países que se opuseram à guerra. Ele está “disposto” a olhar para frente, mesmo que a violência só aumente nos lugares onde há financiamento norte-americano e que os problemas se acumulem nos países invadidos. Faz exigências, mas não ouve dos editores questionamentos sobre porque ele próprio não faz o mesmo. Ninguém pergunta: “Senhor Bush, por que o senhor exige que se retirem 14 mil homens do Líbano, mas quer manter 120 mil no Iraque”?

“Senhor Bush, por favor, desculpe a insistência. Eu tenho mais uma pergunta. Por que o senhor pressiona o governo da Coréia do Norte por causa das armas nucleares, mas mantém - somente na Europa - 480 armas nucleares?” Ou então: “Senhor Gerhard Schröder, por que a Alemanha se opõe, no discurso, à guerra mas se mantém como um dos países que mais recebem investimentos bélicos dos Estados Unidos? Para quê eles servem?”

Eis algumas perguntas que, por questão de sanidade mental, deveriam ser feitas. Basta parar para pensar. Mas que, de alguma forma, nunca são feitas.

A resposta correta é que se é dos EUA, então é “correto”. Trata-se de um esforço de “paz duradoura”. Mas quando são eles, aí não, aí a coisa muda. Muda e pronto, escrevam aí e não façam perguntas racionais. E ninguém faz.

Não é possível lembrar essas coisas se você não usa adequadamente o seu cérebro. Mas se você é editor de Internacional e possui pelo menos 20 anos de profissão, deveria automaticamente saber disso.

Claro que você pode descobrir isso em um ou dois anos, mas sejamos tolerantes. Você tem 20 anos de profissão. Pode sair, beber e perder quantos neurônios quiser. Vinte anos é bastante coisa, pode relaxar. Em uma semana de pesquisa, você rapidamente fica sabendo dessas coisas. Você deveria escrever sobre essas coisas, logo que as descobre. Mas não é possível, caso não utilize a razão.

O que você deve saber e fazer

Mas por que Israel invadiu o Líbano? Bom, essa é fácil, certamente as pedras da Faixa de Gaza sabem, mas eu não vou arriscar dizer que os editores de Internacional sabem. Um repórter do New York Times, James Bennet, finalmente reconheceu os motivos - depois de 20 anos - e publicou na edição de 24 de janeiro de 2002. Noam Chosmky lembra: “foi uma guerra pela Cisjordânia. A idéia era eliminar a ameaça de negociações que vinha dos palestinos”.1

Na cobertura do falecimento de Iasser Arafat, a mídia supõe que você possa venerar o ex-líder palestino, mas nunca saber o que ele fez. Você não leu em nenhum lugar que, naquela época, Arafat e a Organização Pela Libertação da Palestina (OLP) estavam tentando negociar uma saída pacífica. O que você leu foi o seguinte: agora que Arafat morreu, abriu-se um caminho para a paz.

Sim, você pode venerá-lo, afinal milhões o fazem, mas se convença de que ele impedia a paz. Simplesmente não faz sentido. São atitudes contraditórias. São irracionais. Mas não há problema nisso, porque ninguém vai evidenciar para milhares de pessoas que não faz sentido. Até porque o sentido não é construído pela razão quando os editores não utilizam o cérebro.

_____________________________ Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net), colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br), estudante de Comunicação Social da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Inciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ. Contato por e-mail: [email protected]

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