MONNA GOSTANZA

No final do século 16, na cidade italiana de Bagno a Acqua, atual Casciana Terme, no coração da Toscana, vive Gostanza da Libbiano, uma camponesa de 60 anos de idade, viúva, que divide a casa com duas velhas amigas, também viúvas, e a neta Diadora, de apenas sete anos de idade.

Gostanza exerce, desde jovem, a prática da medicina popular para a cura de doenças, utilizando-se de ervas e óleos aromáticos, ajudando desta forma, os pobres camponeses que a procuram. Uma das práticas que utiliza para diagnosticar doenças, é o de misturar miolo de pão aos doentes. Tais práticas põem em alarme as autoridades aclesiáticas locais. Estamos em plena Contrareforma Católica, e o fato de ser uma mulher, muito bela e carismática, fazia a sua existência ainda mais intolerável aos olhos dos ferforosos cristãos.

Mesmo a medicina oficial era, nos tempos de Gostanza, baseada em um terreno bastante empírico. A medicina popular faz parte de uma cultura milenar, praticada desde muitos séculos antes do nascimento do cristianismo, de forma que, ao longo dos anos, foram misturadas noções de medicina popular derivadas de conhecimentos práticos e de rituais mágicos. Infelizmente, na Idade Média, tudo o que ainda sobrevivia dos velhos cultos e ritos pagãos era considerado pelos cristãos e protestantes, como culto ao Demônio.

Em 1231 o papa Gregório IX edita a bula “Excommunicamus”, na qual há procedimentos pelos quais inquisidores profissionais seriam enviados para localizar hereges e persuadi-los a se retratar. Em abril de 1233, o mesmo papa edita duas bulas que marcam o início da Inquisição, instituição da Igreja Católica Romana que perseguiu, torturou e matou vários de seus inimigos, ou quem ela entendesse como inimigo, acusando-os de heresia, por vários séculos. A bula "Licet ad capiendos", a qual definitivamente marca o início da Inquisição, era dirigida aos dominicanos, cruéis inquisidores, e tinha o seguinte teor: "Onde quer que os ocorra pregar estais facultados, se os pecadores persistem em defender a heresia apesar das advertências, a privá-los para sempre de seus benefícios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis".

A Inquisição atuou barbaramente durante seis séculos da era cristã, atingindo o nível político, econômico, social, psicológico e cultural de toda a sociedade, atuando com mais força e eficácia na Espanha, Portugal, França, Alemanha e Itália. O Santo Ofício, durante toda a sua história, torturou e executou, principalmente na fogueira, mais de um milhão de pessoas, essencialmente mulheres, judeus e muçulmanos convertidos, sendo que todos os bens das vítimas eram tomados pela Igreja. A inquisição queima também milhares de cientistas e intelectuais, desde que houvesse uma oportunidade. Foram todos vítimas das autoridades eclesiásticas, de personalidades católicas e protestantes, da ignorância e do fanatismo popular.

Em 1252, o papa Inocêncio IV, através da bula “Ad extirpanda”, autoriza o Tribunal da Inquisição a praticar a tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistência. A prática de queimar hereges em autos-de-fé eram verdadeiras festas, onde os membros da Igreja e da Corte se vestiam de grande pompa, e geralmente a faziam em homenagem ao rei. Graças a esta brilhante idéia cristã, a obtenção das confissões de culpa é enormemente facilitada. Esta bula papal será confirmada pelo papa Urbano IV em 1261. Em 1258 já havia acontecido o primeiro processo contra uma “bruxa”, e a primeira vítima será queimada em Toulouse, em 1275.

Na manhã do dia 4 de novembro de 1594, provavelmente depois de uma denúncia anônima (o Santo Ofício acolhia denúncias de quem quer que fosse, inclusive através de cartas anônimas), Gostanza da Libbiano é convocada pelo Monsenhor Roffia, vigário da igreja de San Miniato al Tedesco, por ordem do bispo da Repubblica di Lucca.

A primeira parte do processo contra Gostanza é realizada sob a responsabilidade do Monsenhor Roffia, um homem com quase 50 anos de idade, estimado e respeitado, e que pertencia a uma das famílias mais ricas da Toscana, e gozava de um poder civil e religioso - um poder praticamente sem limites para a época. No dia 4 de novembro de 1594, acompanhado pelo notário Viviani, Monsenhor Roffia interroga, no Palazzo dei Vicari, na pequena cidade de Lari, alguns testemunhos, e ordena imediatamente a prisão de Gostanza. No dia seguinte, já no cárcere eclesiástico de Lari, Gostanza é submetida ao primeiro interrogatório, onde é acusada de bruxaria.

Nos processos do Santo Ofício, a denúncia era prova de culpabilidade, cabendo ao acusado a prova de sua inocência. O acusado era mantido num cárcere, incomunicável, e ninguém, a não ser os agentes da Inquisição, tinha permissão de falar com ele, e nenhum parente podia visitá-lo. Geralmente o acusado ficava acorrentado, e era responsável por todos os gastos referentes a sua prisão. O julgamento era secreto e particular, e o acusado tinha de jurar nunca revelar qualquer fato a respeito dele, no caso de ser solto. Nenhuma testemunha era apresentada contra ele, nenhuma lhe era nomeada, pois os inquisidores afirmavam que tal procedimento era necessário para proteger seus informantes.

Monsenhor Roffia segue até a cidade onde vivia Gostanza, Bagno a Acqua, e interroga outras testemunhas, entre elas a pequena Diadora, neta de Gostanza, de apenas sete anos de idade. Em 7 de novembro o processo continua, em sede definitiva, a San Miniato.

Depois dos primeiros interrogatórios exclusivamente verbais, Gostanza é “afetuosamente examinada”, para a averiguação de uma possível “marca de bruxa”, que poderia ser desde um mamilo excessivamente grande até uma simples mancha, uma verruga, ou uma outra anomalia física. O exame era sempre muito bem acurado, e freqüentemente a prova era encontrada nas partes íntimas da vítima. Depois de examinada, Gostanza é submetida à “tortura da corda” (é nua, pendurada ao teto da sala inquisitória, com os braços puxados por detrás das costas, através de uma uma corda amarrada firmemente aos pulsos). O corpo desta forma fica imobilizado numa posição dolorosa, enquanto o padre inquisidor faz as perguntas, que devem ser respondidas de acordo com o interesse do Santo Ofício.

Em 1376, o inquisidor Nicolau Eymerich publica o "Directorium Inquisitorum". Este verdadeiro Manual dos Inquisidores, é revisto e ampliado por Francisco de La Peña, onde encontram-se conceitos e normas processuais a serem utilizadas pelos cruéis inquisidores. Tanto Eymerich como La Peña são monges dominicanos, e fazem uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas acerca do controle das doutrinas da Igreja que culminaram na instituição da Inquisição. O Manual ensina, de forma prática e direta, o bom exercício do ofício de inquisidor. Sua importância é tão grande para a Igreja que, depois da Bíblia, foi um dos primeiros textos a serem impressos, em 1503, em Barcelona.

A Santa Igreja dava uma certa autonomia para os seus representantes inquisidores. A inquisição espanhola, por exemplo, era conhecida pela crueldade e obscurantismo. Em 1483, Tomás de Torquemada é nomeado Grande Inquisidor de Castela, e esse monge dominicano faz uma ampla utilização da tortura e da confiscação dos bens das vítimas, e estima-se em 20 mil o número de pessoas barbaramente torturadas e queimadas durante o seu mandato.

Em 1484, o Papa Inocêncio VIII torna pública sua bula contra as bruxas, “Summis desiderantes affectibus”, na qual qualifica as bruxas como adoradoras de Satanás, e solicita uma ação mais enérgica contra as mulheres, através da tortura para obter confissões. Em 1487, os monges dominicanos alemães, Jacob Sprenger e Heinrich Institoris Kramer publicam o “Malleus Malleficarum” ou, Martelo das Bruxas, um livro de 400 páginas, que será o guia, aprovado pela hierarquia eclesiástica, de caça às bruxas. Neste guia, existem instruções para identificar as bruxas, a torturá-las para as fazer confessar, e como os inquisidores podem se absolver mutuamente, depois de uma cessão de tortura. Durante dois séculos e meio, na Alemanha, depois da publicação do “Malleus Malleficarum”, negar a bruxaria podia levar à fogueira. A histeria criada pelos monges se espandiu por toda a Europa.

O manual dos dominicanos foi um verdadeiro guia de caça às bruxas. Tudo surgiu do medo que as mulheres que provocavam à Igreja. No “Malleus Malleficarum”, se podem ler coisas como: "a bruxaria brota do apetite carnal, que nas mulheres é insaciável”; “quando uma mulher pensa por si mesma, pensa no mal”; “as mulheres intelectualmente são como crianças, pois são mentirosas, fracas de mente e necessitam do controle masculino”; “elas são responsáveis da impotência do homem, nos seduz e destroem a alma". Outras e muitas obras deixam claro o caráter misógino da Igreja Católica.

Durante muitos séculos uma forte aversão dos cristãos e protestantes contra as mulheres, nas quais sempre viam uma bruxa em potencial, assombrou a Europa. Foi uma época em que o terror dominou durante séculos. O resultado deste ódio foi que quase um milhão de pessoas foram brutalmente torturadas e executadas, sendo 85% mulheres. A maior parte das torturas que eram aplicadas às mulheres tinha caráter sexual, sempre encobertas pelo "sagrado". Alguns fanáticos inquisidores, reprimidos sexualmente pelo voto da castidade, eram obcecados pela agressão sexual, transformando alguns julgamentos em repugnantes depravações sadomasoquistas.

Muitas vezes a tortura era decretada e adiada na esperança de que o medo levasse à confissão. A confissão podia dar direito a uma penalidade mais leve e se fosse condenado à morte apesar de confesso, o sentenciado podia "beneficiar-se" com a absolvição de um padre para salvá-lo do Inferno. A tortura também podia ser aplicada para que o acusado indicasse nomes de companheiros de heresia. As testemunhas que se contradiziam podiam ser torturadas para descobrir qual delas estava dizendo a verdade.

Não havia limites de idade para a tortura; meninas de 10 anos e mulheres de 80 anos eram sujeitas à tortura. As penas impostas pela Inquisição iam desde simples censuras (leves ou humilhantes), passando pela reclusão carcerária (temporária ou perpétua) e trabalhos forçados nas galeras, até a excomunhão do preso e sua morte na fogueira. Estes castigos eram normalmente acompanhados de flagelação do condenado e confiscação de seus bens em favor da Igreja.

A dor e a humilhação é tanta, que após várias seções de torturas, Gostanza, que até então havia negado toda a acusação, desiste de proclamar a sua inocência, e finalmente, para o delírio da pequena platéia inquisidora, confessa de haver praticado feitiçaria.

“A verdade é que sou uma bruxa”. Pensa que, com esta declaração, poderá por fim a toda a dor que estava sentindo. Talvez Gostanza espera obter, com a condenação - já que a morte pelas mãos da Inquisição era para ela, naquele momento, um fato mais do que certo - o status oficial de uma mulher dotada de poderes extraordinários, atestado pelos representantes do poder eclesiástico.

A Santa Igreja sempre teve medo daquele infinito poder, existente nos gestos mais simples e naturais, que toda mulher carrega, e Gostanza da Libbiano é apenas uma das ameaças para esta ordem religiosa. Monsenhor Roffia interroga Gostanza em tom severo, após sucessivas seções de torturas e humilhações. Ele acredita piamente que somente através da punição do corpo a alma pode ser salva.

Induzida pelo inquisidor, Gostanza começa a confessar as práticas diabólicas, construindo um seu mundo metafísico, entalhado em fortes fantasias, como feitiçarias, delitos macabros, práticas de vampirismo, metamorfoses, vôos noturnos e bacanais realizados na Cidade do Diabo, confissões estas fomentadas por uma inesgotável riqueza, oriunda do rico imaginário popular e fruto da fértil imaginação daquela velha senhora.

Para auxiliar Monsenhor Roffia no processo, a Igreja encaminha um representante do Santo Ofício, o franciscano Mario Porcacchi da Castiglione, doutor em teologia e guardião do convento de San Francesco. Porcacchi tem apenas 31 anos de idade, e apesar da pouca experiência num processo inquisitório, ele se convencerá rapidamente da culpa de Gostanza. Quando não estava sendo torturada ou interrogada, Gostanza permanecia presa no porão do eclesiástico palácio, numa pequena, escura e fria sala, onde não podia nem ao menos ficar em pé. A pobre velha têm amarradas aos punhos grossas correntes que a prendem à parede. A única visita que lhe é permitida é a dos inquisidores. Gostanza não quer mais ser torturada, e confirma, fora da sala dos tormentos, tudo o que confessa durante os interrogatórios.

Nos dias sucessivos, os inquisidores voltam a fazer as mesmas perguntas dos dias anteriores, para se certificarem dos depoimentos, através das coincidências e contradições. As perguntas são repetitivas, e as seções duram horas, entre interrogatório, tortura e pausas para a higiene pessoal e alimentação dos inquisidores. A cada interrogatório Gostanza, no desespero e estresse de tanta dor e humilhação, inclui novos particulares e variações das suas fantasias, alimentando a tara dos inquisidores. Desta forma o interrogatório segue o percurso de uma espiral.

Gostanza encontra-se em condições de inferioridade perante os dois inquisidores, pois não possui fortes argumentos para a sua autodefesa, e desesperada, começa a contra-atacar os seus agressores. Age de forma diferente para com cada inquisidor, comportando-se de forma humilde e submissa em alguns casos, e em outros de maneira ameaçadora e insinuante. O tom de voz que usa ao falar com o jovem e curioso teólogo Porcacchi é quase que sedutor, para talvez conseguir obter deste um reconhecimento da sua importância como uma mulher com dons divinos. Porcacchi, embora possua um aspecto moderado, é intimamente agitado pelas obscuras questões às quais se encontra atado, e não se interessa pela Gostanza curandeira ou adivinhadora, mas pela bruxa Gostanza e seu envolvimento com o Demônio.

Monsenhor Roffia tenta fazer com que Gostanza se arrependa e salve ao menos a sua alma. - “O cristianismo é a corrupção das almas através dos conceitos de culpa, punição e imortalidade”, escreveria um dia Nietzsche - Já o franciscano Porcacchi representa para Gostanza o perigo mais insidioso pois, diferente de Roffia, é inclinado a acreditar em todas as fantasias que no desespero da tortura Gostanza havia confessado. As perguntas que saem da sua boca, proferidas com voz melíflua, abrem as portas para as anedotas mirabolantes da velha, um imaginário populado daquelas belas figuras monstruosas, que deixou seus traços nas pinturas de Bosch e Bruegel.

Este rico imaginário, por sua vez objeto do interrogatório, na Idade Média era difuso não apenas entre as pessoas incultas, mas também entre muitas pessoas instruídas. Dos interrogatórios do processo se percebe como tal imaginário, no qual se juntam diabos e bruxas, não se limitasse a criar apenas a fantasia dos artistas ou nutrir as páginas dos livros especializados no assunto, mas penetrasse profundamente na vida das pessoas, condicionando a cada dia os seus comportamentos.

Os depoimentos fantasiosos de Gostanza passam por reuniões das bruxas sob uma imensa nogueira, vôos noturnos em galope sobre o dorso de estranhos animais, inúmeras visitas à Cidade do Diabo, descrita como o “jardim das delícias”, até as suas relações carnais com o Grande Diabo, descrito como “um belíssimo jovem, bem vestido, com um rosto artisticamente esculpido e de cor avermelhada”. Quando começa a contar das suas profanações às hóstias consagradas, é imediatamente interrompida por Roffia: “Quem lhe ensinou a fazer estes nefastos sacrilégios?” - grita o vigário, bastante irritado.

No dia 19 de novembro, chega de Firenze o inquisidor geral para o território do Granducato, o franciscano Dionigi da Costacciaro, que participará das audiências do processo até 24 novembro. Costacciaro era um homem bastante velho, e já havia sido ministro provincial da região da Umbria, inquisidor em Siena e, desde 1578 era inquisidor geral de Firenze. Nos últimos anos de sua vida, participará como juiz no processo de Giordano Bruno, em Roma.

Depois de oito anos de processo conduzido pela Santa Inquisição, em Roma, durante os quais lhe são arrancadas confissões, sob tortura, o filósofo italiano Giordano Bruno é condenado à morte como “herege obstinado e ímpio”, e queimado vivo numa fogueira, na Piazza dei Fiori, em Roma, no dia 17 de fevereiro de 1600. Bruno havia ousado definir o Universo como infinito, e admitia a hipótese da existência de formas de vida fora da Terra. Tudo isso era demais para a Igreja. Bruno se defende, tentando mostrar que as suas idéias não estão em contradição com as doutrinas cristãs, mas tudo em vão. Conhecido como o filósofo da liberdade e da tolerância, firme defensor das teorias copérnicas e impulsionador da lei da Natureza, rejeitou a hipótese de se retratar, o que o teria livrado da morte. Tiveram o cuidado de lhe cortar a língua antes de enviá-lo ao local da execução, para evitar o risco de que as suas palavras pudessem emocionar a multidão que foi assistir ao espetáculo (segundo o papa Inocêncio IV, era “de fundamental importância cortar a língua dos condenados ou amordaçá-los antes de acender o fogo, porque, se têm possibilidade de falar, podem ferir, com suas blasfêmias, a devoção de quem assiste a execução”). O principal acusador de Bruno, o cardeal Bellarmino, será mais tarde canonizado e, em 1930, proclamado “Doutor da Igreja”, enquanto que Bruno deixou para a humanidade 309 obras filosóficas, trabalhos de cosmologia, matemática e ciência, além de um maravilhoso exemplo de vida.

Costacciaro era um homem inteligente e eqüilibrado, conhecedor da cultura de seu tempo e muito respeitado no Vaticano. Chegando em San Miniato, procura imediatamente ignorar os dois juízes, que estavam mergulhados num mundo de medo e suspeitas alimentadas por invejas, mágoas e rancores, típicas dos pequenos borgos provincianos da Itália medieval. Nada destas particularidades poderia interferir no raciocínio pleno da ortodoxia teológica, colocada naqueles últimos anos em risco pela heresia que vagava por toda a Europa.

Quando se apresenta ao inquisidor geral, Gostanza muda de estratégia, vendo em Costacciaro uma última chance de escapar da morte na fogueira. Diz ao inquisidor fiorentino que havia fantasiado as suas declarações perante os dois juízes, que com várias seções de tortura, a haviam forçado a se autoacusar de horríveis crimes que jamais havia cometido.

É aterrorizada da idéia de que se iniciem novas seções de tortura: “pelo medo da corda e a dor que sentia ao ser torturada, juraria até que Cristo não vivesse no Céu”, diz Gostanza a Costacciaro. Queria talvez blasfemar, diante daquele grosso crucifixo de ouro e ébano pregado na parede da sala, e talvez dizer, em alta voz, que a concepção de Deus é uma das coisas mais corruptas que apareceram no mundo, mas Gostanza fazia claramente o seu jogo, e parecia conhecer bem o campo em que estava jogando. Age de maneira instintiva, sem haver elaborado um verdadeiro plano de ação.

No âmbito de uma cultura prevalentemente oral, Gostanza é mestre no uso da palavra falada, e sabe muito bem que pode contar com alguns elementos que jogam a seu favor. Encontra na credulidade de Porcacchi, as quais as dúvidas de Roffia opõem uma fraca resistência, um terreno sobre o qual pode haver uma possibilidade de reação. A credulidade dos dois primeiros juízes lhe concede uma considerável vantagem, pois são os mesmos exageros contados durante as suas confissões que proporcionam ao terceiro juiz a possibilidade de inverter a rota do processo. Costacciaro não acredita nas fantasiosas palavras de Gostanza, e decididamente a situação muda, quando este experiente inquisidor entra em cena. Um fato bastante importante a se observar, é que Costacciaro é de Firenze, capital do Granducato no qual o território transgride a diocese de Lucca, capital por sua vez de um Estado independente e limítrofe. Uma situação como esta, particularmente propicia o surgimento de conflitos de todos os gêneros.

Costacciaro não encontra dificuldades, através de válidos argumentos teológicos, em desmontar o grande cenário criado pelos incompetentes e fanáticos juízes locais, com a colaboração ativa de Gostanza. “os Diabos – diz o inquisidor – vivem no fogo eterno e em contínuo tormento. Não como a imputada declarou, em tantas exaltações, festas e bacanais. No Inferno, não existe nada mais do que cruzes, tormento e fogo eterno; onde existem contínuas e eternas penas; onde não se desfruta nada, não se luxúria, não se faz bacanais de alegria. O Demônio é apenas um anjo caído. E todos os anjos, Deus criou incorpóreos, sem os órgãos efetivos para a procriação, como os fez aos homens. Tudo isto para mim é bastante claro, que você, Gostanza, depôs em falso.”

A partir deste episódio, Costacciaro deixa bem claro que o verdadeiro processo é aquele por ele conduzido. As duas partes do processo correspondem a lógicas diferentes. Enquanto a primeira parte, conduzida pelo Monsenhor Roffia e padre Porcacchi segue uma lógica do tipo medieval, a segunda é animada de um espírito que pode ser definido como moderno.

Estamos no ponto de confluência entre duas épocas. Os tratados sobre os quais é formado Porcacchi estão para ser substituídos por novas tomadas de posições. O poder eclesiástico, adequando-se a nova visão do mundo, que se evolve graças às descobertas geográficas e aos progressos da ciência, muda de estratégia. Os autos-de-fé preparados para as bruxas, no obscuro período medieval, não se adequam mais às novas exigências, porém esta mudança será muito lenta, e muitas mulheres ainda continuarão, por muito tempo, a serem queimadas nas fogueiras, seja na Europa Católica como na Europa Protestante. A última “bruxa” será queimada em Poznan, em 1793, e em 1826 o último herege é queimado vivo pela inquisição espanhola.

Monsenhor Roffia e padre Porcacchi seguramente haveriam queimado Gostanza, pois reconheciam e temiam o poder feminino iluminado por aquela velha senhora. Cortacciaro, porém, é mais sutil e representa uma nova política do Santo Ofício. Aquela que, apesar de absolver as mulheres da acusação de bruxaria, impedia contudo que estas continuassem a exercer qualquer tipo de profissão e, tirando-lhes os instrumentos de trabalho, comprometia a autonomia econômica das condenadas, conseguindo desta forma negar a sua identidade.

Gostanza termina por contar a história da sua vida, deixando as suas fantasias de lado, que já não lhe servem mais. “Eu não sou uma camponesa como vocês acreditam que eu seja - diz Gostanza ao inquisitor geral, - eu sou filha de messer Lotto Niccolini, um nobre fiorentino. Minha mãe, monna Aquiletta, que era a sua serva, ficou grávida de mim”. A partir deste dado anagráfico parte um reconhecimento das circunstâncias, entretecido de superações e violências, que caracterizaram, desde o início, a vida da acusada. “Um dia – prossegue Gostanza, - quando eu era apenas uma menina de oito anos de idade, e vivia em Fratta, na vila onde morava meu pai, enquanto eu estava sozinha em frente à nossa casa, três pastores que passavam por ali me raptaram, e me levaram até a casa de Francesco di Lorenzo, onde fui violentada por Lenzo, seu filho. Vós não imaginais o tormento que era dormir com este Lenzo, sendo eu de pouca idade”.

Absolvida da acusação de bruxaria, Gostanza é contudo condenada a “não tornar mais a sua casa, nem ao menos se aproximar da região onde vivia, sob ameaça de prisão e castigo. Não poderá entrar mais em contato com parentes e amigos. É proibida de medicar homens, mulheres e animais, e deverá dizer aonde irá morar, para que possa ser observada de perto”. Diferente do poder arcaico, que sentia a necessidade de ostentar a própria força praticando penas espetaculares, o poder moderno age de maneira mais eficaz, excluindo da sociedade a pessoa considerada perigosa, portadora de uma cultura diferente.

No final do processo, Gostanza é uma pessoa derrotada e humilhada, ferida na sua mais profunda intimidade. A sua individualidade, as características que a faziam uma mulher especial, são frutos de um conjunto de relações interpessoais, estabelecidas ao interno do grupo ao qual ela pertencia. Que esperança poderia ter Gostanza, que vivia em meio à uma sociedade misógina e falocrática, que considerava a mulher como um ser inferior? Ainda havia a pobre velha a tipologia clássica da bruxa: pobre, analfabeta, viúva, independente, pertencente ao mundo rural, e depositária de um conhecimento empírico da cura através das ervas. Era sem dúvida uma mulher diferente, e por isso era, de alguma forma, uma ameaça aos interesses nefastos da Igreja.

Gostanza havia criado, na região onde vivia, um tipo de associação de viúvas, junto às quais havia viabilizado uma verdadeira empresa herborística, que era a única via de sustento daquelas pobres senhoras. O faturamento de anos de trabalho era bastante considerável, e a Igreja, como de fato sempre fazia, seqüestrará o bom montante de fiorini das pobres viúvas.

Há quem afirme que ainda hoje o fantasma de monna Gostanza, inquieto de não haver encontrado a morte como devia de ser, percorre pelas noites adentro as grandes salas de tormento da igreja de San Miniato.

Fábio Rossano Dário Pisa – Itália

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