O Bem, o Mal e o Neoliberal — 2a parte

A tendência da defesa contínua, como a defesa necessária dentro de um ambiente de trabalho, é a de se cristalizar, gerando a banalização da injustiça, da humilhação, da violência cotidianas. Caso contrário os trabalhadores enlouqueceriam diante das pressões criadas pelo sistema neoliberal de organização, ou de desorganização premeditada e lucrativa, do trabalho. A análise é de Renato Kress, editor da Revista Consciência.Net

Nem Eros nem Thanatos, trabalho.

Em sua última teoria das pulsões Freud designa Eros como a totalidade das pulsões de vida em oposição a Thanatos, as pulsões de morte. Superficialmente comentando, esses impulsos delimitariam as razões por trás das ações humanas. E é desses impulsos ou desse impulso único, situado no limbo entre o sofrimento e o prazer, que leva o homem a executar trabalho, que esta segunda e modesta parte do artigo intitulado “O Bem, o Mal e o Neoliberal” trata.

------------------------------------------ “Quando se pede a Deus o sofrimento, tem-se sempre a certeza de ser bem atendido” — Leon Bloy

Como primeiro plano deveríamos definir o que entendemos por sofrimento. Para além do sofrimento dicionarizado, do “padecimento, infortúnio, desdita, desgraça, flagelo, infelicidade”. Mencionamos anteriormente as relações entre sofrimento e emprego, referindo-nos ao sofrimento dos que não estão inseridos no mercado de trabalho. Cumpre mencionarmos as relações entre o sofrimento e o trabalho, ao sofrimento dos que estão inseridos nesse universo do labor. Afinal, sabemos que não é a entrada no cada dia mais seleto grupo dos empregados que vai garantir a satisfação de todas as nossas necessidades como cidadãos e seres humanos. A transformação da injustiça social numa banalidade reside sobre um processo de reforço recíproco de uma parte pela outra, da fuga do sofrimento – pulsão de vida ou “rejeição” da pulsão de morte – que repousa em uma condição, para a entrada no sofrimento que repousa na outra.

O sofrimento como expiação, como remissão dos “pecados” contra os “deuses” não é nenhuma originalidade católica que Nietzsche criticaria como a religião do “gado humano”, mas a tradição católica de uso da resignação e da resiliência – qualidades importantes do espírito humano – para a manutenção de poder pura e estritamente temporal ajuda muito na condição da formação da indiferença aviltante e vergonhosa da sociedade brasileira. Resistir, arriscar ser humano e não tornar-se indiferente, opaco, oco, servil, é ser chamado de fundamentalista irracional, é ser demonizado pela religião neoliberal midiotizada do bispo Bush e dos Papas Cheney e demais magnatas do petróleo.

Trabalho telecinético

A impressão veiculada pela mídia da conseqüência da mecanização do trabalho ainda reescreve o discurso do meio do século XIX, onde se acreditava que o sofrimento no trabalho fosse completamente eliminado pela mecanização e robotização, que de alguma maneira tão tecnológica que nos soa quase mágica, se teriam abolido as obrigações mecânicas, as tarefas de manutenção e a relação direta com a matéria. Sobrariam nossos cada vez mais inutilizáveis “tempos livres” para consumirmos, sendo essa a soberana vocação do hommo neoliberalis.

Turismo no inferno

------------------------------------------ “O inferno deve ser algo assim como a América Latina, mas a sério” — Sofocleto, Sinlogismos Lembra-se, o leitor, das imagens de uma reportagem de televisão ou retém ainda a lembrança de uma visita guiada a uma fábrica de aspecto asseado, totalmente clean? Infelizmente tudo isso não passa de clichê, o que as empresas mostram são suas fachadas e vitrines, previamente decoradas e oferecidas de bom grado aos olhares de curiosos ou visitantes. O que se efetua aí é a velhíssima piada do turista no inferno: visitar é ótimo, quero ver é morar lá. Por trás da vitrine televisionada há o sofrimento, bem real, dos que trabalham. Dos que pretensamente nem sequer existem, da legião fantasma que assume as tarefas comprovadamente arriscadas à saúde sem qualquer sombra de direito trabalhista. Para que o texto não fique tão abstrato seguem exemplos bem físicos de onde se pode encontrar tais quadros: firmas de serviços de manutenção nuclear, firmas de limpeza (seja em indústrias ou escritórios, hospitais, trens, aviões etc.), montadoras de automóveis, matadouros industriais, empresas avícolas etc. Depois os âncoras dos telejornais quase que apocalípticos e místicos nos vêm com as “inexplicáveis” “gripe do frango”, “febre aftosa” e outras “maravilhas” (do controle populacional neomaltusiano e neoliberal) geradas por animais encaixotados do nascer ao morrer, sem nunca terem visto a luz do sol, alimentados com ração transgênica, tomando vacinas e vitaminas sintéticas goela abaixo para conseguirem (sobre)viver até o abate. Mas isso é fichinha perto das radiações ionizantes, vírus, fungos, amianto, dos que se submetem a horários alternados, a lista é quase interminável. Tais malefícios são relativamente recentes e vêm se agravando e multiplicando na lógica do todo poderoso capital.

Psicossomático ou psicoporrada?

Ali, atrás das vitrines fabris televisionadas, há o sofrimento dos que temem não satisfazer, não estar à altura das imposições da organização do trabalho: horário, ritmo, formação, informação, aprendizagem, nível de instrução, diploma, plano de carreira, experiência, rapidez de aquisição de conhecimentos teóricos e práticos, adaptação à ideologia, “cultura” ou “família” da empresa, exigências, fricotes e frescuras do mercado, relação com os clientes, particulares, público etc.

O papel(-)higiênico da imprensa.

Há mais de três décadas os jornalistas midiotizados deixaram de fazer sondagens sociais ou reportagens no mundo do trabalho comum para se dedicarem a “matérias” sobre as luzes das vitrines do progresso. Pouco ou nenhum interesse pelo sofrimento que deseja cada vez mais ver como “o outro”, o “corpo estranho”. Somente o martírio das vítimas da violência e das atrocidades bélicas, à distância, como a situação da Palestina, a neurose cobiçosa e avarenta da Casa Branca por petróleo a qualquer custo no Irã, no Iraque, na Venezuela onde quer que haja uma gota preta e seborrenta de ouro negro, se oferece à curiosidade dos nossos “telespectadores”. O sofrimento próximo é banalizado e substituído pelo sofrimento teleguiado (ou vídeoguiado), projetado em uma sensibilização cinematográfica com as questões palestina, iraquiana. É a mídia amparada nos capitais vultosos e no discurso único do neoliberalismo docilizando a reação do público (porque é muito difícil encontrar povo, com sentimento de nação e de pertencimento, com ethos, hoje em dia).

Do mundo do trabalho real, cotidiano, não banal, mas banalizado, não se ouvem senão ecos amortecidos na imprensa e no espaço público, ecos amortecidos por sindicatos completamente entregues aos interesses dos grandes capitais, o que nos leva a crer que as parcas notícias que surgem sobre escravidão, sub-empregos e violências no trabalho não passam de excepcionalidades, não tendo significado nenhum no que concerne à situação geral do mundo do trabalho hoje em dia. Chega a ser imoral a indignação afetada dos “âncoras” dos telejornais com essas matérias e a forma como eles repentinamente se riem do resultado de um campeonato de futebol recente.

O fantasma da incompetência.

O que é o “real” do trabalho? Calma, não vamos oferecer pílulas azuis ou vermelhas. A definição de “real” no estudo do trabalho está mais avançado que o mero conceito da resistência ao conhecimento. Percebe-se o “real” do trabalho muito mais como a defasagem irredutível entre a organização prescrita do trabalho e a organização real do trabalho. Explico.

Quaisquer que sejam as qualidades da organização do trabalho é impossível, no cotidiano, cumprir os objetivos da tarefa respeitando ponto-a-ponto as prescrições, as instruções e o procedimento. Basicamente veremos que, dentro da lógica neoliberal de trabalho, é mais rentável termos um manual de instruções de setecentas páginas explicando como bater um martelo sobre uma parede e colocar um prego do que executar a ação em si. Caso caiamos na tentação de agir “segundo as regras”, nos veremos na conhecida situação de “operação padrão”, também conhecida como “operação tartaruga”. É de se crer que muitas desses modus operandis das empresas tenham sido criados com o único propósito de humilhar e desencorajar funcionários que, ignorando essas culturas da incompetência empresarial ou laborial, conseguem realizar seus trabalhos com eficácia e zelo mas, por não seguirem o “padrão” da empresa na execução de suas tarefas (até porque ele é criado para ser impossível de ser executado), não conseguem um aumento ou benefício quando o requisitam.

Trabalhe mal, trabalhe muito mal

Até mesmo quando o trabalhador sabe o que deve fazer e não parece, a princípio, nada impossível, como o caso anterior, ele muitas vezes não consegue fazê-lo graças às pressões sociais do trabalho. Colegas criam obstáculos, o ambiente social é péssimo, cada qual trabalha por si, todos sonegam informações, isso sem citar o caso específico (e muito comum no Brasil) de uma funcionária ser humilhada diariamente com “cantadas”, “gracejos” e outras pérolas da sociedade machista e porco-chauvinista brasileira. Nas tarefas ditas de execução abundam esse tipo de contradições que impedem o trabalhador (e a trabalhadora) de realizar corretamente o seu trabalho.

Muitas mudanças estruturais e o processo de “enxugamento” (tratado no artigo anterior) dos quadros deixam todos tão sobrecarregados de trabalho pelo acúmulo de funções (que não inclui o acúmulo de salários, pelo contrário) que eles simplesmente “ignoram” parte do trabalho a ser realizado. É claro que, para o fantasioso sistema neoliberal de trabalho, não há qualquer chance de se admitir tal situação oficialmente e então o trabalhador mais antigo se recusa, por exemplo, a implementar a investigação proposta pelo novo colega sobre a incompetência generalizada e regulamentada que encontrou no seu novo local de trabalho, porque a investigação seria difícil e demandaria muito tempo (e trabalho).

Carne (e neurônios) tratada como massa

Não estou anulando totalmente o discurso de satanização que o neoliberalismo costuma fazer sobre as empresas e os serviços públicos. Obviamente há os funcionários indolentes e os desonestos (no âmbito público como no privado também), mas, em sua maioria, os que trabalham se esforçam por fazer o melhor, pondo nisso muita energia, paixão e investimento pessoal. É justo que essa contribuição seja reconhecida. Quando ela não é, quando passa despercebida em meio à indiferença geral ou é negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento que é muito perigoso para a saúde mental.

O reconhecimento não é uma reivindicação secundária dos que trabalham ou uma expectativa pueril ou egocêntrica. Muito pelo contrário, mostra-se decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho. Cortando em miúdos: obviamente quem é reconhecido trabalha melhor e o inverso também se aplica.

É necessário que haja reciprocidade nas relações do trabalho – assim como seria desejável em todas as demais. Reciprocidade é uma condição de troca em interação social, sem a qual as pessoas tendem a perder o interesse e se retrair, acumulando diversas questões, sentimentos, dúvidas, inquietações que assumirão o grau de psicopatologias crônicas.

O trabalho na (de)formação do ego

Inversamente, quando a qualidade do meu trabalho é reconhecida, também meus esforços, minhas angústias, minhas dúvidas, minhas decepções, meus desânimos adquirem sentido. Todo aquele sofrimento, portanto, não teria sido em vão, teria feito de mim um sujeito diferente daquele que eu era antes de ser reconhecido.

O trabalho se inscreve então na dinâmica de realização do ego (como dito no artigo anterior). A identidade constitui a armadura da saúde mental. Dizem os psicólogos: “não há crise psicopatológica que não esteja centrada numa crise de identidade”. Aí coloca-se a dramaticidade da questão do trabalho e do sofrimento no trabalho. Não podendo gozar os benefícios do reconhecimento de seu trabalho, nem alcançar assim o sentido de sua relação para com o mesmo, o sujeito se vê reconduzido ao seu sofrimento e somente a ele. Diante da pressão midiática para a aquisição de novos e já obsoletos produtos, diante da constante exigência familiar ou do seu círculo social, o sujeito reconhece-se como o retrato do sofrimento numa sala de espelhos.

Defesa, cristalização... banalização ou quebra

Se o sofrimento não se faz acompanhar de descompensação psicopatológica (ruptura do equilíbrio psíquico que se manifesta pela eclosão de uma doença mental), é porque contra ele o sujeito emprega defesas que lhe permitem controlá-lo. À par dos mecanismos de defesa classicamente descritos pela psicanálise ou pela psicologia analítica, existem defesas construídas e empregadas pelos trabalhadores coletivamente, sociologicamente.

A grande questão se insere quando, do resultado de pesquisas acerca das doenças mentais do trabalho, sobra a inequívoca e inquietante noção de que, em sua maioria, os trabalhadores permanecem dentro de um espectro de ações, comportamentos e reações psíquicas que poderiam ser considerados “normais”. Dessa maneira a própria noção de “normalidade” passa a ser enigmática.

A tendência da defesa contínua, como a defesa necessária dentro de um ambiente de trabalho, é a de se cristalizar, gerando a banalização da injustiça, da humilhação, da violência cotidianas. Caso contrário os trabalhadores enlouqueceriam diante das pressões criadas pelo sistema neoliberal de organização, ou de desorganização premeditada e lucrativa, do trabalho.

Perfeitamente nOrMaL

A normalidade é interpretada como o resultado de uma composição - quase como um mosaico psíquico de partes psicológicas, religiosas, culturais, familiares e educacionais completamente desconexas e intrincadas – entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho. A normalidade não implica a ausência de sofrimento, a tentativa de ignorar o sofrimento ou viver sem ele introjeta um niilismo de uma vacuidade tão grande que tende a levar ao suicídio.

O que se pode propor é uma “normalidade sofrente”, sendo o estado de “normalidade” não o efeito passivo de um condicionamento social, de algum conformismo ou de uma normalidade pejorativa e desprezível, obtida pela interiorização da dominação social, mas o resultado da árdua contenda cotidiana contra a desestruturação psíquica provocada pelas pressões do trabalho.

Banalização? Do quê mesmo?

Essas estratégias de defesa social contra o inaceitável, o inescrupuloso, vergonhoso e doente da injustiça social tendem a tornar aceitável porque comum, o inaceitável, o vergonhoso e o revoltante. Assim essas estratégias de defesa, interessadas na manutenção do ego, estruturam a indiferença social. Funcionam como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer, permitem, muitas vezes, puxar para dentro do campo sempre e sempre alargado do “tolerável” o sofrimento ético, e não mais apenas o psíquico, entendendo-se por tal não o sofrimento que resulta de um mal padecido pelo sujeito, e sim o que ele pode experimentar ao cometer, por causa de seu trabalho ou dentro do ambiente de trabalho, atos que condena moralmente.

Questões para o futuro...

Teria o sofrimento no trabalho e a conseqüente luta contra esse mesmo sofrimento alguma influência sobre as posturas morais particulares e sobre as condutas coletivas no campo político? Estaríamos diante da construção, orquestrada pela sinfonia da filarmônica neoliberal e o seu pensamento único, do “público” perfeito, do público expectador, passivo, massificado, imbecilizado, indiferente, inconsciente, lesivo a si mesmo, em uma palavra: vazio?

Renato César da Costa Kress está desempregado. É brasileiro, poeta, escritor e nasceu no Rio de Janeiro no ano 82. Concluiu seus estudos secundários no Colégio Cruzeiro - Deutsche Schule. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro este que começara a escrever dois anos antes. É co-fundador e co-editor da revista eletrônica www.consciencia.net, e membro do I-Latina.org (www.i-latina.org). Atualmente cursa a faculdade de Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Contato por e-mail, clique aqui. Para outros textos do autor, clique aqui.

Artigo finalizado pelo autor em 26/1/2006, publicado em 10/2/2006 e atualizado em 14/3/2006 na Revista Consciência.Net. Artigo completo: http://www.consciencia.net/2006/0210-rk.html

(*) O título deste artigo é uma referência ao filme “O Bom, o Mau e o Feio”, dirigido pelo italiano Sérgio Leone.

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