Oriente e Ocidente

Os leitores que nos acompanham há quase dois anos nesta coluna semanal que já resultaram inclusive a publicação de dois livros sobre o tema Oriente Médio, sabem que temos dado prioridade a comentar assuntos de conjuntura nas disputas políticas que ocorrem no mundo árabe, especialmente no conflito palestino e na guerra ao Iraque. No entanto, é preciso destacar também aspectos culturais de um povo milenar que são os árabes.

Relendo em uma madrugada (a melhor hora para uma leitura descontraída) o livro fantástico de Amin Maalouf, ao qual já comentamos e fizemos uma resenha em edições anteriores, cujo título é As cruzadas vistos pelos árabes, lançado na França em 1983 e no Brasil em 1988.

Chama minha atenção um aspecto sobre as invasões que os cristãos europeus fizeram ao mundo árabe, entre 1095 a 1291. Foram ao todo oito cruzadas, onde reis católicos financiavam expedições que visavam "resgatar as terras santas das mãos dos bárbaros" (sic). A questão polêmica é definir quem eram, de fato, os bárbaros.

Num período onde a Europa atravessava o que muitos historiadores chamam de "período das trevas", onde pessoas eram queimadas vivas pelas suas idéias e livros eram queimados, no Oriente Médio, vivia-se o auge do Império Árabe-muçulmano. Bibliotecas "pequenas" em cidades menores possuíam em torno de cem mil livros. A biblioteca de Isphahan na Pérsia (hoje Irã), onde existia a grande escola de Medicina e cirurgia do maior médico da antiguidade clássica e moderna, Ibn Sina (Avicena como é conhecido no Ocidente), possuía mais de meio milhão de livros. Menor claro, que a de Bagdá, com quase um milhão de livros.

O conceito de "bárbaro"

Uma classificação sobre o assunto foi estabelecida no século XIX por Lewis Henry Morgan. Este classificou os diversos estágios da chamada "pré-história" humana. Acabou consolidando o termo para "bárbaros" os que se situavam entre a "selvageria" e a "civilização" propriamente dita. Portanto, e isso tenho dito para meus alunos nas aulas de sociologia, prefira ser chamado de "bárbaro" do que de "selvagem", em tese, mais depreciativo. No entanto, neste caso, a civilização, no sentido de uma maior desenvolvimento social, estava entre os árabes e mouros do oriente Médio, avançados na maioria dos aspectos sociais. Engels aponta a questão da "humanização" dos seres pré-históricos e afirma que esse conceito tem uma relação direta com a capacidade de "produzir trabalho". Essa é a diferença fundamental entre os seres primitivos, primatas ancestrais e os "homens" civilizados, seres humanos.

Morgan ainda aponta características do período da "barbárie", entre elas as que ocorrem em três fases distintas: na primeira ocorre a introdução da cerâmica, com as invenções dos vasilhames de barro; numa segunda fase, ocorrem a domesticação dos animais, com a constituição de rebanhos e transformação de bosques em locais de pastagens dos animais. Nesta fase, inicia-se o cultivo de plantas, com o incremento da agricultura e na última fase, ocorrem o que alguns historiadores classificam como revolução dos metais, que ocorre depois da chamada "revolução do regadio" (das águas).

Bem, não é nosso propósito discorrer sobre selvageria e barbárie, mas destacar uma passagem que Maalouf mostra no capítulo 3 de seu livro, chamado de Os canibais de Maara. Essa era uma pacata cidade de dez mil habitantes, que foi uma das primeiras a serem invadidas pelos franj (termo que os árabes chamavam os francos, cristãos integrantes das cruzadas). Há relatos e descrição em detalhes, da parte de vários cronistas e historiadores da época (episódios ocorridos entre 1098 e 1099, logo no início da primeira cruzada). Os cristãos, além de terem incendiado completamente a biblioteca desse pequeno povoado local. Essa pacata cidade ficava nas proximidades de Jerusalém, na Síria e os episódios narrados tem início em 11 de dezembro de 1098. Os francos entram na cidade, sitiam-na completamente e destroem suas muralhas.

A invasão da cidade ocorre um dos episódios mais selvagens da história humana (humana?). Fala-se em milhares de pessoas mortas, assassinadas a fio de espada e, pasmem: na maioria foram comidas pelos selvagens cristãos europeus. Há relatos que falam de "caldeiras fervendo pagãos" (árabes) e "crianças fincadas em espetos e devoradas grelhadas". Um horror, uma selvageria (e não barbaridade como se poderia dizer).

O massacre durou em torno de uma semana. Monumentos santos para os muçulmanos foram todos destruídos pelos "civilizados" europeus. Nunca se deve esquecer uma passagem magnífica do império árabe-muçulmano. Já mencionamos este episódio em uma de nossas primeiras colunas. Maalouf também o menciona. Trata-se da entrada do califa (sucessor de Maomé, em árabe Mohamed) Omar na cidade de Jerusalém, em 638. Foi o período da conquista dessa cidade pelos árabes. Como já disse o sociólogo e historiador francês, Gustave Le Bon, não existem impérios "bonzinhos". Todos são dominadores e procuram impor suas culturas e mesmo a língua aos povos dominados e subjugados. Mas, ele faz uma exceção ao império árabe. Pode-se dizer que na história deve ter sido o mais complacente de todos.

Ao chegar a Jerusalém, Omar, o quarto Califa Hashidun (bem orientado em árabe) foi recebido pelo patriarca da cidade, que se chamava Sofrônius. O patriarca demorou a identificar quem era Omar, o grande califa, pois a sua simplicidade e da sua comitiva destoavam dos reis, príncipes e imperadores de todas as épocas. Feito o primeiro contato, o patriarca convidou Omar para realizar uma oração com os cristãos, na igreja do Santo Sepulcro. Omar agradeceu de pronto o convite, mas declinou. Não que não quisesse orar com os cristãos, ao contrário, acabou fazendo, mas em um local público e aberto, próximo da igreja onde Jesus teria sido enterrado, mas não dentro dela.

E a justificativa foi exatamente preservar o templo cristão, que sempre ficou intocável durante o império árabe. A grande preocupação do califa árabe era de que seus seguidores quisessem edificar uma mesquita exatamente onde ele orou quando chegou à Jerusalém (o que de fato ocorreu e hoje existe a Mesquita de Omar nessa cidade). Essa é uma, entre tantas provas, da demonstração de tolerância, consideração por outras culturas. Ao contrário do que a mídia hoje propaga, mostrando os árabes e muçulmanos do Oriente Médio como bárbaros, terroristas e tantos outros estereótipos, precisamos combater isso.

Diário Vermelho

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